Haiti: “A partir de hoje somos todos negros”

imagemEduardo Grüner*

Os haitianos ainda hoje pagam caro o atrevimento de em 1804 terem aprovado a mais radical e igualitária das Constituições do século XIX.

Eduardo Grüner ensina-nos que os haitianos não se limitaram a construir a 1ª República independente negra do mundo, mas também descobriram que eles estavam excluídos da «totalidade» da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que haviam recebido com alvoroçada e vã esperança.

E para isso, logo no seu artº 14º a Constituição haitiana de 1804 define a totalidade, agora a partir da parte que havia sido excluída (eles), e prescreve:

«Todas as distinções de cor necessariamente desaparecerão entre os filhos de uma e a mesma família, onde o Chefe de Estado é o pai; todos os cidadãos haitianos, de aqui em diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros», denominação que não excluía brancos nem mulheres…

Começo por citar uma abruptamente uma frase justamente célebre em certos meios restritos, ainda que devesse sê-lo muito mais conhecida, pelo seu profundo alcance numa teoria crítica da identidade. A frase é esta:
«Todos os cidadãos, de ora em diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros».

Esta frase não é a expressão de um capricho, nem um improviso provocatório, e muito menos um delírio surrealista. É o artigo 14º da Constituição Haitiana de 1805, promulgada por Jean-Jacques Dessalines, de acordo com os rascunhos de Toussaint Louverture em 1801, mas cuja institucionalização teve que esperar pela Declaração de Independência de 1804, com Toussaint já morto nas prisões napoleónicas. E, na passada, sirva esta referência para questionar a bizarra ideia de festejar o chamado «Bicentenário» das revoluções independentistas americanas em 2010, quando a primeira, a mais radical e a mais inesperada dessas revoluções foi levada a cabo em 1804 e não em 1810. A mais radical, digo bem, visto que nela foram os ex-escravos africanos – isto é, a classe dominada por excelência, e não as novas elites «burguesas» compostas por europeus brancos – os que tomaram o poder para fundar uma republica, justamente chamada negra.

Mas voltemos à nossa pequena frase citada. O que é que se está a jogar na sua estranha formulação? Recordemos alguns antecedentes mínimos. Haiti – que antes de 1804 se chamava de S. Domingos – era de longe a mais rica colónia francesa no Caribe, e há até quem afirme que era a mais rica colónia em qualquer parte. Em 1789, quando rebenta a camada revolução «Francesa», havia nessa sociedade plantadora e esclavagista produtora de açúcar e café uns 500.000 escravos de origem africana, uns 27.000 colonos brancos e uns 34.000 «mulatos». Já no princípio do século XVIII os cartesianos ocupantes franceses, com a sua racionalista paixão taxonómica, tinham acreditado poder detetar e classificar 126 tonalidades diferentes de «negritude», cada uma com a sua respetiva denominação e «caracterologia». Rebentada a revolução na metrópole, os escravos recebem alvoroçados as notícias sobre o seu maior documento político, a Declaração dos Direitos Universais do Homem e do Cidadão, só para rapidamente se inteirarem que eles não são membros desse «universal»: são a parte sem a qual o Todo não poderia funcionar (qualquer coisa mais que uma terça parte das receitas francesas provenientes do trabalho escravo de S. Domingo), pelo que devem ficar como a particularidade excluída do «Universal», para que o novo «Todo» possa ser sustentado pela economia. E que por isso mesmo terão que iniciar – em 1791 – um longo e violento processo revolucionário próprio, com a paradoxal finalidade de cumprir esse postulado de «universalidade» que lhes é alheia, ou melhor dito roubada, o que custará aos ex-escravos a bagatela de 200.000 vidas. O verdadeiro paradoxo – quase nos atrevíamos a dizer o escândalo – é que a revolução haitiana é nesse sentido, «mais francesa que a francesa» porque é haitiana – porque é a particularidade que por definição falta à «Totalidade».

O artigo 14º é pois, como costuma dizer-se, uma reparação, jurídico-política em primeiro lugar, mas também e sobretudo, «filosófica», e de uma radicalidade filosófica autenticamente inédita.

No que diz respeito ao tema que hoje nos traz aqui, a sua dinâmica questiona criticamente, de facto, todas as dúvidas de qualquer princípio de «identidade» universal. Com a declaração de independência de 1804 nasce, como dizíamos, uma república «negra», mas com nome indígena («Hayti», é o antigo nome da ilha na língua taína). Primeira manifestação de pluralidades «identitárias» cruzadas.

Mas se se quiserem mais provas da densidade filosófica do conteúdo político da revolução, bastaria citar o primeiro parágrafo do Preâmbulo da nova constituição, promulgada por Dessalines em 20 de maio de 1805:
«Na presença do Ser Supremo, perante quem todos os mortais são iguais, e que disseminou tantas classes de seres diferentes cobre a superfície do globo com o único propósito de manifestar a sua glória e poder através daa diversidade das suas obras…».

Já não se trata, vê-se, da simples homogeneidade abstrata da igualdade perante a Lei (humana ou divina). Começa-se por afirmar uma igualdade universal para, no mesmo movimento, asseverar a diferença e a diversidade. Apela-se à retórica ilustrada da revolução francesa (o «Ser Supremo») para imediatamente dotar o Ser de determinações particular-concretas. A frase seguinte avança um pouco mais neste caminho:
«…Perante a criação inteira, cujos filhos despossuídos temos tão injustamente e durante tanto tempo sido considerados…»

Outra vez a totalidade da criação é especificada pela sua parte excluída, «despossuída» – por essa parte-que-não-tem-parte, como diria Jacques Rancière: para o nosso caso, os antigos escravos negros («etnia» e classe são novamente evocados para definir um não-lugar na totalidade). Tudo concorre para a arquitetura textual de uma complicada dialética na qual universalismo e particularismo, na verdade, se referenciam mutuamente, ainda que sem operar uma «síntese superadora», como faria uma certa vulgata hegeliana: a igualdade universal não poderia ser alcançada sem a exigência particular dos escravos negros que foram «expulsos» da universalidade; ao contrário, a sua exigência particular só tem sentido pela sua referência á universalidade. A primeira desborda a segunda e à segunda é-lhe pequena a primeira. A parte é mais que o «Todo» ao que a parte lhe faz falta.

Esta estrutura ainda se manifesta mais quando confrontamos aqueles artigos do corpo constitucional que abordam especialmente as questões «raciais» e de «classe». O artigo 12º adverte-nos que «Nenhuma pessoa branca, de qualquer nacionalidade, poderá pôr pé neste território na qualidade de amo ou proprietário, nem no futuro adquirir aqui propriedade alguma»; o artigo seguinte, no entanto, aclara que «o artigo procedente não terá qualquer efeito sobre as mulheres brancas que tenham sido naturalizadas pelo governo (…). Incluídos na presente disposição estão também os alemães e polacos (?) naturalizados pelo governo». E assim chegamos ao nosso famoso artigo 14º, que agora citamos de forma completa: «Todas as distinções de cor necessariamente desaparecerão entre os filhos de uma e a mesma família, onde o Chefe de Estado é o pai; todos os cidadãos haitianos, de aqui em diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros».

Não sabemos por que razão se faz a estranha especificação sobre os «alemães e polacos» naturalizados. Mas sem dúvida que a sua menção é o cúmulo do «sarcasmo» particularista, ainda mais sublinhado pelo facto de também os alemães e os polacos – que costumam ser associados à pele branquíssima e aos cabelos loiros dos saxões e dos eslavos – passarem agora a ser negros. Esta generalização à primeira vista absurda tem o enorme valor de produzir uma disrupção do «racialismo» biologista ou «naturalista», que entre os finais do século XVIII e princípios do século XIX terem começado a impor-se: se até os polacos e os alemães podem ser decretados «negros», então é evidente que negro é uma denominação política (ou político-cultural se quisermos), isto é, arbitrária, (num sentido mais ou menos saussiriano da arbitrariedade do signo linguístico) e não natural nem necessária. E que, portanto, o foi sempre: com o mesmo gesto se «des-constroi» a falácia racista que atribui traços diferenciais às 126 «espécies» de negritude.

Há que insistir: através do «ato da fala» – este verdadeiro e poderoso performativo – produz-se uma inquietante aporia filosófica, a de que o universal é derivado de uma generalização de um dos seus particulares. E não é de um qualquer, mas, uma vez mais, do que até então tinha sido «materialmente» excluído. É uma aporia quase «benjaminiana»: é o polo extremo, o que se contrapõe à pretensão de universalidade, o que põe a constelação na sua totalidade. Como disse não sem discreto sarcasmo Sybille Fischer, «chamar a todos os haitianos, para além da cor da sua pele, negros, é um gesto semelhante ao de chamar a todas as pessoas, independentemente do seu sexo, mulheres. De qualquer forma, e para voltar ao tema, está clara a intenção político-cultural da cláusula. Finalmente, para que é necessário introduzi-la, se começou por se aclarar que no Haiti não será permitida nenhuma classe de distinções pela cor da pele? O sentido não é, pois, meramente jurídico: trata-se de não ocultar nem disfarçar, na história que agora se pode chamar «haitiana», o lugar determinante que nela teve o conflito político entre as «raças». O artigo 14º (e toda a constituição à qual pertence) faz de facto a crítica , inclusive antecipada, de uma (ideo)lógica constitucional que imagina o estado-nação «moderno» como uma unidade homogénea, sem distinções de classes, «raças», género, etc.. E também, há que dizê-lo, faz a crítica – muito mais «antecipada» – de certas (ingénuas ou não) celebrações «multiculturalistas» até que ponto a emergência das «diferenças» são uma função das desigualdades produzidas pelo poder.

No entanto, ao mesmo tempo há na constituição de 1805, e no próprio artigo 14º, uma conceção unitária da nação. Mas veja-se com que critério: «Todas as distinções de cor necessariamente desaparecerão entre os filhos de uma mesma família, onde o Chefe de Estado é o pai». «Paternalismo», dizíamos antes – e naturalmente, podíamos acrescentar «patriarcalismo» –; a nação é pensada como uma grande família unida e indivisível (onde, já o sabemos, todos os membros são «negros»), dirigida – como corresponde à metáfora – pelo «pai» e também Chefe de Estado (ainda que não só: já vimos que, alegoricamente, há ao mesmo tempo um regresso à Mater implícita nessa carne negra, sem a qual não se pode pensar a cidadania haitiana). É justamente contra esta analogia entre o Estado e a família (uma oposição que na tradição política europeia pode já detetar-se na Grécia Antiga e a sua distinção entre polis e oikos, central inclusivamente como motivo de conflito trágico, tal como se encontra na Antígona de Sófocles), é contra esta analogia, dizíamos, que lutam os primeiros grandes teorizadores do Estado «europeu-moderno» (o debate pode ler-se em Maquiavel, em Hobbes, em Locke). Obviamente, trata-se antes de mais de um combate contra o «paternalismo» feudal. Mas é também um argumento tendente à separação entre «sociedade política» e «sociedade civil» – ou mais genericamente, entre Estado e sociedade –, separação necessária para a autonomia da ascendente classe «burguesa». De qualquer modo, essa é uma questão europeia «ocidental». O artigo 14º nada tema ver com essa polémica, e por outro lado, ao considerá-la de facto alheia, refuta também a sua «naturalidade»: a unidade «política» que levanta como programa é a da estrutura social não «tradicional» ou «pré-moderna», mas, simplesmente, africana, isto é, outra, na qual a lógica do poder «político» é indistinguível do que os antropólogos estudaram como estruturas do parentesco que, segundo diz o próprio Lévy-Strauss, transformam a consanguinidade biológica em aliança social e política [1]. Outra demonstração, pois, de politização – isto é de materialização, no sentido estrito – de uma «natureza» abstrata.

Tudo o dissemos anteriormente poderíamos chamar uma identidade dividida – ou se se quiser, bifurcada – haitiana. Temos uma nação nova, fundada «a partir do zero»: ao contrário do que virá a suceder com as outras independências americanas há uma des-continuidade radical (jurídica, sem dúvida, mas também e sobretudo étnico-cultural: é uma nação «negra») em relação à situação colonial. Mas a sua «novidade» consiste, antes de mais, num reconhecimento e uma encenação dos insolúveis conflitos herdados da situação colonial e da lógica étnica, social e económica da plantação: o ideário da Revolução Francesa é, simultaneamente conservado, levado mais além dela mesma, um «mais além» onde se encontra com a cor negra; e esse «cor local», para assim a chamar, obriga a um retrocesso – para lá das conceções «evolucionistas» e «progressistas» eurocêntricas – para as tradições sociais e míticas africanas. A sua modernidade – plenamente assumida sob o ideário sob o ideário da Revolução Francesa – só pode ser «realizada» através de um recurso à «tradição. Como reza essa extraordinária primeira frase da biografia de Zapata por John Womack: «Esta é a história de uns camponeses que não queriam mudar, e que por isso mesmo… fizeram uma revolução». Poderiam citar-se várias outras instâncias paradoxais (talvez se devesse dizer «dialéticas») para ilustrar esta bifurcação dos tempos modernos que, longe de ser «extra moderna», pertence a uma modernidade que só quando se aborda a partir do que Benjamin chamaria a história dos vencidos se mostra , ela também, como tendo uma identidade dividida. No Haiti seria o caso da religião vudu ou da língua crioula, que agora não temos tempo de discutir. Esta podia ser uma via para pensar a sintomática e quase total ausência, na denominada Teoria Pós-Colonial, de referências a um fenómeno como o haitiano, que parece dever ser um exemplo paradigmático para as suas categorias. Com efeito, não ilustra exemplarmente o artigo 14º o que Gayatri Spivak denominou essencialismo estratégico? No entanto, parece que as coisas não foram assim tão fáceis.

Doris Garraway introduz uma hipótese para explicar esta «impotência» da teoria pós-colonial face ao fenómeno Haiti: a da não-pertinência das categorias de nacionalismo com as quais os académicos tentam caraterizar os movimentos anticoloniais modernos, categorias que não podem dar conta do fenómeno da revolução haitiana. Um dos mais influentes textos sobre este tema, o de Benedict Anderson (que não é preciso dizê-lo, nunca menciona o Haiti) [2], avança a sugestiva hipótese de o nacionalismo não é um produto europeu pós-Revolução Francesa – como convencionalmente se dá por assente) – mas uma «invenção» do mundo colonial na sua luta por romper com as potências imperiais. O Haiti, no entanto, não encaixa em nenhum dos paradigmas que Anderson expõe detalhadamente. Não é um típico nacionalismo «crioulo» como os habituais nas independências da América Latina, onde as minorias, brancas na sua maioria, propulsaram o que pode ser chamado nativismo fronteiriço, ainda que conservando culturais europeus e uma ordem social com supremacia branca. O Haiti também não é exatamente o caso dos movimentos anticoloniais da Índia ou de África, que introduziram nas suas questões de soberania um desejo de diferença absoluta com a Europa, baseada na pureza das suas origens étnico-culturais. A revolução haitiana supôs uma transculturação conflitual (ou catastrófica, como a denominámos noutro lugar) marcada por uma tensão não-resolvida entre essas referências culturais: uma tensão em boa medida ligada ao facto de, no momento se produzir o movimento emancipatório, uma importante parte dos escravos insurretos (qualquer coisa como mais de um terço do total) não serem «africanos» originários, mas os seus antepassados provinham (uma proveniência forçada, naturalmente) de África, enquanto eles já podiam ser considerados antilhanos ou caribenhos.

Há pois, neste caso, uma espécie de triângulo «tensional» que é qualquer como simetricamente inverso do triângulo atlântico, de que tanto se falou para qualificar o comércio esclavagista, e que como tal supõe três vértices (África/Europa/América), e não uma menos complexa oposição linear como noutros casos que temos mencionado (África/Europa, Índia/Europa, etc.), ou uma continuidade cultural com descontinuidade jurídica como no caso de outros movimentos independentistas latino-americanos. O vértice «África» é aqui, naturalmente, o terceiro excluído que se inclui, rompendo toda a possibilidade de um equilíbrio (ainda que conflitual) entre os dois polos (Europa/Colónias) ao introduzir, por um lado, a noção de um retorno mítico à «Guinea» (como os escravos denominavam África) e a sua própria tensão interna pelos crioulos «afro-americanos», por outro a questão da negritude, e tudo isso ao mesmo tempo aderindo (nunca é demais repeti-lo com maiores e heterótipos alcances) ao ideário da Revolução Francesa e da «modernidade».

Nem as teorias clássicas do nacionalismo – que, como já dissemos, tendem a considerá-lo um fenómeno da modernidade europeia – nem a teoria de Benedict Anderson –, se bem que procure livrar-se de um inacabado eurocentrismo, constrói um a série de modelos em nenhum dos quais se encaixa o caso haitiano – nem o mainstream da teoria pós-colonial – que, com todas as suas «raízes» horizontais [rizomas], «hibridices», «in-betweens» e tudo o mais continua, paradoxalmente, a pensar de forma binária a relação metropolis / colónia – seguindo à nossa maneira Levy Strauss – com a qual teve de se confrontar a revolução haitiana.

Com «bifurcação tri-partida estamos a embalar, para uma maior clarificação, o que na verdade é um pleonasmo: apesar do equívoco da raiz «bi», toda a bifurcação abre três direções, como é fácil de ver no que se chama uma bifurcação do caminho, perante a qual se podem avançar pela esquerda, pela direita ou retroceder (de volta à «Guinea», digamos assim). A bifurcação, como sabemos, é uma figura central na chamada teoria das catástrofes de René Thom e outros. E num outro registo teórico e literário, é o lugar no qual Édipo se encontra com o seu destino: esse cruzamento tem três caminhos ( o que os latinos chamam Trivium, de que deriva o adjetivo trivial) onde, precisamente por não querer retroceder, assassina o seu pai, Layo e precipita-se na tragédia.

Ora bem, num parágrafo acima especulávamos com a ideia que os escravos – revertendo a lógica da «universalização» da particularidade operada pelo eurocentrismo colonial – se assumirem como a parte que se projeta para o todo, sublinhando a sua «universalidade» como falsa, visto que trunca. A isso pode chamar-se universalismo particular, enquanto oposto do particularismo «universal» europeu e enquanto cumpre a premissa de um autêntico pensamento crítico: a de uma dialética negativa que re-instala no centro do «universal» o conflito irresolúvel com o particular excluído, põe a nu a violência da negação do «outro» interno, rejeitando as tentações do pensamento «identitário». Este é o significado profundo do artigo 14º com a sua irónica – e politizada – universalização da cor negro. Mas o que faz esta lógica é construir e constituir essa cor como o significante privilegiado – ou se se preferir dizer assim, o operador semiótico fundamental – de uma materialidade crítica, uma bifurcação catastrófica que vai atravessar, de uma ou outra maneira, a produtividade discursiva (filosófica, ensaística, ficcional, narrativa, poética e estética) da cultura antilhana. Desde já, o cruzamento conflitual e a intertextualidade trágica são um processo presente em toda a cultura latino-americana (e em toda a cultura neo – ou pós – colonial), e nesse contexto deve ser pensado «a cor negro». Mas no caribe a questão da negritude introdua uma especificidade, inclusive uma extremidade, que lhe dá toda a sua peculiar singularidade. E essa «extremidade», essa especificidade que também – sob a lógica do «artigo 14º – é criticamente universalizável, enquanto mostra as aporias irresolvidas, e provavelmente irresolúveis, de uma relação outra com uma «modernidade» presumidamente homogeneizada pela cultura ocidental.

Esta última conclusão pode tornar-se importante. Pessoalmente, sempre me surpreendeu a facilidade com que o pensamento «pós» se submete – mesmo que seja para se opor – à versão dominante da Modernidade apresentada como o que o mesmo pensamento denominou uma grande narrativa homogénea e linear. Mas não há apenas uma «modernidade»: a modernidade é tanto o particularismo universal do «Todos somos iguais menos alguns» da Revolução Francesa como o universalismo particular do «todos somos negros ainda que nem todos o sejamos» da Revolução Haitiana. O conceito de uma identidade intencionalmente bifurcada mostrando, como dizíamos, que há outra modernidade, ou inclusive uma contra-modernidade «periférica», talvez permitisse libertar a oposição binária «modernidade / pós-modernidade em que permanece encerrado o academismo pós, incluindo os estudos culturais e a teoria pós-colonial. Desde já é uma via sempre incompleta e em processo de des-totalização e re-totalização, como diria Sartre. A relação de desconexão/reconexão bifurcante das identidades resguarda, ao fim e ao cabo, os seus próprios enigmas, que talvez seja conveniente resguardar

Notas:
[1]  Lévi-Strauss, Claude:  Las Estructuras Elementales del Parentesco , Barcelona, Paidós, 1975.
[2]  Anderson, Benedict: Comunidades Imaginadas , Mexico, FCE, 1998.
http://www.contrahegemoniaweb.com.ar/

* Professor na Universidade de Buenos Aires (UBA).

Este texto foi publicado em: http://www.lahaine.org/haiti-a-partir-de-hoy

Tradução de José Paulo Gascão

http://www.odiario.info/haiti-a-partir-de-hoje-somos/

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