Êxodo sírio e “crise migratória” na Europa
Por Atilio Boron / Resumen Latinoamericano / LaHaine / 7 de setembro de 2015 – Ante a intensificação da denominada “crise migratória” surgiram vozes de governantes, políticos e supostos especialistas no tema assegurando que este não era um problema europeu, mas africano ou, em todo caso, do Oriente Médio. A estremecedora imagem do menino curdo-sírio jazendo inerte em uma Praia da Turquia depois de naufragar o barco em que junto de sua família tentava chegar até a ilha de Kos, na Grécia, comoveu a opinião pública mundial e colocou em destaque o imenso drama humanitário que está se desenvolvendo no Mediterrâneo. Não foi o primeiro que paga com sua vida a crise desatada pela desestabilização de um país. A Síria, infelizmente, converteu-se em alvo de sinistros cálculos geopolíticos dos EUA e de seus aliados que destruíram um dos países mais prósperos e estáveis da região. Nesse mesmo barco morreram outros cinco, um deles seu irmãozinho de cinco anos, além de sua mãe e um número indeterminado de adultos. Se ampliássemos o foco da análise para abarcar com a torrente humana procedente da África Subsaariana, o número de vítimas infantis seria esmagador, ainda que não exista registro fotográfico dele. Fica no ar a pergunta: por que se produz a crise? O que a dispara?
Para começar, é necessário um esclarecimento, porque a disputa pelo sentido é crucial para apresentar corretamente os termos do problema. Apenas se fala, indistintamente, de uma “crise migratória” como se esta fosse um transitório desequilíbrio no fluxo populacional entre a África Subsaariana, Oriente Médio e Europa. Porém, são migrantes ou refugiados? No caso dos sírios que fogem da devastação semeada em seu país, não existe a menor dúvida de que se trata do segundo, e o mesmo cabe dizer dos líbios, que deixam seus lares após a tragédia iniciada pela criminosa decisão de Washington e Bruxelas de empreender uma “mudança de regime” na Líbia. O caso da África Subsaariana é mais complexo, porque ali se misturam migrantes impulsionados pela fome e pela pobreza inescapável com setores, minoritários, que abandonam seus países por razões políticas.
Agora bem: por que o infeliz menino da minoria curda na Síria teve que deixar seu país? Porque, como dizíamos mais acima, o plano estratégico de Washington no Oriente Médio tinha como objetivo fundamental – porém já não mais, porque agora a Casa Branca tem outras prioridades na área! – provocar a queda da República Islâmica no Irã. Para isso, precisava destruir os apoios com que contava Teerã em seu entorno imediato e entre os quais sobressaía a Síria por sua localização geográfica, sua condição de país limítrofe com Israel e Turquia, sua população, sua economia e a prolongada estabilidade política do regime imperante. Em consequência, a “guerra civil” na Síria não é tal, pois se trata de uma agressão tramada de fora pelos EUA e seus parceiros europeus (igual como fizeram com a Líbia poucos anos antes) e onde grupos de atrozes mercenários são exaltados como heroicos “combatentes pela liberdade”, sendo respaldados política e diplomaticamente enquanto cometem toda classe de desmandos. Deste buraco criado pelas democracias ocidentais e seus sócios reacionários na região brotou, incontrolável, o Estado Islâmico, com luz verde para perpetrar horrendos crimes. [1] O resultado foi a entronização desse grupo terrorista em algumas regiões da Síria e Iraque, com sua interminável sequela de decapitações, degolas e destruição de veneráveis relíquias históricas, consumidas nas chamas do fundamentalismo jihadista.
Aylan Kurdi, tal é o nome do menino afogado, pereceu porque teve que fugir do inferno em que Washington e os governos europeus converteram sua pátria, apesar da heroica resistência do povo curdo que soube colocar freio à expansão militar do EI em seus territórios. E morreu também porque as autoridades do Canadá negaram três vezes a permissão para sua família asilar-se no país. O Primeiro Ministro britânico, David Cameron, acaba de acusar Bashar Al Assad e o Estado Islâmico de sua morte. Mente, porque sabe muito bem que o holocausto social da Síria não é um assunto doméstico, mas responsabilidade direta e criminosa dos governos que formam o condomínio imperial, que em seu afã por se posicionar mais favoravelmente no tabuleiro geopolítico mundial, não duvidam um instante em adotar políticas que confundem sociedades e provocam destruição e morte em seu caminho, precipitando assim a avalanche de refugiados que fogem para salvar suas vidas e a de seus familiares, com as consequências que todos lamentam.
Tanto no caso da Líbia como no mais atual da Síria, a intervenção imperialista foi precedida por uma cobertura midiática falaciosa que demonizou as figuras de Muammar El Kadaffi e Bashar al-Asad e deturpou a informação originada no terreno para justificar ex ante as cruéis táticas de desestabilização e caos social, econômico e político requeridas para tornar possível a “mudança de regime”, frase amável que substitui a mais brutal de “subversão da ordem constitucional vigente”. Mentiras que, nos casos da Líbia e Síria, são análogas às proferidas quando antes da invasão e destruição do Iraque a partir de Washington, Londres ou Paris, se denunciava a existência de armas de destruição massiva nesse pobre país, quando todos sabiam que elas não existiam e que o único país que as tinha nessa parte do mundo era Israel.
Agora o problema dos refugiados na Europa adquiriu proporções inéditas desde fins da Segunda Guerra Mundial, e indigna comprovar a indiferença de alguns governos europeus ante essa crise, ou a estupidez das políticas com as quais se pretende enfrentar a situação. Por exemplo, estabelecer ridículas cotas migratórias ante o desastre gerado na Síria e Iraque, para mencionar apenas os mais diretamente envolvidos na situação atual, que têm uma população conjunta de uns 55 milhões de habitantes. Ou o cinismo da Administração Obama, que acentua as políticas de desestabilização inerentes ao “império do caos”, segundo a feliz expressão de Pepe Escobar, porque, ao final, os refugiados não poderão cruzar o Atlântico em seus frágeis barcos e o problema deverá permanecer na Europa. Atitude semelhante adota ao atiçar a guerra civil na Ucrânia: em última instância, a batalha será travada como as duas guerras mundiais no cenário europeu e a destruição resultante beneficiará o apontamento da primazia global dos EUA ao enfraquecer, graças à guerra, seus principais competidores.
Ante as ridículas tentativas dos países europeus, ou da União Europeia, para “regular” o tsunami dos refugiados e os migrantes, sobretudo da África Subsaariana, convém recordar as clarividentes palavras de José Saramago: “O deslocamento do sul para o norte é inevitável; não serão alambrados, muros nem deportações: virão aos milhões. A Europa será conquistada pelos famintos. Vem buscando o que deles roubamos. Não existe retorno para eles porque procedem de uma fome de séculos e vem rastreando o cheiro da comida. A divisão está cada vez mais próxima. As trompetas começaram a soar. O ódio está servido e necessitaremos de políticos que saibam estar à altura das circunstâncias”.
A responsabilidade da Europa é muito maior, mais visível e inocultável no caso da África Subsaariana. Porque, quem ocupou, colonizou e saqueou por séculos o chamado “Continente Negro” se não as potências europeias? Quem organizou o tráfico de escravos através do Atlântico se não os governos e as classes dominantes da Europa? Não foram os africanos que saltaram sobre esta para saquear suas riquezas e escravizar suas populações. Ocorreu exatamente o contrário. Quem impôs seus interesses, perpetrou um etnocídio cruel e arrasou, com formas tradicionais de organização econômica, social e política, a África? Não foram por acaso os colonialistas europeus que repartiram esse continente, praticando uma pilhagem e redesenharam o mapa político para inventar fronteiras artificiais que dividiam velhas sociedades, etnias ancestrais e nações, convertidas em fragmentos destroçados, agora caprichosamente repartidos em diferentes “países” e semeando as bases de uma rivalidade que perdura até nossos dias? Não foram eles que impuseram o inglês, o francês, o português e outras línguas europeias como as oficiais daquelas arbitrárias criaturas políticas? Onde mais poderiam ir esses antigos súditos europeus que a suas metrópoles de outrora, quando a crise deixa sem futuro milhões de africanos?
Ou os colonialistas de hoje acreditam que poderão sair e não pagar a conta dos crimes e atrocidades cometidas por seus antepassados? Reclamam por acaso impunidade ou fingem desconhecer sua responsabilidade histórica? Para piorar, uma vez obtida a independência os tentáculos do neocolonialismo – reforçado agora pelo protagonismo dos EUA – se fundiram com mais força, acelerando a decomposição econômica, social e política dos territórios pós-coloniais. De novo: onde mais poderiam ir para buscar um alívio a seus sofrimentos se não à Europa? Como poderiam os governos europeus e seus mandatários dizer que a crise migratória, que tantas mortes causou, é “um problema africano” quando não é outra coisa que o inexorável e demorado resultado de sua passada expansão colonial?
Como evoluirá esta situação? Não é exagerado afirmar que a torrente de refugiados superou todas as previsões e nada autoriza a pensar que a situação irá melhorar porque nem Washington nem Bruxelas arquivaram seus planos de derrotar o governo sírio, acabar com o Hezbollah no vizinho Líbano e fechar o círculo em torno do Irã. O resultado desta macabra iniciativa só pode ser mais destruição, morte e renovados contingentes de refugiados golpeando as portas da opulenta Europa. Os EUA estão quase completamente isolados dessas dolorosas correntes de seres humanos que buscam uma vida minimamente digna, assim como a União Europeia está em relação ao fluxo migratório que desde o México, América Central e Caribe, se amontoa nas portas do império. A “solução” a qual se inclina a política dos EUA passa pelo reforço dos controles fronteiriços, as deportações e a construção do muro da fronteira com o México. Os países europeus não gozam das vantagens estadunidenses pela porosidade de suas fronteiras, sua heterogeneidade estatal e a proximidade dos países originários dos migrantes. Se o Ocidente acreditar firmemente em sua tão apregoada doutrina dos direitos humanos teria que modificar radicalmente sua política migratória e assumir sua responsabilidade na crise atual.
Porém, nem os EUA nem a União Europeia dão mostras de levar a sério os direitos humanos, sendo a única medida que aparece no horizonte europeu é uma política de maior controle migratório, fechamento de fronteiras, expulsão e deportação de migrantes ilegais. O ocorrido com os caminhões carregados de africanos mortos descobertos na Áustria ou a odisseia dos que tentam cruzar o Mediterrâneo demonstram os limites morais e práticos de tais políticas. Como recordava José Saramago, o projeto de parar esta avalanche humana construindo a “Fortaleza Europa” (ou a “Fortaleza Americana”) está condenado ao fracasso e não colocará fim a um êxodo cada vez maior, alimentado pelas iniquidades do capitalismo contemporâneo em sua projeção global e pelas estratégias norte-americanas de produzir uma “troca de regime”, por vias violentas como as evidenciadas na Síria e Líbia, no Oriente Médio e, também, não esqueçamos, em alguns países latino-americanos. Ante este quadro, o único sensato seria construir uma nova ordem econômica internacional que faça possível bem-estar desses povos e que permita acessar a uma vida digna dentro de seus respectivos países. Porém, o capitalismo é um sistema esencial e incorrigivelmente irracional e além disso nada indica que a sensatez seja um atributo de seus círculos dirigentes a ambos lados do Atlântico. O que fizeram com a Grécia é uma prova rotunda de que o único que importa é garantir a taxa de lucro de suas transnacionais. Assim, a única coisa que cabe esperar é a intensificação das migrações subsaarianas, o êxodo sírio e novas tragédias como a do menino Aylan.
Fonte: http://www.resumenlatinoamericano.org/2015/09/07/exodo-sirio-y-crisis-migratoria-en-europa/
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)