A UE não existe

1 – Ascensão e queda do mito europeu

A UE existe? Não, o que existe é um projeto de fundamentalismo neoliberal conduzido por tecnocratas. O que temos é uma “união” de desemprego, pobreza, desesperança e revolta cidadã, em que milhões de pessoas são deixadas à margem, esmagadas pela austeridade enquanto a oligarquia acumula riqueza e todas as hipóteses de equilíbrio ou convergência estão excluídas na prática.

Uma “união” que se constrói comandada pela oligarquia alemã e que, face ao

seu total fracasso

, ensaia já soluções de extrema-direita como no leste europeu, e de que o drama ucraniano é sintomático.

Segundo o Eurostat o risco de pobreza ou exclusão social atingia em 2013 na Grécia 35,7% da população, na Espanha 27,3%, na Roménia 40,4%, na Letónia 35,1%, no Reino Unido 24,8%, na própria Alemanha 20,3%. Em Portugal como se sabe era de 27,4%. No entanto, como estes dados se referem a medianas podemos avaliar os níveis de pobreza pelos respetivos salários mínimos (brutos) que abrangem crescentes faixas de trabalhadores. Assim, na Roménia era de 157,5 €, na Letónia de 286,66 €, na Polónia 392,73 €.

A UE tornou-se até risível para seus próceres como Christine Lagarde, ao afirmar temer que uma dieta de dívidas elevadas, crescimento fraco e desemprego se torne a nova normalidade na Europa. [1] A UE encaminha-se para nova recessão e o sistema bancário apesar de todas as medidas apresentadas desde 2008 como condições sine qua non para a “salvação” – de quê?! – está tão ou mais fragilizado que antes.

A propaganda evolui no meio de ilusões, não apenas sobre a realidade, mas sobre as soluções adotadas. Este falso otimismo é apenas uma máscara para impor aos povos a austeridade que toma a forma de uma guerra social. A estabilidade económica da UE é ilusória. Pior, a UE encontra-se na terrível situação de as únicas soluções que poderiam resolver os problemas existentes levariam à destruição dos seus mitos e ambições de grande potência continental, para onde os seus tratados pretendiam convergir.

Para os impor, a propaganda dizia ser necessário a “Europa (?) falar a uma só voz”. Como se os interesses nacionais pouco ou nada importassem aos seus “ideais europeístas”. Que espécie de UE é esta em que a única igualdade estatuída é para o capital multinacional? Em que os cidadãos são cada vez mais marginalizados, suas esperanças e projetos de vida negados em nome da “eficiência dos mercados”. Em que a contestação se generaliza e é cada vez maior o descrédito dos políticos e das instituições que suportam este estado de coisas.

Quaisquer que sejam os acontecimentos futuros, o poder enfeudado a Bruxelas/Berlim afastou-se de tal modo das pessoas e dos seus problemas, que, face à dissolução do poder dos Estados e à decadência económica, a contestação a uma “união” que na realidade não existe, continuará a acentuar-se.

Que a UE não existe confirma-o Draghi ao afirmar, e com ele comentadores e políticos do conformismo vigente, que o contrato social europeu é obsoleto e há que substituí-lo. É a “nova ordem europeia” em marcha: o neofascismo. A oligarquia dominante, a finança e seus políticos não estão em estado de suportar uma liberdade e uma democracia em que as aspirações populares sejam tidas em conta.

2 – O euro uma aberração económica e social

Com o euro foi preparado o caminho para os países deixarem de ter soberania. No Manifesto, Marx refere-se à moeda, ao dinheiro, como a ligação social dominante à qual todas as outras relações se reduzem. A tese da neutralidade da moeda – um dos dogmas do monetarismo – conduz à “independência” dos bancos centrais, entidades que não dependem do poder político democrático, tendo como objetivo apenas garantir o que a oligarquia financeira define como prioritário e essencial. Os resultados estão à vista com o sistema financeiro europeu próximo do caos, mascarado pela austeridade e pela comunicação social controlada.

Os preços monetários resultam de compromissos e conflitos de interesses, nisto decorrem da distribuição do poder. A moeda é um instrumento na luta entre indivíduos e grupos sociais à volta da apropriação deste tipo de direito. O cálculo monetário não tem sentido senão a partir de um conhecimento da distribuição de rendimentos. Ele é portanto dependente da organização social e não prévio ou a sua essência. [2]

A desorientação que reina no sistema financeiro da UE pode ser avaliada pelo contorcionismo técnico a que o BCE recorre ao comprar títulos classificados como “lixo”. É esta a forma de mascarar a verdadeira situação da banca europeia. Porém, isto apenas aumenta o descrédito do sector e da própria moeda, o euro.

O BCE colocou o interesse dos banqueiros acima dos interesses dos povos. O facto de largo conjunto de bancos terem colapsado ou terem-se arrastado na fraude (por ex. casos Barclays, Deutsch BanK, Dexia, etc). A falta de credibilidade do sistema ficou demonstrada quando bancos colapsaram após terem passado nos testes de stress. Tal ocorreu na Irlanda, em Portugal, na Grécia – e depois de as regras terem sido supostamente tornadas mais eficazes, os bancos continuam a ir à falência atulhados de casos fraudulentos, como no Dexia ou no BES, verdadeiro “case study” político e económico de todo o sistema financeiro da UE.

O euro, com o seu BCE, mais parece uma arma de vândalos que procedem à devastação e ruína dos povos para manter o seu poder discricionário. Porém, para que serve tudo isto? Dado que os países cederam o seu poder de criar dinheiro ao BCE e à banca privada, aceitando o uso do euro, é de facto possível irem à falência. Isto apenas torna a política do BCE mais idiótica ao tornar ainda mais difícil a vida dos países que se debatem para pagar as suas dívidas. [3]

O euro é um instrumento do domínio alemão, impondo a moeda que mais lhe convêm, não permitindo a criação de moeda sem juros por bancos centrais dos Estados, dependentes do poder político democrático. A catástrofe não é sair do euro, é permanecer no euro que apenas trouxe estagnação, insuportável endividamento, dependência e, consequentemente, inevitável pobreza.

3 – LARGO AL FACTOTUM

No estado a que a UE chegou, pretende-se que as eleições sejam uma farsa. Uma farsa que faz lembrar o “largo al factotum” (deixem passar o faz-tudo) das Bodas de Fígaro (Mozart – Da Ponte). A “mulher mais poderosa da Europa”, a Merkel, não passa do factótum do sr. Schauble, ignorante como qualquer fanática, tal como Isabel de Castela, obedecendo ao inquisidor Torquemada.

Que dizer de Draghi, de Hollande, dos políticos do “arco do poder” em Espanha, na Grécia, ou Portugal com Passos Coelho, Maria Luís Albuquerque e Cavaco Silva? Não passam de factótuns que mestre Miguel Urbano qualificava como uma “casta de aventureiros sem escrúpulos que a política de direita fez florescer e tornam o país um microcosmos do capitalismo no seu estado mais apodrecido.” [4]

O Banco de Portugal é na realidade um departamento do BCE. O seu governador é um mero funcionário do BCE às ordens dos burocratas para os quais os interesses do povo português estão resumidos nos formulários que lhes foram atribuídos. Os governadores limitam-se a cumprir ordens e olhar para o lado quanto à má gestão e às fraudes.

Vejam-se os presidentes da CE do inepto e subserviente Barroso a Junker, envolvido num escândalo (rapidamente abafado) de acordos fiscais secretos no Luxemburgo a centenas de multinacionais. Centenas de milhares de milhões de euros extorquidos aos países e aos povos! São indivíduos sem perfil, que agem como vozes do dono, repetem clichés, esgotam promessas que, de tão falseadas, se tornam meras mentiras que as pessoas ignoram ou desprezam.

A austeridade é aplicada com a argumentação de pretender reconstituir um pretenso equilíbrio económico, resultado mecânico duma “concorrência livre e não falseada” que produziria mercados perfeitos. É a economia a funcionar como uma máquina hidráulica…

Em nome de uma hipotética eficiência, impõe-se a lógica do mercado como regulador absoluto ignorando os riscos que lhe estão associados, como a corrupção, a fraude, as crises ditas “sistémicas”. Este “mercado livre”, com monopólios e especulação, está espartilhado num conjunto de regras autoritárias e determinações de agentes burocráticos. Porém, construir ou reformular a sociedade de acordo com um modelo pré-definido como ideal e perfeito e julgar as pessoas e as sociedades de acordo com esse modelo, releva da teologia fundamentalista. [5]

Os políticos do sistema nem sequer põem a questão de avaliar se o tal equilíbrio financeiro é socialmente justo. A “ciência económica” vigente não passa de uma superstição destinada a subordinar os povos e o funcionamento das economias nacionais aos interesses das megaempresas transacionais e seus multimilionários.

É este o resultado do modelo defendido pela social-democracia/socialismo reformista: um drástico retrocesso das condições sociais, com a UE a desempenhar o papel da “Santa Aliança” do século XIX.

4 – A Grécia já está a arder?

A simples hipótese das eleições na Grécia serem ganhas por um partido que não se afasta da social-democracia tradicional, provocou ameaças, quedas na bolsa, juros a subirem para inconcebíveis 9,7%; quando o BCE fornece dinheiro à banca privada sem custos e sem riscos.

Os comentadores falaram em “nervosismo (!) dos mercados” e o FMI suspendeu a “ajuda” até ao novo governo. Só não se percebe é como uma “mão invisível” pode estar nervosa! Esta gente já não hesita em usar o obscurantismo e a estupidez como arma ideológica.

O ministro alemão das finanças, Schauble, disse que “as políticas definidas por Bruxelas (que modéstia!), as reformas duras estão a dar frutos (quais? a quem?), têm de ser mantidas e não há alternativas.” “As novas eleições não vão alterar os compromissos que temos com o governo grego. Qualquer novo governo tem de manter os compromissos assumidos pelos antecessores.”

Os nazis não pensavam de outra forma relativamente ao resto da Europa, só que a hipocrisia era menor. Não escondiam ao que iam. Na iminência da libertação de Paris, a questão colocada pelo Alto Comando nazi foi: “Paris já está a arder?” A versão atual de Paris a arder para que a “Alemanha” triunfe é a austeridade, o fogo lento que consume económica e socialmente os povos.

Na Grécia, como em Portugal e por toda a UE, a “ajuda” e os “frutos” de que falava Shauble, estão envenenados, traduziu-se em mais miséria, desemprego, recessão económica, degradação das condições sociais e como vemos a instauração do neofascismo liberal. Simultaneamente, as instituições passaram a exercer um controlo desmedido sobre as políticas nacionais impondo um Estado hiperautoritário, designadamente uma estrutura de vigilância e punição anti-laboral e anti-social. [6]

A democracia na UE tornou-se meramente formal com tratados que impõem à revelia dos povos as políticas neoliberais, fechando as portas às opções dos povos. A democracia como ato de participação e decisão coletiva deixa de ser necessária face à transformação da econometria neoliberal em ideologia. Cliques de “sábios”, como os provenientes dos grandes grupos financeiros, decidem “o que é melhor para nós”, o povo, tal como no fascismo.

Quando os países fragilizados por estes processos, mais precisavam de poder democrático para decidir o seu destino e respirar a liberdade da soberania, foram colocados sob iníquas tutelas hipocritamente apelidadas de ajuda.

Perante o aumento da contestação à burocracia de Bruxelas e à ditadura de Berlim, a Alemanha ensaia um recuo estratégico com algumas apressadas promessas que apenas comprovam que tudo o que andaram a obrigar os outros a fazer, não estava apenas errado, era absurdo e socialmente criminoso.

Mas são remendos que nada alteram do essencial das políticas. Trata-se apenas de disfarçar um pouco o descalabro de uma falsa UE incapaz de resistir às perturbações que originou na Grécia, que não representa sequer 2% do PIB da zona euro e 1,4% da UE.

A UE não existe, o que existe é um problema, uma guerra de classe contra os povos sob a designação de UE. Que democracia, que vontade do povo se permite então nesta UE? Que partidos democráticos aceitam esta chantagem? Portugal perdeu a soberania monetária, económica e até a legislativa está drasticamente limitada. Uma chantagem que se exerce contra as opções eleitorais, como o PR se faz eco com os seus pseudo consensos.

O Estado democrático e a soberania popular garantidos pela Constituição, são as formas de proteger Portugal e os portugueses e nunca um poder espúrio transferido para uma decadente UE contra os interesses nacionais.

Notas

[1] Patrick Wintour in Brisbane, The Guardian, 17 novembro 2014

[2] Jacques Sapir, Les trous noirs de la science économique, Ed. Seuil, 2013, p. 239, 240, 242.

[3] Geoff Davies, Sack the Economists – and Disband their Departments , Bwm Books, Canberra, 2014, p. 184

[4] Um zoo humano de inimigos do povo

[5] Jacques Sapir, obra citada, p. 108, 128, 129

[6] Jacques Sapir, obra citada, p. 98, 99

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