Venezuela – entrevista com Amílcar Figueroa
Entrevista publicada no semanário Sermos Galiza, número 176.
Carlos Morais entrevista Amílcar Figueroa, historiador, destacado militante da esquerda revolucionária venezuelana, ex-Presidente Alterno do Parlamento Latino-americano (2006-2008 e 2008-2010), membro da Presidência Coletiva do MCB.
Os resultados das eleições parlamentares de 6D (6 de dezembro) foram adversos para o chavismo. Podemos interpretá-los como início do fim do processo bolivariano?
Os números apresentados pelo 6D expressam uma correlação político-eleitoral que de maneira nenhuma é imóvel. É necessário observar como continuam se comportando as variáveis que incidiram nesse resultado que, ainda quando dá às direitas uma vantagem para além de qualquer prognóstico quanto à quantidade de deputados obtidos (112 de 167), sendo mais o produto de uma abstenção de certa porção do eleitorado chavista (1.978.629) que de um aumento demasiado avultado da oposição (343.434 votos). Além disso, votaram a favor do processo 5.608.950 eleitores, contingente nada desprezível considerando as condições do momento político onde se levaram a cabo ditas eleições.
Uma revisão realista e de leitura profunda das razões do descontentamento no interior da militância bolivariana se impõe como uma necessidade urgente e é, também, um condicionante para a recuperação das forças revolucionárias.
Quais são as causas reais desta insatisfação de amplos setores populares com a Revolução? A guerra econômica promovida pelos Estados Unidos expressa em desabastecimento de produtos básicos, dolarização, inflação, sabotagem elétrica… é a principal explicação, ou temos que buscar causas no interior do chavismo, como a burocracia parasitária, a corrupção, lutas internas entre as frações mais conservadoras do movimento bolivariano, a infiltração da contrarrevolução em um aparato de estado burguês que, após 17 anos, se mantém intacto?
São vários tipos de problemas. A queda do preço do barril de petróleo afeta as margens de manobra do Estado venezuelano. Lembremos que nossa sociedade possui um déficit histórico de produtividade. Sua economia, por um século, dependeu fundamentalmente da receita petroleira. É claro que a severa baixa no preço do barril ia ter incidência. Chegou-se a um ponto no qual apenas por vontade política as políticas sociais foram mantidas. Não é possível administrar a crise capitalista para avançar na reforma social progressiva, que vinha se desenvolvendo no caminho da construção do Estado Comunal. Era preciso se chocar com a burguesia e no processo bolivariano, certamente, tinham se dado transformações sem se produzir um choque frontal com a mesma. Nunca, por exemplo, se peitou o capital financeiro, mecanismo de onde poderiam sair os recursos que compensariam a baixa na receita petroleira. O que quero dizer é que tinha chegado o momento em que não poderiam coexistir os dois modelos. A burguesia, com séculos de aprendizagem no exercício da dominação, ainda que não tenha parado nunca sua luta contrarrevolucionária, aguardava um melhor momento para uma diminuição da luta de classes e esse momento adveio com a morte física do Comandante Chávez, de cuja liderança e capacidade de unir todas as forças revolucionárias ninguém tem dúvidas. Daí em diante, poderia colocar em prática múltiplas linhas de sabotagem e conspiração, muitas delas ensaiadas na derrubada de outros regimes populares no continente e, desta forma, foram impondo seu ritmo.
Na minha concepção, ocorreu um ponto de inflexão do processo no momento em que um nítido representante do sistema do capital – Lorenzo Mendoza – se dirigiu ao país desde Miraflores (a Casa de Governo). Foi o sinal de que o método criminoso – a “guarimba” – impulsionado pela burguesia, tinha forçado uma negociação: o caminho para o socialismo ficava seriamente comprometido.
De tal forma, buscar as origens do resultado eleitoral, da mudança da correlação eleitoral nos remete a momentos anteriores. O capital impulsionou a dolarização por meio de ações, monopolizou produtos, desatou sua lógica de extração do máximo lucro no comércio de mercadorias, uma vez que cooptou funcionários e perverteu e/ou deturpou todos os programas assistencialistas do Estado e por esta via reduziu o impacto político dos mesmos. Cuidou-se, também, de mostrar seu programa neoliberal. Não fez maior propaganda pública, porém, nas filas geradas pela acumulação dos produtos, seus agentes faziam uma intensa agitação política.
Ao lado dessas ações promovidas por nossos adversários, se colocam uma serie de erros, de condutas não revolucionárias no interior do processo, que vinham sendo advertidas por muitos homens e mulheres que, das fileiras do chavismo, levantavam a arma da crítica, questão mal recebida desde a mais alta direção do Estado e do Partido, e frente a qual chegou a hora de mudar de atitude para retomar o caminho da Revolução.
Neste novo cenário, que margens o processo possui para reconduzir a situação, defender as conquistas sociais e trabalhistas, a independência e a soberania da Venezuela?
Quem pensa que a “dualidade de poderes” ou o “impasse catastrófico” entre o mundo do capital e o mundo do trabalho pelos quais atravessa o processo venezuelano já foram resolvidos, que não se obteve “o ponto de não retorno” e que nossa sociedade retrocederá ao passado sem passar por um intenso período de mobilização e instabilidade política, faz uma leitura equivocada do problema ou é simplesmente um derrotista. Agora, uma sacudida revolucionária percorre as bases do chavismo, efervescência que se expressa em diferentes espaços do país, que supera os marcos da democracia liberal e que tocou às portas de Miraflores. O Presidente Maduro, que começou por reconhecer alguns erros, manifesta sua vontade de ouvir o movimento popular. A retificação se coloca na ordem do dia: superar os vícios de nepotismo, amiguismo, inação e/ou cumplicidade frente à corrupção constituem parte das reivindicações do movimento de base. Mas, além disso, se impõe uma revisão da política. Em definitivo, são gerados novos cenários onde no protagonismo que assumem Conselhos, Comunas e demais componentes do sujeito revolucionário estará a sorte da Revolução, decidirá a favor de que romper a dualidade. Tudo isso em um ambiente onde a direita começa a desvelar seu verdadeiro programa, questão que logicamente modificará a visão de muitos de seus eleitores.
Em meio a este dilema, velhos políticos levantam também, a partir de outra perspectiva, ideias que aponta, para a formação de um cenário de conciliação. O jogo está para ser definido.
A Revolução Bolivariana foi e é uma referência para os povos do mundo. Porém, a esta altura, tudo indica que perdeu o horizonte socialista e se apresenta instalada em um modelo de capitalismo de estado de caráter nacional, onde o Socialismo é mais uma retórica, uma consigna vazia de conteúdo que uma realidade. Tal como você afirma em seu último ensaio, “não se produziu nas diferentes instâncias políticas do processo um debate profundo a respeito de como entender a transição socialista em uma sociedade como a venezuelana e nas condições do século XXI”.
Efetivamente, a Revolução Bolivariana é uma referência para além das fronteiras nacionais. Ela irrompeu em tempos de muita “seca revolucionária” em escala planetária e, portanto, transformou-se rapidamente em um farol que irradiava esperanças para os explorados e oprimidos do mundo. Porém, foi particularmente paradigmática para a América Latina e o Caribe, tanto que não só resgatou a pertinência das transformações revolucionárias nesta época de decadência da sociedade burguesa, como levantou com força, obtendo importantes concretizações, a ideia de unidade continental, da Pátria Grande, bandeira de luta de nossos pais Libertadores.
Reverter um processo no qual nasceram a Alba, Unasul e demais esforços integracionistas e liquidar os instrumentos unionistas (Telesur, Petrocaribe, etc.) sempre esteve na agenda dos imperialistas, em especial agora quando os Estados Unidos levam adiante uma contraofensiva com o propósito de recolonizar o continente, de reverter todos os avanços quanto à unidade de nossos povos. Cabe ao povo trabalhador comandar este processo de unidade e transformação nas condições do século XXI. Nesse contexto, defender a Revolução Bolivariana, revigorar a Revolução na Venezuela é mais que urgente. É uma necessidade para os povos de Nossa América. Daí retomar o debate sobre o futuro do socialismo e o fio condutor entre este objetivo com a unidade e independência Continental é uma prioridade para as e os revolucionários.
Qual poder ser o “novo” papel adotado pelas Forças Armadas Bolivarianas, até agora leais ao processo, mediante sua participação na aliança cívico-militar como um “novo sujeito político”?
As Forças Armadas da Venezuela têm suas particularidades que, para entendê-las, é preciso indagar suas origens, seu desenvolvimento histórico, sua composição de classe e a evolução de sua doutrina militar. Se não tivessem tal especificidade, teria sido impossível que em seu seio surgisse um líder, um pensador como Hugo Chávez. É claro que supomos a existência de diferentes pensamentos em seu interior, que a correlação interna entre os mesmos não deve ser muito distante da que existe na sociedade civil e, é lógico, pensar que sua postura será a chave no desenlace da contradição entre os dois blocos históricos que hoje disputam o poder na sociedade venezuelana.
Fonte: http://www.sermosgaliza.gal
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)