Haiti se levanta contra ingerência do imperialismo
No Haiti, manifestações chegam a um mês exigindo a renúncia do presidente e o fim da ingerência internacional
Avispa Midia
– Autora: Eugenia López
Desde 16 de setembro e, quase diariamente, ocorreram manifestações na capital do Haiti, Porto Príncipe, bem como em outras cidades do interior. Sob o lema “lage pye’w” (renúncia), milhares de pessoas exigem a demissão do presidente Jovenel Moïse. Por outro lado, o mandatário haitiano dirigiu-se à população em apenas uma ocasião, no dia 25 de setembro, por meio de um discurso transmitido às 2 da manhã.
Crise
A origem da crise atual está na publicação de um informe com o qual o Tribunal Superior de Contas acusou o presidente Moïse de “desvio de dinheiro público”. O informe, de mais de 600 páginas, revelou numerosos casos de gestão irregular de fundos e de corrupção no contexto de um programa de desenvolvimento patrocinado pela Venezuela, chamado Petrocaribe.
Entre outras coisas, o informe expôs que, no ano de 2014, o Estado assinou contratos com duas companhias, Agritrans e Betex, para um projeto de restauração de rodovias. O problema é que essas duas empresas, apesar dos nomes diferentes, têm o mesmo registro fiscal e o mesmo pessoal técnico. E, em 2017, Jovenel Moïse estava à frente da Agritrans e recebeu mais de 33 milhões de gourdes (mais de 700.000 dólares no câmbio da época) para o projeto viário.
A crise se aprofundou com o desabastecimento de combustível que teve início em agosto, assim como outros fatores como o desemprego, a inflação e o crescente problema de segurança pública em Porto Príncipe.
“Hoje a oposição é toda a população: tem fome, não consegue viver, seus filhos não vão à escola. Eu tenho o que comer, mas não é por isso que vou deixar de olhar para aqueles que, ao meu lado, não têm nada”, declarou o rapper Izolan, originário de Arcahaie, Haiti.
Desde que começou a rebelião, barricadas são levantadas com frequência nas principais rodovias e os protestos têm impedido o funcionamento normal das escolas, dos hospitais, dos negócios e da administração governamental.
Intensificam-se os protestos, o governo responde com repressão
Ao iniciar a quinta semana de manifestações, a insatisfação da população começou a aparecer com mais força. No domingo, 10 de outubro, dois edifícios foram devastados por fogo, que partia de focos acendidos perto do palácio presidencial e da sede da polícia. Enquanto os manifestantes arremessavam pedras e coquetéis molotov contra os policiais, esses respondiam com gás lacrimogênio, mas também com armas de fogo, assassinando várias pessoas.
“Não podemos ser pacíficos. Olha: o poder nos mata toda vez que nos manifestamos, e não temos dinheiro suficiente para comer todos os dias, de forma que estamos todos morrendo lentamente. Este presidente não tem moral para nos governar”, disse Bernard Camillien, um manifestante de 56 anos, para o jornal alemão DW.
Segundo dados oficiais, pelo menos seis pessoas foram assassinadas. Por outro lado, a Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos reportou duas dezenas de homicídios, assim como 200 feridos, fruto da repressão do Governo.
Repúdio à ingerência internacional
Parte dos enfrentamentos violentos tiveram lugar quando as e os manifestantes quiseram se aproximar da sede local da ONU. Além de exigir a renúncia do presidente, durante os protestos também se denunciou a influência estrangeira na política do país.
Na semana passada, o chamado Grupo Central (“Core Group”, em inglês, composto por representantes da ONU, da União Europeia e da Organização dos Estados Americanos (OEA), bem como das embaixadas da Alemanha, Brasil, Canadá, França, Estados Unidos e Espanha) organizou várias reuniões com líderes de partidos políticos, políticos de oposição e assessores do presidente para tentar encontrar uma saída para a crise.
“Quando os coletes amarelos se manifestam na França, existe um Grupo Central que vai falar com eles? Não. Então nós haitianos também não queremos isso. Estamos simplesmente lhes dizendo que não queremos mais a este senhor, Jovenel Moïse, como presidente. Não queremos esta interferência internacional: queremos que deixem que nós mesmos conduzamos a situação”, denunciou Antonin Davilus, de 31 anos.
15 anos de ocupação militar pela ONU
A interferência internacional na vida do país caribenho não é nada nova: nunca cessou desde que o Haiti declarou sua independência, em 1o de janeiro de 1804, tornando-se a primeira república negra do mundo, nascida por meio de uma revolução de escravos exitosa.
Mais recentemente, durante os últimos 15 anos, o país viveu sob a presença da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH, da sigla em francês), que estabeleceu no dia 1o de junho de 2004 a resolução S/RES/1542 do Conselho de Segurança da ONU depois de um golpe de Estado, que levou ao exílio do presidente Bertrand Aristide.
Com o terremoto de 12 de janeiro de 2010, que provou a morte de mais de 220.000 pessoas, segundo dados do governo do Haiti, a ONU aumentou a presença da MINUSTAH “com o fim de apoiar o esforço imediato para a recuperação, reconstrução e estabilidade do país”.
No dia 15 de outubro de 2017, a MINUSTAH mudou seu nome para Missão de Apoio à Justiça das Nações Unidas no Haiti (MINUJUSTH), e passou a ser uma “missão de manutenção da paz, só que menor”.
Para o ativista e professor universitário haitiano Camille Chalmers, entrevistado pela Agência Subversiones, a presença dos “capacetes azuis” da ONU tem pouco que ver com uma missão de paz. Para ele, trata-se bem mais de uma estratégia de controle, tanto militar, como político e ideológico. Para o acadêmico, os objetivos proclamados pela MINUSTAH jamais foram cumpridos.
“A situação não melhorou no país, inclusive piorou. Por exemplo, em relação à questão da segurança cidadã, há hoje novas formas de insegurança que não existiam antes da MINUSTAH. A insegurança é uma questão política. Os momentos de aumento da insegurança correspondem sempre a momentos de conflitos políticos. A insegurança também está ligada com o tráfico de drogas, com o trânsito de cocaína pelo território haitiano em direção aos EUA. E, apesar de toda a infraestrutura militar de controle de território que eles possuem: helicópteros, satélites, tudo isso, o tráfico tem aumentado desde 2004, ano de chegada da MINUSTAH. E também tem aumentado a presença de armas ilegais no país”, denunciou o acadêmico.
Camille Chalmers também explica que a MINUSTAH está relacionada à nova doutrina de segurança nacional dos Estados Unidos, que afirma que o perigo agora são os habitantes de bairros populares em zonas urbanas. “A meta da MINUSTAH tem sido, sempre, a repressão direta contra os bairros populares”, afirma.
De fato, para Chalmers, a MINUSTAH tem sido um laboratório de experimentação de controle de bairros urbanos, em particular para a polícia brasileira. “Os policiais e militares brasileiros que serviram no Haiti são os mesmos que foram mobilizados para a repressão nas favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Há uma conexão muito importante de um ponto de vista estratégico de controle militar. A presença da MINUSTAH não deve ser analisada a partir de observação só do Haiti, é preciso observá-la no contexto geopolítico global”, expressou o acadêmico.
O Fim da “Missão de Paz”
Cabe destacar que a crise atual corresponde a um momento de mudança para o país caribenho, já que o Conselho de Segurança da ONU fez terminar esta terça, 15 de outubro, os 15 anos de operações no Haiti.
No entanto, a retirada dos “capacetes azuis” não significa a saída da ONU do Haiti: a mesma missão militar será substituída por uma missão política, com a instalação do Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti (BINUH).
“Neste difícil contexto, o fechamento da MINUJUSTH não significa que as Nações Unidas abandonam o Haiti. Pelo contrário, conduzirá à continuação do apoio da ONU ao Haiti de outra forma”, declarou o subsecretário-geral de Assuntos Humanitários da ONU, Mark Lowcock.
Haiti, a “República das Organizações Não Governamentais”
Além da presença das forças armadas da ONU, estima-se que, depois do terremoto de 2010, não menos de 10.000 organizações de “ajuda humanitária” chegaram à ilha caribenha. Essas ONGs receberam doações que superaram 9 bilhões de dólares. Trata-se da maior concentração de organizações humanitárias per capita do planeta, o que valeu ao Haiti o apelido de “república das ONGs”.
Ainda que estas organizações tenham chegado com a meta de ajudar o país, os efeitos de sua presença são criticados.
Nancy le Roc, jornalista independente do Canadá, de origem haitiana, denuncia o grande negócio que representa a ajuda humanitária para as próprias ONGs, sem realmente beneficiar a população local.
“Quando o Disaster Accountability Project, dos Estados Unidos, realizou um estudo acerca do trabalho das ONGs, 80% delas se recusaram a prestar contas. Costuma-se condenar o governo haitiano, mas somente 1% da ajuda financeira foi destinada a ele. Para cada dólar canadense doado para o Haiti, só seis centavos chegaram aos haitianos. Esta é a verdade não querem te contar”, ela denunciou no colóquio “As ONGs no Haiti: entre o bem e o mal”, organizado em Montreal.
Por sua parte, a jornalista independente haitiana, Marjorie Valburn, explica que a ajuda humanitária canalizada no Haiti no outono de 2011 ilustra bem esse fenômeno: de 1.537 contratos com valor de mais de 204 milhões de dólares, só 23 contratos foram delegados a empresas haitianas, por um montante de quase 5 milhões de dólares.
Para a jornalista, a presença das ONGs representa uma forma de colonialismo. “No Haiti, desenvolveu-se uma forma de colonialismo humanitário. Desde 1986, o Haiti foi o país que mais recebeu ajuda, mas se empobreceu. E querem culpar as vítimas! Por outro lado, as ONGs haitianas não recebem ajuda, apesar de serem elas que conhecem o país e as necessidades da situação”.
Essa realidade tem como resultado manter o país em uma situação de dependência da ajuda internacional, sem permitir mudanças estruturais que melhorem as condições de vida de sua população no longo prazo.
“Não podemos recusar ajuda. Precisamos dela. Mas também precisamos que os atores estrangeiros invistam no capital mais importante que o país possui: sua gente”, disse o ativista haitiano Jocelyn McCalla para o jornal britânico BBC.
Crise Social, Política e Econômica
O fracasso da “ajuda” oferecida tanto pela ONU, quanto pelas ONGs é evidenciado pela grave crise social e econômica que o Haiti vive atualmente.
Segundo dados da ONU, no ano de 2016 a ilha contava com uma população de quase 11 milhões de habitantes. Destes, 62.600 deslocados internos ainda vivam em 36 campos provisórios desde o terremoto de 2010, 60% vivia em nível de pobreza e 25.000 corriam o risco de contrair cólera.
Hoje em dia, o Haiti é o país mais pobre do continente americano. A inflação supera 17% e a moeda local não para de se desvalorizar.
Diante desse panorama, a insatisfação da população segue mais viva que nunca. Há um levante geral das massas populares e camponesas reivindicando a instauração de um sistema alternativo que leve em consideração as necessidades da maioria.
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)
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