Bolívia: “A direita ainda não foi derrotada economicamente”
– Como explica o enfraquecimento da oposição depois de mais de dois anos de prova de força com o governo?”
Álvaro García Linera: O governo do presidente Evo viu a Assembléia Constituinte como apossibilidade de armar um grande bloco coletivo de todas as forças sociais do país. Nos jogamos de cabeça nesse projeto de pacto. Internamente no seio do povo, havia que coesionar o bloco popular, com muitas dificuldades, porque havia muita diversidade corporativa e em seguida havia que dar o passo seguinte de abertura para os outros setores sociais opositores, minoritários, mas importantes. E nisso demos mostras de vontade de flexibilizar posições políticas, de ceder em demandas e de incluir a todos. Mas o bloco social opositor havia definido uma estratégia de bloqueio ou de suspensão constituinte, isto é, de irresolução da estrutura de poder, e optou pela rejeição dos pactos constituintes várias vezes. Seu objetivo consistia em prolongar a crise do estado iniciada em 2000, enfraquecendo ao governo na espera de um momento em que a correlação de forças lhe fosse favorável para a resolução da crise. E nós, ainda assim, insistimos.
O debate sobre os chamados “dois terços”, no final de 2006, foi um primeiro ensaio do que estava em jogo e da decisão de um setor que não estava disposto a aceitar sua posição de minoría política democrática. Nos dois terços e no tema da onipotência da Constituinte cedemos, recuamos, mas ao mesmo tempo, como contrapartida, avançamos na consolidação de uma maioria social e política que também se convertia em uma maioria decisória constituinte. O segundo grande momento de confrontação foi o tema da capitalidade de Sucre. Desenterrou-se um tema centenário, causador da guerra civil de 1899, como ponta de lança para voltar a suspender a Constituinte. Ai o bloco opositor, cívico-prefeitural de direita, nos mostrou que estava disposto a tudo, inclusive a colocar em risco a vida de constituintes contanto que conseguisse inviabilizar a possibilidade de um pacto nacional constituinte. E nós, frente a esse cenário voltamos a fazer grandes concessões.
Visto à distância, a direção cívica sucrense, que era empurrada pelas elites cruzenhas, estava obtendo uma grande quantidade de conquistas: quase um terço das sessões do Congresso em Sucre, os escritórios do Defensor do Povo, da Procuradoria, talvez da Corte Nacional Eleitoral, um conjunto de instituições que lhe davam uma relevância administrativa e econômica em Sucre, além de uma viabilização mais rápida de um conjunto de obras de infraestrutura. Mas eles tampouco aceitaram. E comprovando que não havia nenhum interesse de fazer um acordo, mas de antagonizar indefinidamente, nos lançamos à aprovação da Nova Constituição, primeiro em Calancha e em seguida já em Oruro. Isto é, resolvemos definir pela via das maiorias constituintes a estrutura do poder estatal.
– Nesse momento você falou de um “ponto de bifurcação”.
Álvaro García Linera: Sim vou chegar ai. Apesar de tudo isto, fizemos uma nova tentativa, fomos buscar a Rubén Costas, a Leopoldo Fenandez na sua fazenda, fomos buscar a Branko Marinkovic e por último propusemos ao pessoal de Jorge Quiroga um processo de destravamento. Aí vimos, de maneira inquestionável, que havia um setor minoritário que ia impedir por todos os meios a solução, através do projeto nacional-popular, da crise estatal iniciada em 2000. Claro que nós precisávamos da Constituinte para constituir o novo Estado, para ancorar nas instituições e relações de mando duradouras do Estado, a nova correlação de forças conseguida pelo movimento indígena-popular no ciclo de mobilizações de 2000-2005. No fundo, uma Constituição, o que faz é solidificar uma série de pontos de apoio irreversíveis, de conquistas e mandos conquistados historicamente pela trama das lutas de poder de uma sociedade.
A prova final dessa vontade de confronto da oposição minoritária de direita veio quando se lançaram à convocação das consultas departamentais sobre os estatutos autonômicos a ser realizadas em maio de 2008. Tratava-se de uma busca de disputa de fato pelo poder político regional, de um tipo de poder dual regionalizado ou de cisão vertical antagonizada da estrutura do Estado. Chegando ai, não haveria ponto de retorno: a direita não estava disposta a ser incluída no projeto nacional-popular como força minoritária e dirigida, e optava pela conflagração territorial. A luta pelo poder se aproximava do momento de sua resolução bélica ou última, na medida em que em última instância, o poder do Estado é coerção. A isto é que denominamos de “ponto de bifurcação” ou momento em que a crise do Estado, iniciada oito anos antes, se resolve seja mediante uma restauração do velho poder estatal ou mediante a consolidação do novo bloco de poder popular. É o momento de inicio da nova ordem estatal de maneira autoproducente. E tudo isso mediante o desatamento, a mensuração ou a confrontação de força aberta dos dois blocos polarizados. O ponto de bifurcação é o momento excepcional, curto em sua duração, primário, mas decisório, em que o “príncipe” abandona a linguagem da sedução e se impõe por suas táticas bélicas de coerção.
Então já era questão de tempo a chegada desse dia de força e nós, entre maio e setembro de 2008, nos preparamos para esse momento. Foi um momento bélico ou potencialmente bélico. A direita golpista realizou suas consultas e iniciou gradualmente a conformação de pequenos poderes regionais que desconheciam ao governo. Nós entendemos esse sinal e nos jogamos em uma estratégia envolvente, como a chamam os militares. Tanto pelo lado dos mecanismos coercitivos do Estado, como pela via da mobilização social. Em maio se faz uma análise com as organizações sociais e com as próprias Forças Armadas, avaliando os principais riscos que havia no país e se instrui a preparação de planos de contingência diante da eventualidade de uma radicalização da estratégia golpista da direita.
Nesse momento se faz um primeiro plano de contingência de uma grande mobilização na defesa da democracia que não se executa, mas que já estava elaborado, tanto no plano social, como no militar. Em agosto, apostaram numa derrota eleitoral do governo, a fim de tirar-nos legitimidade democrática, mas ganhamos o referendo revocatório. Longe de retroceder no apoio democrático, o governo incrementou sua aceitação de 54% do eleitorado a 67%, consolidando uma maioria social em todo o território nacional, incluindo em regiões anteriormente dominadas pela oposição. Isso enlouqueceu à direita. Depois de dois anos de estratégia de bloqueio constituinte, agora pretendiam uma rápida recuperação do poder, começando do âmbito departamental. Mas o referendo revocatório ampliava a legitimidade nacional do governo do presidente Evo e irradiava a força política do bloco indígena-popular para a totalidade dos nove departamentos. Em vez de entender o momento, a direita decidiu atacar.
As regras da guerra e da política, que é a continuação da guerra por outros meios, ensinam que quando um opositor é forte não deve ser atacado diretamente e quando um exército é débil nunca deve promover nem aceitar encarar uma batalha diante de um adversário mais forte. A direita fez exatamente o contrário deste ABC da luta pelo poder. Enlouquecida, se lançou ao confronto, no momento de maior fortaleza político-eleitoral do governo e de maior incerteza da existência da base de apoio da direita e ai começou sua derrota.
Depois dos resultados do referendo aprovatório em agosto, o bloco cívico-prefeitural começou uma escalada golpista: invadem as instituições, esperamos; atacam a polícia, esperamos; destroem e saqueiam as instituições públicas em 4 departamentos, esperamos; desarmam a soldados, esperamos; tomam aeroportos, esperamos; destroem gasodutos, esperamos. Eles mesmos se lançam, desarvorados, a um beco sem saída. Usam a violência contra o Estado, dando a justificativa moral de uma resposta contundente do Estado contra eles, que começou a ser desatada em uma escala gigantesca; além disso, à medida que incendeiam e saqueiam instituições públicas se deslegitimam diante da sua própria base social, ficando em poucas horas como um punhado de violentos destruidores da institucionalidade.
– Aí acontece o de Pando
Álvaro García Linera: O prefeito desata o massacre de Pando, em uma tentativa de dar um sinal de punição dura aos líderes populares… e este ato acabou com a tolerância da totalidade da sociedade boliviana. O massacre de camponeses igualará aos prefeitos com seus mentores, Sánchez de Losada ou García Mesa e colocará nas mãos do Estado a obrigatoriedade de uma intervenção rápida, contundente, na defesa da democracia e da sociedade. E sem duvidar um segundo, atacar o elo mais fraco da cadeia golpista, Pando. Se tratará do primeiro estado de sítio na história boliviana ditado na defesa e na proteção da sociedade, encontrando o pleno apoio da população horrorizada pela ação dos golpistas, deterá em seco a iniciativa cívico-prefeitural, dando lugar à sua retirada desordenada. É o momento de uma contraofensiva popular, cuja primeira linha de ação serão as organizações sociais e populares do próprio departamento de Santa Cruz. Não apenas camponeses e colonizadores se mobilizaram, mas também gente dos bairros plebeus de Santa Cruz e especialmente jovens urbanos, que em memoráveis jornadas de resistência às bandas fascistas, defenderão seus distritos e quebrarão o domínio clientelístico das logias cruzenhas.
A contundência e a firmeza da resposta político-militar do governo contra o golpe, somada à estratégia de mobilização social em Santa Cruz e para Santa Cruz, criou uma articulação virtuosa social-estatal poucas vezes vista na história política da Bolívia. Essa era a dimensão e a extensão geral do “exército” e das “divisões mobilizadas” contra o golpe. Essa era a força de choque que o projeto indígena-popuar desatava para o momento decisório de força. A direita avaliou suas forças de choque isoladas e em debandada, comprovou a vontade política do mando indígena-popular que estava disposto a tudo e preferiu abdicar de seus propósitos e se render. Desta forma, se fecha o ciclo da crise estatal, da polarização política e se imporá, em uma medição bélica de forças, a estrutura duradoura do novo Estado.
Algo parecido aconteceu em 1985, quando mineiros, que eram o núcleo do Estado nacionalista, se renderam diante das divisões do exército que resguardava o projeto neoliberal. Hoje correspondeu ao bloco empresarial-latifundista assumir a derrota e dar passo a uma nova correlação de forças políticas da sociedade. A seu modo, setembro-outubro de 2008 terá o mesmo efeito estatal que a derrota da “marcha pela vida” dos mineiros em 1986. Só que agora será o bloco plebeu quem festejou a vitória e as elites endinheiradas terão que assumir sua derrota histórica. O que virá depois será a validação político parelamentar desse triunfo popular. Apoiados nas vitorias eleitorais e militares, o governo indígena-popular levará à consagração institucional da correlação de forças conseguida no momento do “ponto de bifurcação”. E isto será feito mediante a aprovação congressual da Nova Constituição Política do Estado.
O Congresso se transformará por uns dias em uma espécie de Congresso Constituinte que articulará o trabalho da Assembléia Constituinte fechada nove meses antes, os acordos governamentais governamentais com o bloco minoritário de prefeitos conservadores nas semanas prévias e a deliberação popular da marcha empreendida pelas organizações operárias, indígenas, camponesas e populares que sob a direção do presidente Evo, chegou à cidade de La Paz desde Caracollo.
Sob as novas circunstâncias, estava claro que o eixo articulador indígena-popular do Estado se impunha por seu próprio peso na ordem estatal constitucional. Mas, ao mesmo tempo, o resto dos setores sociais eram articulados a partir de seu próprio debate na Assembleia Constituinte (classes médias, setores empresariais medios e pequenos, etc.) Inclusive o bloco conservador rentista da terra, expresso politicamente pelos prefetos cívicos, foi levado em conta, mas claro que como sujeito social dirigido pelo novo núcleo estatal indígena-popular, e em menor intensidade pelo que poderia ter conseguido se assumisse a convocação pactista de 2006-2007. Não se pode esquecer que este trabalho político também servirá para arrebatar à direita a bandeira autonômica, atrás da qual havia dissimulado a defesa do latifúndio e do rentismo empresarial.
Desta forma, o bloco nacional-popular não apenas se consolidava materialmente na estrutura estatal, como assumia o mando dos três eixos discursivos da nova ordem estatal que guiaram todos os debates políticos nas décadas seguintes: plurinacionalidade, autonomia, condução estatal da economia. Visto à distância, apesar de toda a conflitividade dos três anos, em termos dos resultados duradouros, as coisas não poderiam ter sucedido de melhor forma para o bloco nacional-popular no poder. No final, as condições de concessão aos adversários são muito maiores em um pacto constituinte que os reconhecimentos e inclusões cedidas a um adversário abdicante e derrotado, pelo que a história nem sempre transcorre pelo lado ruim, como acreditava Hegel.
Em agosto se consolida a vitória eleitoral, em setembro a vitória militar e em outubro (com a aprovação congresual do referendo constitucional) a vitória política. E, com isso, certamente, se fecha o ciclo constituinte e, a partir desse momento, se inicia a estrutura da orden unipolar da nova ordem estatal.
– Até onde o enfraquecimento tão notório da oposição poderia transferir as tensões para o interior do bloco oficialista, levando em conta que uma oposição movilizada é sempre muito efetiva para coesionar às próprias bases?
Álvaro García Linera: Eu não creio, no entanto, que a oposição tenha sido desarticulada definitivamente. A oposição não tem um projeto de poder, carece de discurso mobilizador e tem um poder de veto gigante em muitas coisas. Continua sendo um adversário perigoso. Certamente que no âmbito econômico o Estado conseguiu dar golpes contundentes no desmonte de uma parte do poder econômico opositor: a burguesia rentista e intermediária já não tem as empresas petrolíferas como financistas generosas de suas rendas. A rede clientelista agrária que os rentistas da terra criaram no âmbito agroindustrial se enfraqueceu enormemente com a presença da empresa estatal de alimentos EMAPA e a presença pública na cadeia sojera, trigueira, arrozeira, chega a entre 20 e 30% do total da produção. Mas o bloco opositor irredutível ainda conserva outros espaços importantes de poder agrário, comercial e financiero, e isto lhe dá finalmente poder de agregação, de pressão e de confrontação. Mas hoje, e isto pode durar alguns anos, o que não tem é um projeto de Estado; quanto tempo ainda não o terá, não se sabe, mas tem um projeto de tratar de impedir que siga avançando o projeto popular. À diferença das classes populares, que em 1985 forma derrotadas e materialmente foram desestruturadas para dar lugar a um ciclo lento de reorganização, a direita, não.
A direita sofreu um golpe político, perdeu o mando do Estado, perdeu a capacidade de seduzir estatalmente à sociedade, mas tem muito poder econômico ainda. É diferente a forma de consolidação do ponto de bifurcação quando é o setor popular o derrotado, política e materialmente, que quando se trata do setor empresarial, porque pode perder no plano político, mas conserva poder econômico que lhe permite ter poder de veto permanente. Então segue aí esse adversario, fragmentado, desorientado, mas como adversário e com capacidade de bloqueio. Mas nesse cenário em que a contradição fundamental se apaziguou, se debilitou, surgem maiores possibilidades de tentações no interior do núcleo central, é verdade. Mas por que não conseguiram prosperar o que na história de muitos partidos são tendências fraccionistas no interior do núcleo dirigente? Por vários motivos. Em primeiro lugar, sem dúvida, pela liderança avassaladora do presidente Evo na estrutura política e social do Estado e da própria sociedade. Hoje, a figura, o carisma e a adesão que conseguiu o presidente Evo é de tal magnitude que limita objetivamente a existência de outra liderança que pudesse disputar a base social do governo e da sociedade.
Mas há outro elemento relevante que explica os limites materiais de um fraccionalismo no interior do governo: a ausência de facções com poder econômico. O controle de ministérios habilita a ter influência, redes, que permitem constituir facções econômicas. É preciso não esquecer que somos um Estado que passou a investir de 600 a 2.300 ou 2.400 milhões de dólares e é normal que em qualquer parte surjam facções do poder econômico, núcleos que controlam decisões, fábricas, rendas, força de trabalho. Acontece no Brasil, na Argentina, na Venezuela. Mas aqui se criou, até agora e de uma maneira sistemática e vigiada, uma estrutura laboral governamental que impediu a consolidação de núcleos consolidados de influência e de poder econômico, não digamos de propriedade, com capacidade de desempenho e de presença política autônoma no interior do governo.
Nisso vários fatores intervieram: elevada rotação de funcionários, um controle presidencial do funcionamento diário dos ministérios, mas também uma moral interna, uma espécie de espartanismo governamental reivindicador de uma ética do serviço público que limitou, até hoje, a cristalização de facções de poder econômico que são as que alentam potencialmente o faccionalismo político. Isso permitiu que exista um núcleo muito duro e coeso em torno do Presidente que ajuda a que internamente não emerjam tendencias centrífugas.
– Esta é a tentativa de construir uma moral do serviço público no núcleo de decisões do governo? Mas o que passa na base? Víctor Paz Estenssoro explicou o fim da Revolução Nacional quando os empregos a repartir eram menos que os militantes do MNR. Não pode aconteder a mesma coisa com o governo do MAS?
Álvaro García Linera: Paz Estenssoro assumia essa pressão do militante arrivista como um hábito político, em continuidade com uma lógica de prebendas que nunca buscou superar. Na Bolívia, desde o século XIX, a atividade política foi vista como um meio de ascensão social mais que um meio para o serviço das res publica. De fato, a estrutura material das classes sociais na Bolívia opera de tal forma que os procesos de enclassamento e de desclassamento não dependam tanto do capital cultural para ascender socialmente, mas do capital político, isto é, das redes e influências políticas que garantem o acesso a bens privados. Isto, que era um monopólio exclusivo de casta e de familia até 1952, desde aquele momento se ampliou para classes medias e niveis de direção do sindicalismo operário.
Na atualidade há setores que pressionam e reivindicam uma maior “democratização” desta forma de prebendas da ação política e reivindicam o direito a um cargo público pelo fato de pertencer a alguma direção regional do MAS. Diante dessa pressão e da degeneração da militancia política, o governo foi muito contundente na sua rejeição e punição. Por que expulsamos a Adriana Gil em 2006? Por isso, porque naquele momento tinha se formado um nucleo de militantes massistas que tomaram uma instituição para pedir que eles ocupassem cargos. Em abril do mesmo ano foram expulsos os que queriam continuar com o velho hábito da militância como acesso a um cargo público. A partir daquele momento, o proprio Presidente não somente colocou em prática uma ética política da gestão pública como serviço, como foi claríssimo que os companheiros que se reinscrevem como militantes do MAS não devem esperar fazer parte das estruturas organizativas do Estado e que, ao contrário, devem se esforçar por para fortalecer a estrutura organizativa e ideológica do partido. Se comparamos as mudanças no pessoal do Estado, entre nossa gestão de governo e as precedentes, se constatará que nós não fizemos nem 20% das mudanças feitas pelas administrações anteriores. Nos tempos do MIR, da ADN, do MNR, nem os porteiros nem as cortinas dos despachos se salvavam da “varrida” partidária. Para nós, então não é uma preocupação que existam muitos militantes e poucos cargos; ao contrário: se você é um militante, então não tem cargo. E isto nós enfatizamos sob a concepção da política como uma espécie de longo “serviço militar” para servir à sociedade.
– Mas isto não impede a formação de quadros no interior do proprio MAS?
Álvaro García Linera: Este é um grande problema, nem tanto pelo tema. Uma das grandes debilidades da nossa estrutura política, deste proceso, é a ausência de quadros políticos e técnicos. Nas revoluções mundiais, os partidos que ascenderam ao governo tiveram previamengte décadas de preparação e seleção de quadros que lhes permitiu assumir com maior musculatura organizativa as transformações da sociedade. O próprio MNR, que se formou nos anos 30, teve mais de quinze anos de formação antes de aceder ao governo. Mas o MAS, que surgiu em 1995 como estrutura política local, recém em 2000-2001, se colocou a temática de uma estrutura nacional com vontade de poder e em 2005 já era governo. São apenas quatro anos de preparação. E isto gerou dificuldades, já que no núcleo político básico, o MAS não é uma estrutura de quadros, mas uma coalizão flexivel de movimentos sociais.
Fez-se um esforço para potencializar a parte organizativa dos quadros, mas o rápido crescimento no plano urbano obrigou a reafirmar a disciplina militante sindical diante das práticas mais liberais e de prebendas nos âmbitos urbanos.
Quando se forma o partido, a estrutura, digamos assim, de quadros funcionais urbana, era paralela à estrutura sindical agrária e compatilhavam os niveis de decisão política. Mas já no governo, uma parte da estrutura urbana se dedicará a buscar cargos, o que, para limitar esse tipo de desvíos e práticas se decide, desde 2007, que nos níveis nacional, departamental e regional das estruturas partidárias assumam o mando as organizacões sociais.
– Então de onde vêm os cargos?
Álvaro García Linera: Desde que somos governo, se reforçaram os mecanismos de seleção meritocrática nos níveis técnicos da administração pública, enquanto que os cargos de confiança política passam pelo filtro das organizações sociais nacionais. Desde 2007, a postulação a cargos de confiança política já não passa pelas listas das direções departamentais.
– Em relação ao caso Santos Ramírez, como afetou o projeto econômico do governo, considerando que YPFB é uma empresa emblemática deste proceso?
Álvaro García Linera: YPFB não é apenas uma empresa emblemática, é a empresa que sustenta econômicamente o país e a base material da soberania reconquistada. Tem um fluxo de caixa de cerca de 3,3 bilhões de dólares e, para a Bolivia isto é muitíssimo dinheiro. Em termos de propriedade, YPFB controla, em nome do Estado, entre 2,2 e 2,3 bilhões de dólares. Hoje 50% das nossas exportações são petróleo e gás e essas exportações passam por YPFB. É o coração da economia boliviana e deve ser uma das vinte empresas mais importanes da América Latina. Por isso, as primeiras informações sobre a corrupção em YPFB foram um golpe muito duro porque golpearam a empresa emblemática do país, mas afetaram ao mesmo tempo a um companheiro que era evidentemente no futuro um dos mais possíveis sucessores de Evo na liderança política do MAS. E diante dessa difícil situação, se respondeu de maneira imediata e com a mesma firmeza: afastar Ramirez, imediatamente, da direção da empresa e apoiar públicamente as investigações do Ministério Público. Rompendo, assim, com a velha tradição dos partidos tradicionais de ocultar, adiar e finalmente encobrir os atos de corrupção de seus militantes com peso político, nós decidimos emitir um novo sinal: no governo e diante dos intereses do povo, não há amigos, não há familiares, não há militantes, não há compadres, nem comparsas. Há servidores ou corruptos e estes últimos devem ir para a prisão sem nenhuma consideração. Não podemos permtir nenhuma sombra ou uma suspeita de erro no nucleo dirigente.
A instrução foi clara: que se encarregue a Justiça e que ninguém pressione. Se esteve muito atento a que nenhum nivel do Estado interfira, pressione, insinue nada a favor de Santos. Mas o dano está feito. Houve que passar meses para ir curando essa ferida. Mas, uma vez mais, se nota a ausência de quadros. Daí que tivemos que aprovar uma lei que permita pagar salários mais altos que o do Presidente para quadros técnicos de empresas estratégicas. É a nossa forma local da NEP (Nova Politica Econômica, na Rússia pós-revolucionária) de Lenin. O objetivo da NEP, além de aliança com os camponeses, era fundamentalmente recrutar técnicos para administrar os níveis subalternos do Estado, levando em conta que se bem o Estado é uma estrutura política, tem níveis burocrático-administrativos e técnico-cientificos que requerem conhecimentos e saberes que não podem ser adquiridos nem transformados rápidamente. Lenin, para terminar com a catástrofe econômica que ocorreu imediatamente depois da revolução, teve que recontratar técnicos do antigo Estado, até criar gradualmente uma admnistração mais simples. E instruiu: abaixo de cada técnico coloquem um jovem para que aprenda e nós estamos fazendo a mesma coisa. Já iniciamos isso em 2006: se muda a organização e as pessoas dos níveis de decisão da administração pública (ministros, vice-ministros e alguns diretores), mas não se toca na estrutura secundária da administração estatal do Estado, até formar quadros estatais, jovens, que substituam aos antigos quadros.
Agora temos novos desafíos: empresas estatais que se agigantam em um, dois ou tres anos. Necessitamos gente competente, que é preciso recrutar no mercado de trablho. Dai a via que adotamos: mando político comprometido nos níveis de decisão e funcionários técnicos de primeira com salários muitas vezes superiores aos dos próprios gerentes das empresas em que trabalham. Passa isto com Carlos Villegas, ele gana 13.000 bolivianos enquanto um gerente de Andina pode ganhar 60.000 bolivianos
ou 15.000 dólares; por enquanto não nos resta outra opção, até que se consiga formar uma nova geração de servidores públicos com grande eficiência técnica, mas, além disso, com compromisso político que permita novamente igualar a escala salarial.
– No governo há uma narrativa muito atraente em torno da descolonização, há um decreto, um vice-ministério de descolonização… como se mediatiza este objetivo em termos de políticas culturais e educativas?
Álvaro García Linera: A descolonização tem várias dimensões e é um elemento forte do projeto de poder dos movimentos sociais. Recebemos uma sociedade colonizada até o fio do cabelo, no plano econômico havia que pedir esmola a países estrangeiros para pagar salários, no plano político havia que pedir autorização às embaixadas para escolher ministros, no plano espiritual, as pessoas acreditavam que o poder era um argumento de pele e de sobrenome, no plano mental, as pessoas achavam que tudo o que chegava de universidades estrangeiras era saber e o resto era folclore. Para derrubar essa muralha que esmagava a energia vital dos bolivianos, o primeiro passo que adotamos foi a descolonização política: tomar decisões como país sem consultar a governos estrangeiros. Aqui o ministro de governo tinha que passar pelo visto da embaixada dos Estados Unidos, o ministro da Fazenda pelo visto do Fundo Monetário Internacional ou do Banco Mundial. Um segundo momento é a descolonização econômica, o que em termos reais significa romper com o fluxo de externalização do excedente: a sociedade gera um excedente e por distintas vías – poéticamente, as veias abertas da América Latina – esse excedente se transfere em quantidades incontáveis para o exterior.
A descolonização significa, então, a ruptura desses fluxos de sangramento, para que o excedente gerado seja reinjetado outra vez no país, que é o que fizemos com o decreto de nacionalização e com a gradual recuperação das empresas públicas e com as políticas de tipo de câmbio, com as políticas impositivas em relação às remessas dos lucros… o melhor exemplo é o government take petrolero. O government take varia entre 65 e 77%, quando antes era de 27%, isto é, do lucro dos hidrocarburos só 27% ficava na Bolívia. Hoje de cada 100 dólares de lucros entre 65 nos campos menores ou 77 nos grandes campos, fica no país. Esta é a base material da soberanía econômica.
Em seguida vem o outro âmbito, mais duradouro e mais complicado, que é a descolonização cultural e espiritual da sociedade. A quebra do paradigma colonizador foi dado pela própria sociedade, ao eleger, pela primeira vez na história do país, a um presidente indígena. E a partir desse momento, toda a simbología colonial que aprisiona a vida e a alma, começou a se ser rompida irreversivelmente. Hoje temos um índio camponês governando a Bolívia, diante do que os militares tem que pedir audiência, cortes e governantes render honra…
A descolonização cultural tem então dois eixos que devem ser abordados complementarmente. Um se refere à diversidade de culturas, de idiomas, de história e de memórias. O outro eixo se refere à diversidade de civilizações, isto é, de modos de produção de sentido da vida, do tempo, da política. A descolonização no primeiro dos eixos, o cultural, é mais fácil de conseguir e já há experiências em outras sociedades multiculturais (Bélgica, Índia, Canadá…): ensino em vários idiomas, administração pública plurilingüe, narrativa histórica plural dentro da história nacional comum, que vem a ser uma história nacional de varias nações, etc. A escola e a universidade vão ensinar obrigatoriamengte em três idiomas: castelhano – como idioma de integração -, uma lingua estrangeira – como idioma de comunicação com o mundo – e um idioma dominante na região (aymara em La Paz, quechua em Cochabamba e guaraní em Santa Cruz). No âmbito do Estado, os funcionarios públicos devem aprender um idioma indígena também de acordo com a zona. O mesmo deve ocorrer com as publicações, os discuros estatais públicos. E seguindo no plano cultural, a descolonização da memoria, a reivindicação oficial de outros heróis, das datas dos povos indígenas. A história diversa, mestiça e indígena, tem que ser oficializada nos textos de ensino.
O que é mais complicado é a descolonização do ponto de vista civilizatório; isso tem a ver já com a matriz organizativa e cognitiva das pessoas. No âmbito da educação, se trata de reivindicar outros saberes, outras construções discursivas, não necesariamente escritas, do conhecimento; como vamos conseguir isso, é parte de um debate interno no governo; como vamos preservar como patrimônio público o que está escrito nos têxteis (tecidos aymaras), como saber do Estado? É um debate complicado. Na área da saúde já se deram passos maiores, por exemplo, colocando junto ao médico ao “naturista”, ou ao lado da enfermeira e a parteira e as pessoas podem optar no centro médico. É um prototipo de saber e de procedimento médico que o Estado está começando a institucionalizar, ainda que não há ainda uma regulamentação deste saber local disperso, mas que corresponde a outra civilização, nao somente a outra cultura.
Outra lógica de entender o que é a morte, a vida, o sangue, a comida. No âmbito político tambem avançamos ao incorporar a democracia comunitária como uma das democracias legítimas legítimas no modo de produção de decisões do Estado. Ou a incorporação do controle social pela via das estruturas sindicais, associativas, comunitárias, para a administração do Estado. E no plano econômico incorporamos, reconhecemos, fomentamos e financiamos as estruturas comunitárias da sociedade como parte da área produtiva que tem que decidir uma parte do investimento do TGN. Trata-se de um proceso complexo e longo. Mas já começamos a dar passos decisivos.
– Ao escutar a Evo Morales se adverte sobre uma defasagem entre seus discursos na defesa da Pachamama, da terra e do territorio, mais para fora, e um discurso mais desenvolvimentista para dentro, incluindo denúncias das ONGs que promovem uma Amazônia sem petróleo. Como você explica isso?
Álvaro García Linera: Está claro que a lógica produtiva camponesa e comunitária se baseia em um tipo de racionalidade produtiva localmente sustentável com a natureza, porque tem como fundamento uma lógica de adiantamentos e restituições entre gerações. Trata-se de um fato material que para garantir o alimento dos hoje presentes, tem que fazer preservando as condições alimenticias para os que virão depois, o que leva a uma leitura dialógica e a um vínculo sustentável a longo prazo com a natureza. A forma como se racionaliza e se verbaliza isso dá lugar à ritualidade dialogante com a natureza, enquanto corpo vivo ao que se lhe pede autorização, se lhe pede o necessário para a reprodução e se lhe devolve em seguida e se mantêm esse corpo para garantir a longo prazo este intercâmbio metabólico entre ser humano e natureza. Tomando um conceito de Marx ao estudar a comuna rural na India nos Grundrissen, na civilização camponesa, a natureza se apresenta então como uma externalização orgânica da subjetividade. Por tanto você não pode destruir teu próprio corpo a não ser que seja um suicida.
O movimento camponês defendeu e vai defender uma forma de uso que hoje chamamos de racional da natureza, oposto aos procesos de depredação própria da civilização do valor-lucro. Daí que na América Latina no movimento indígena-camponês tenha existido uma construção discursiva militante na defesa das potencias da natureza diante da depredação expansiva da exploração capitalista. Com o tempo, esta lógica produtiva agrária e camponesa se tornou uma lógica política do enfrentamento com o Estado desenvolvimentista neoliberal.
O tema se torna mais complexo quando são os camponeses-indígenas, anteriormente excluídos da cidadania e do poder econômico, que se tornam bloco dirigente e condutor do Estado e as comunidades se tornam parte do Estado, que é o que nos está pasando na Bolivia. Então, por um lado, se leva para o âmbito estatal esta lógica da relação dialogante com a natureza; mas ao mesmo tempo enquanto você é Estado, necesita recursos e excedentes crescentes para atender necesidades básicas de todos os bolivianos e dos mais necessitados, como as comunidades indígenas e populares andar com seus proprios pés. Expandir como política de Estado a proteção do meio ambiente, o uso sustentável da natureza, mas ao mesmo tempo necesita produzir em grande escala, implementar processos de industrialização expansiva que te habilitem excedente social para sua redistribuição e para o apoio a outros procesos de modernização camponesa e comunitária artesanal.
No caso da exploração de gás e de petróleo no norte pacenho, o que buscamos é produzir hidrocarburos para equilibrar geográficamente as fontes de riqueza coletiva da socidade, gerar excedente e simultaneamente preservar o entorno espacial em coordenação com as comunidades indígenas. Hoje não estamos abrindo passo no norte amazônico para que entrem a Repsol ou a Petrobrás. Estamos abrindo passo na Amazônia para que entre o Estado.
– E quem assegura que o Estado não seja tão depredador como as empresas transnacionais?
Álvaro García Linera: É preciso cuidar que ele nao seja assim. E certamente haverá uma tensão lógica social-estatal de um uso sustentável da natureza e da necessidade social-estatal de gerar excedentes (lucros) económicos a cargo do Estado. Trata-se de uma tensão como o é o “Estado de movimentos sociais”, entre democratização do poder e monopólio de deicsões (movimiento social/Estado). É preciso viver com essa contradição vital da história. Não há receita, é obrigatório tirar gás e petróleo do norte amazônico de La Paz. Por que? Porque necesitamos equilibrar as estruturas econômicas da sociedade boliviana, porque o rápido desenvolvimento de Tarija com 90% do gás vai gerar desequilibrios a longo prazo. Igualmente, se requer excedentes económicos para reforçar estruturas comunitárias, para expandi-las, para buscar modos de modernização alternativos distintos da destruição das estruturas comunais, como vem acontecendo até hoje. E, ao mesmo tempo, é necessário impulsionar, em acordo com as comunidades, uma produção hidrocarbonifera não depredarora do entorno.
– Se as comunidades dizem que não, o Estado entrará de qualquer maneira?
Álvaro García Linera: Aí vem o debate, o que aconteceu? Quando consultamos à CPILAP (Central de Povos Indígenas de La Paz), nos pediram que fossemos consultar com Bruxelas com seu escritorio de advogados e que respeitássemos os enunciados ambientais publicados pela USAID. Como é isso então? Quem está impedindo que o Estado explore petróleo no norte de La Paz: as comunidades indígenas Tacanas, uma ONG, ou países estrangeiros? Por isso, fomos negociar comunidade por comunidade e encontramos ali o apoio das comunidades indígenas para levar adiante a exploração petrolífera. O governo indígena-popular consolidou a longa marcha dos povos pela terra e pelo territorio. No caso dos povos indígenas minoritários das terras baixas, o Estado consolidou milhões de hectares como territorialidade histórica de muitos povos de pequena densidade demográfica; mas junto ao direito à terra de um povo está o direito do Estado, do Estado conduzido pelo movimiento indígena-popular e camponês, de sobrepor o interesse coletivo maior de todos os povos. E assim vamos proceder daqui para frente.