RAÚL, CUBA E AS NEGOCIAÇÕES COM OS EUA

O presidente Raúl Castro se pronunciou na III CÚPULA DA CONFEDERAÇÃO DE ESTADOS LATINO-AMERICANOS E CARIBENHOS (CELAC) como um estatista apegado à autodeterminação de Cuba, defensor da carta cabal da soberania nacional e com uma clara atitude de fechar todas as portas às pretensões de ingerências imperialistas na política interna cubana.

Não deixou dúvidas a respeito da determinação de seu governo de não fazer concessão alguma ao imperialismo estadunidense acerca do modelo político vigente e da política exterior independente do Estado cubano.

Apelou com força ao indeclinável direito de cada povo a escolher o sistema político, cultural, econômico e social que mais convenha e pelo qual decida optar.

Defendeu dignamente as justas reivindicações de Cuba e as condições necessárias para passar do iminente restabelecimento das relações diplomáticas anunciadas à normalização dos vínculos bilaterais, que precisa, todavia, do desmonte do bloqueio comercial e financeiro (principalmente), da devolução do território ilegalmente ocupado pela Base Naval de Guantánamo, do cessar das transmissões de rádio e televisão que violam as normas internacionais e de uma adequada compensação ao povo cubano pelos danos humanos e econômicos sofridos.

Raúl não só assumiu essa firme defesa da autodeterminação de Cuba, com também abraçou esse direito fundamental como direito de todos os povos de nossa América e do mundo.

DELIMITOU POLÍTICAS E DEFINIU ATITUDES SOBERANAS

Na verdade, Raúl não disse como Fidel, que não se reuniu e não tinha a menor confiança nas posições dos EUA a respeito de Cuba, porém delimitou políticas e definiu atitudes que implicam essa convicção, que felizmente tem um peso elevado na sociedade cubana de hoje.

A forma e o conteúdo de sua intervenção foram mais próprios do estatista independente do império, que do revolucionário anticapitalista e anti-imperialista subversivo.

Tal marca esteve presente em todo seu discurso, fundamentalmente concentrado em definições de políticas governamentais frente ao vizinho do Norte e seus sócios, em iniciativas de Estado e estímulos a alianças progressistas interestatais fora de controle dos EUA; sem incursionar nas necessárias derivações do internacionalismo revolucionário nos tempos presentes, nem na atualidade da emancipação social, nem na pertinência das revoluções no contexto da ativa multicrise do capitalismo senil.

Esse tom se explica por sua condição de chefe de estado e pelo cenário em que atuou (CELAC), o que, sem negar o valor e o respaldo necessário às posições governamentais, não deveria converter-se em posicionamentos únicos e limitados a esse teor na hora de definir políticas a partir do partido comunista, dos movimentos sociais e dos meios de comunicação; como em boa medida tende a acontecer, dada a fusão partido-estado-organizações de massas, própria desse modelo econômico.

É claro – e é preciso enfatizar – que Raúl Castro não é homem de negociações tolerantes, nem de concessões políticas onerosas ao imperialismo estadunidense a partir da relevante função que exerce. E isso é muito importante no atual momento latino-caribenho; mais ainda quando definiu com muita clareza os limites desse novo passo e as coordenadas invioláveis de qualquer avanço na normalização dessas relações, ainda extremamente precárias e incertas.

Importante, além disso, é que o presidente cubano tenha expressado critérios muito precisos a respeito das finalidades que busca o inimigo histórico desse processo e que não deixa espaços para ilusões oportunistas que influenciem, enfraquecendo a resistência e a ofensiva política que requer a defesa cubana frente ao império e suas pretensões remodeladas.

Da mesma maneira, tem um grande valor a firme defesa dos sistemas de saúde e educação socializados, e de outros planos de profundo conteúdo social, assim como a proposta de permanência destes independentemente do novo curso da economia cubana.

OUTRAS VERTENTES E NOVOS RISCOS

Porém, para além desse auspicioso posicionamento político, existem outras vertentes do tema que é necessário analisar e outros riscos que é preciso ponderar no contexto das reformas econômicas que, soberanamente, Cuba decidiu empreender como resposta ao estancamento, crise e/ou esgotamento do modelo estatista.

É certo que, como diz o presidente cubano, “tudo parece indicar” que o imperialismo estadunidense tem entre seus novos objetivos políticos “fomentar uma oposição política artificial por meios econômicos, políticos e comunicacionais”, descartando aquilo que fracassou: “criar fome, desespero e sofrimento para provocar a derrocada do governo revolucionário”.

Porém, existe muito mais que essa proclamada intenção.

O imperialismo é brutal, porém não bruto.

O imperialismo é descarado, porém também saber ser astuto, sinuoso, pérfido…

Em meu entender, o propósito fundamental para o interior de Cuba dos setores que dentro do poder estadunidense auspiciam esta virada de Obama, consiste em fomentar o máximo que puderem o capitalismo na economia e na cultura cotidiana cubana: a propriedade privada com trabalho assalariado, o investimento estrangeiro privado, incentivo ao consumismo na juventude, uso do dólar como instrumento corruptor, fomento da atração pelo modo de vida americano; estímulo aos vícios, ao individualismo, ao egoísmo e à falta de solidariedade; turismo contaminante, dependência de grandes remessas, investimentos feitos através de testas-de-ferro, intensificação da dependência comercial, promoção ladina da subcultura cubano-americana, estímulo à economia de serviços e diversão insana, comparação vantajosa da economia privada e uns serviços estatais atrofiados…

POSSÍVEL IMPACTO DO “PACOTE” DE OBAMA

Uma parte do “pacote” de concessões de OBAMA (aumento significativo do montante dos envios em dólares e da autorização de divisas a viajantes estadunidenses, anulação de limites das remessas dirigidas a negócios privados e “projetos humanitários”, facilidades bancárias, promoção de visitas e intercâmbios de bens básicos e de equipamentos de telecomunicações…), aponta – ainda que limitadamente – nessas direções.

A isso se acrescentaria, para efeitos de maior envergadura, os possíveis investimentos estadunidenses no contexto da atual lei de abertura aos grandes investimentos estrangeiros.

O impacto pró-privatização e pró-capitalismo dessas “concessões” estrangeiras no novo marco, que tende a se formar com a distensão econômica entre Cuba e os EUA, poderia ser maior que o aparentado devido a certas características das políticas públicas e a certas dinâmicas que, previamente, se desenvolveram no curso da evolução do chamado processo de “atualização do modelo econômico”, colocado em marcha em Cuba desde o início da gestão de Raúl Castro e sua equipe de governo.

Trata-se, claro está, de decisões soberanas.

Decisões com um alcance mais geral que o que estritamente compete às relações Cuba-EUA, vinculadas ao plano de reformas internas, às mudanças econômicas dirigidas a enfrentar parcialmente a crise do modelo estatista e a reestruturar aspectos da gestão econômica e formas de relacionamento com o mercado mundial e os demais países.

Inclusive, em certa medida, os EUA tardaram em reagir frente a essa abertura cubana. Enquanto isso, a Rússia, China, Venezuela, Brasil e outros países – por razões óbvias – já o fizeram com seus próprios cálculos políticos e econômicos, suas possibilidades e afinidades. Sem dúvida, tal atitude pressionou sobremaneira certas corporações estadunidenses interessadas em entrar nesse jogo econômico, assim como o superestado estrangeiro, enfrentando agora uma parte das potências emergentes.

Entre estas decisões, a autorização de contratação de mão de obra e trabalho intelectual assalariado em negócios e empresas privadas de variadas dimensões, gera capitalismo privado e acumulação privada de capital. E esta é, talvez, junto a certas modalidades de investimento privado estrangeiro (permitido por lei), um dos pontos mais refutáveis e controversos das atuais mudanças em Cuba, desde uma visão genuinamente socialista. Esperamos que, mais cedo ou mais tarde, essas reformas possam ser revistas.

Acompanhadas essas decisões de uma economia estatal ineficiente, gerida de forma centralizada e burocraticamente, favorece indiretamente, por vantagens comparativas evidentes, a simpatia pela privatização com a carga ideológica que a mesma possui.

Ainda que existam ensaios de descentralização e propostas a favor da socialização do estatal, a aposta governamental nessa direção é muito débil, inclusive acerca do tema da cooperativização de caráter socialista. Isso sem falar quanto à necessidade (desde a ótica marxista) de eliminar a exploração do trabalho assalariado e transferir as grandes empresas públicas aos/às trabalhadores/as, com novas modalidades de autogestão e cogestão.

O fomento do “conta-proprismo” sem um claro norte associativo, contando com a possibilidade de contratar mão de obra assalariada, ao mesmo tempo fomentar o “salve-se quem puder”, gera pequenas e médias empresas capitalistas e maiores desigualdades às dividas a partir das remessas recebidas e dos vínculos privilegiados com o exterior.

É preciso dar por certo que em processos desse tipo uma parte da burguesia tende a utilizar suas prerrogativas especiais para transformar-se em capitalista e fazer negócios privados. A transmutação social opera.

Tudo isto, a curto – e mais ainda a médio e longo prazo – tende a aumentar a economia de mercado junto ao auge do capitalismo privado, assim como as desigualdades em grande escala e o individualismo, liquidando as possibilidades de um trânsito para um novo socialismo que substitua o antigo “socialismo de Estado”, que infelizmente tem sido aqui, lá e acolá muito de Estado e pouco de socialismo.

QUAIS MUDANÇAS POLÍTICAS?

Em outra ordem, está claro que a atual direção cubana não aceitará as mudanças no regime político que os EUA e seus sócios mundiais demandam. E faz muito bem porque se trata de passar do existente às pseudodemocracias eleitorais capitalistas em decadência.

Porém, isso tampouco quer dizer que o compasso de uma socialização progressiva da economia (que, todavia, não se adotou), não se deva socializar e democratizar muito mais o poder.

Repudiar energicamente a proposta política imperial não implica que em Cuba não devam ocorrer mudanças políticas autodeterminadas em direção a uma autêntica democracia socialista, que remoce o poder popular, que amplie a democracia direta, promova a participação, impulsione a mudança geracional, socialize os meios de expressão e amplie o debate; uma vez por todas, fechando o caminho para a contrarrevolução imperialista-capitalista.

Dessa forma, somente a preservação da soberania nacional e do atual modelo político cubano, com hegemonia do Partido Comunista (fundido com o Estado como partido único), com o atual sistema de meios de comunicação e o controle político das organizações e movimentos sociais, não é necessariamente garantia contra a restauração de um capitalismo privado que se torne dominante junto a um capitalismo de Estado mais ou menos reformado.

A China Popular, por exemplo, conservou sua soberania e seu regime político-institucional sob a condução do Partido Comunista. Enquanto isso, o tipo de reformas econômicas implantadas conduziu essa grande nação a converter-se em uma grande potência capitalista e em um imperialismo emergente, sustentando seu extraordinário crescimento em seus substanciais recursos naturais, sua cultura ancestral de trabalho e suas vantagens comparativas em meio a um imperialismo ocidental em crise.

A China “comunista”, entre outras coisas, é a grande fábrica de um capitalismo ocidental que se torna cada vez menos produtivo e cada vez mais especulativo.

O nacionalismo de grande potência substituiu na China continental o anti-imperialismo e o internacionalismo revolucionário, como consequência do processo de reformas e modernização iniciado por Deng Xiao Ping

Em Cuba, o avanço do capitalismo não seria igual. Teria muito menos possibilidades de expansão produtiva e significativas falhas, consequências mais negativas e tenderia a provocar uma grande vulnerabilidade da sociedade cubana frente ao sistema imperialista e todas as suas potências.

Porque estou convencido desses riscos, e porque certamente na própria Cuba tudo isto está em fase inicial, gerando inquietudes e discussões sábias, insisto no debate a fundo destes temas e na busca por opções que descartem a via capitalista e possibilitem transitar do estatismo burocrático – já infecundo – para o verdadeiro socialismo. Sem uniformidade, com varias formas de propriedade e de gestão, porém com planificação democrática e socialização progressiva, tanto do estatal como do privado; com democracia participativa, cultural, ambiental, de gênero e gerações.

03-01-2015, Santo Domingo, RD

Fonte: http://noticiasguasabara.blogspot.com.br/2015/02/raul-cuba-y-las-negociaciones-con-ee-uu.html

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)