A desilusão: a hera na lapela
Por Mauro Luis Iasi.
(Blog da Boitempo)
“Toco el diamante,
y lo volvió al carbón,
y al atorrante lo sembró
en la administración”
– Silvio Rodriguez, “La desilusión“
Gosto da palavra desilusão. É como fazer o caminho inverso da ilusão, como deixar de se iludir, ou como dizia Alfredo Moffat, desesperar, deixar de esperar. Lenin considerava uma das condições objetivas de uma situação revolucionária quando nos alertava que não bastaria o agravamento extremo da miséria das massas, mas era necessário que a isso se juntasse uma “angustia”, expressando que os trabalhadores não mais acreditariam que suas demandas podiam ser satisfeitas pelos caminhos instituídos numa determinada ordem.
No entanto, sabemos, a desilusão não é necessariamente o caminho para alternativas revolucionárias. No momento em que as ilusões vendidas naufragam no mar agitado da história e na dinâmica concreta da luta de classes, a desilusão funciona como fermento para todo tipo de niilismo, de paralisia, de impotência, condição para que a classe trabalhadora volte a mergulhar na consciência reificada e nas malhas tão eficientes da ideologia, virando presa de alternativas conservadoras.
James Joyce em um de seus belos contos dublinenses, nos descreve a cena de alguns trabalhadores à frente de uma lareira no final de um dia de eleição esperando para receber o dinheiro que lhe prometeram pelo trabalho na captura do voto. Como chovia e fazia frio, eles contornaram a tarefa remunerada para se refugiar no calor da lareira. Traziam na lapela uma folha de hera que lembrava o dia da morte de Charles Steward Parnell (1846-1891), político nacionalista que tivera um papel importante na causa irlandesa no Parlamento. O aniversário de sua morte e a hera na lapela representavam a persistência da luta necessária.
Ocorre que vários deles ali coletavam votos para políticos muito pouco nacionalistas e que sabiam claramente que não os representava, como fica claro numa fala de um deles. Diz o personagem defendendo um candidato operário que havia sido acusado de ser um pobretão:
“Só porque é operário você diz isso? Que diferença existe entre um pedreiro honesto e um negociante, hein? Por acaso um operário não tem direito de pertencer ao Conselho Municipal como qualquer pessoa? Muito mais direito até que esses parasitas que estão sempre de chapéu na mão diante de qualquer aristocrata”.
E completa:
“ele é um homem honesto, livre de qualquer suspeita, vai representar a classe operária. Esse para quem vocês trabalham quer apenas arranjar um bom emprego”.
(“A hera na lapela”, em Dublinenses)
Quando, num determinado momento histórico, uma força política que logrou representatividade e legitimidade diante da classe trabalhadora para representá-la desvia de seu rumo e sofre as auguras do transformismo, ele não perde de imediato a referencia dos trabalhadores, mas estes sabem que há algo errado.
O comandante Ernesto Che Guevara, em um texto em que aborda os problemas do sectarismo, avalia que o principal e mais preocupante efeito dos desvios sectários é a separação entre a vanguarda e as massas. Quando ocorre um desvio, uma quebra dos princípios de uma moral revolucionária (no caso o comandante fala do uso indiscriminado da violência, dos fuzilamentos e perseguições muitas vezes movidos por oportunismos pessoais), por mais que tentemos escondê-lo sob as justificativas de um discurso, por mais que os trabalhadores pareçam aceitar naquele momento, quando, nas suas palavras “nós não sabemos ou não queremos saber das coisas”, é importante destacar que os trabalhadores sabem, sempre sabem.
A consciência de classe é produto de uma fusão que resulta em uma identidade coletiva. É muito mais que uma representação por mandato, é um novo pertencimento no qual um nós se impõe à fragmentação individualista de maneira que os atos de uma vanguarda política são nossos atos, sua fala é nossa fala, seus objetivos são os nossos. Se por qualquer motivo a consciência imediata dos trabalhadores percebe que “eles” agem por seus próprios objetivos e que estes cada vez mais não são os nossos, se produz uma trinca nesta identidade, uma suspeita, e o diamante da consciência se converte uma vez mais em carvão, a consciência conquistada em nova serialidade alienante.
O problema é que na superfície do fenômeno tudo segue aparentemente como estava antes. Os símbolos na lapela, os votos na urna… mas algo se rompeu. Os trabalhadores sabem.
O contra-revolucionário, continua Che, não é apenas o que luta contra as transformações, mas também “aquele senhor que valendo-se de sua influência, consegue uma casa, consegue depois dois carros […] obtém tudo que o povo não tem”, e conclui: “contra-revolucionário é todo aquele que contraria a moral revolucionária”. Não seria um desvio moralista de nosso querido comandante? Cremos que não. Há uma moral revolucionária e quando ela se quebra, algo de muito importante de perde, sem o qual nenhum processo político que se queira emancipatório é possível.
A base dos valores morais são as relações que constituem a produção material da vida. O próprio Che alerta aos que o escutam que eles são muito importantes nas tarefas de defesa (falava aos membros dos Comitês de Defesa da Revolução), mas “menos importantes que o desenvolvimento da economia”. É mais importante ter inhame suficiente do que CDRs, ironiza o dirigente cubano. É verdade, mas as relações humanas, ainda que tenham no ato de produção da vida um momento essencial (Lukács diria ontológico), são amarradas por mediações que se tornam tão essenciais à vida como o alimento e os instrumentos de trabalho sem os quais não vivemos: a linguagem, a arte, os valores que orientam nossa ação.
O problema do moralismo é que ele fragmenta esta unidade do ser social. Acredita que os desvios morais produzem os desvios materiais e, portanto, podem ser corrigidos com pregações moralistas, com atribuição e expiação de culpas. Esta é uma maneira de individualizar e personalizar os desvios. Mas mais que isso, é funcional, pois uma vez personalizado e isolado de suas determinações pode-se estripa-los sem maiores consequências.
O sectarismo, os desvios de conduta, as práticas deploráveis que afastam as formas políticas da classe de onde nasceram são expressão das contradições de uma alternativa revolucionária agindo dentro da ordem jurídica e política instituída que, por sua vez, tem por base, as relações econômicas que constituem uma determinada sociabilidade, mais precisamente de uma alternativa que se rendeu ao pântano do pragmatismo. Mas esta é uma contradição inevitável, uma vez que toda alternativa transformadora deve por princípio atuar na ordem existente para revolucioná-la. É neste ponto que o aspecto ético se torna importante. Não podemos evitar o fato de que temos que atuar num contexto material existente, mas é sempre bom lembrar os objetivos, as metas, os valores que constituem a base da consciência de uma classe que quer e precisa ir além das fronteiras do existente. E nesta dimensão os valores são essenciais.
Os tempos são propícios a transformismos e a ordem se prepara para recompensar os que se rendem. Neste momento, no qual as ilusões fazem água, no qual a desilusão abre seus braços gelados para receber os que se iludiram, precisamos ter muito cuidado. Um amigo latinoamericano (e nesses momentos amigos são coisa muito importante) que trabalha significativamente com mosaicos, transformando os cacos fragmentados em arte e memória, me lembrou de poema de Benedetti. Não sei como evitar a desilusão, nem, como evitar que nossa classe embarque em alternativas conservadoras, mas se você estiver se sentindo sozinho e passar pela cabeça que não há o que fazer a não ser se render a esta ordem de merda… bom, vai aí o apelo poético de nosso camarada Mario Benedetti. Espero que ajude:
Não te rendas, ainda é tempo
De se ter objetivos e começar de novo,
Aceitar tuas sombras,
Enterrar teus medos
Soltar o lastro,
Retomar o vôo.
Não te rendas que a vida é isso,
Continuar a viagem,
Perseguir teus sonhos,
Destravar o tempo,
Correr os escombros
E destapar o céu.
Não te rendas, por favor, não cedas,
Ainda que o frio queime,
Ainda que o medo morda,
Ainda que o sol se esconda,
E o vento se cale,
Ainda existe fogo na tua alma.
Ainda existe vida nos teus sonhos.
Porque a vida é tua e teu também o desejo
Porque o tens querido e porque eu te quero
Porque existe o vinho e o amor, é certo.
Porque não existem feridas que o tempo não cure.
Abrir as portas,
Tirar as trancas,
Abandonar as muralhas que te protegeram,
Viver a vida e aceitar o desafio,
Recuperar o sorriso,
Ensaiar um canto,
Baixar a guarda e estender as mãos
Abrir as asas
E tentar de novo
Celebrar a vida e se apossar dos céus.
Não te rendas, por favor, não cedas,
Ainda que o frio te queime,
Ainda que o medo te morda,
Ainda que o sol ponha e se cale o vento,
Ainda existe fogo na tua alma,
Ainda existe vida nos teus sonhos
Porque cada dia é um novo começo,
Porque esta é a hora e o melhor momento
Porque não estás sozinho, porque eu te amo
(Mario Benedetti)
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/category/colunas/mauro-iasi/