Povos da Amazônia sob ameaça

imagemEvento realizado em Marabá reuniu diferentes povos da Amazônia. (Foto: Catarina Barbosa/Brasil de Fato)

Em carta, defensores e defensoras da floresta denunciam falso desenvolvimento que ameaça povos da Amazônia

IHU-UNISINOS

A reportagem foi publicada originalmente por Terra de Direitos.

A construção de hidrelétricas e ferrovias, a exploração de madeira e minério e o avanço da produção da soja são alguns dos fatores que vem “sangrando os territórios” de povos da Amazônia. É isso o que denunciam indígenas, quilombolas, campesinos, ribeirinhos, quebradeiras de coco babaçu, seringueiros e outros povos e comunidades tradicionais amazônidas. A denúncia está inserida dentro da Carta de Marabá, documento divulgado nesta quinta-feira (17) como resultado dos debates da III Conferência Internacional dos Defensores da Floresta. O documento deve ser entregue ao Papa Francisco, durante o Sínodo da Amazônia, que acontece em Roma.

O evento realizado entre os dias 16 e 17 de outubro na cidade de Marabá reuniu cerca de 600 pessoas de diferentes povos da Amazônia para a troca de experiências e a criação de estratégias de enfrentamento à violação de direitos desses diferentes grupos. A atividade contou com painéis, exposições culturais e um júri simulado, com participação internacional.

Na carta, defensores e defensoras da floresta destacaram que a Amazônia não é “um espaço vazio”. A região é habitada há pelo menos 39 mil anos e possui uma diversidade de povos e culturas que precisam ser consideradas. Por isso, denunciam as ameaças aos seus territórios e modos de vida trazidas por empresas e pelo latifúndio. “Estamos cercados por uma leitura de desenvolvimento que só consegue ver a natureza como commoditie e apenas um projeto de país que reserva à Amazônia o fardo de região exportadora de bens primários”, destaca o texto.

O documento também aponta que essas ameaças ganham ainda mais intensidade com a posse do presidente Jair Bolsonaro (PSL). “Desde então, estamos vivendo um ataque ainda mais violento e sistemático aos nossos direitos territoriais, através de um desmonte de leis, códigos e instrumentos de proteção ambiental e de uma ofensiva contra os órgãos de fiscalização do meio ambiente, de reforma agrária e da política indigenista”. O Brasil registrou no mês de agosto de 2019 o maior número de focos de incêndios na Amazônia em nove anos, enquanto o orçamento anual do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente sofreu uma redução de 24% e de R$ 187 milhões foram contingeciados no Ministério do Meio Ambiente.

Segundo os defensores e defensoras da floresta, o discuso oficial do governo que legitima a violência e que difunde mentiras ao desqualificar dados e pesquisas relacionadas à conservação da Amazônia também constroem “um cenário em que a diversidade ambiental e étnica da Amazônia está sendo consumida pelo fogo e banhada de sangue”.

Dados da Comissão Pastoral da Terra apontam mais de 80% dos massacres por terra registrados no Brasil nos últimos 34 anos aconteceram na Amazônia. “Chega de sermos a região com o maior registro de assassinatos no campo! Chega de sermos o território de experimento de novos agrotóxicos! Chega de fogo a queimar nossas entranhas! Chega de estupidez e ignorar nossa diversidade!”, reforça a carta.

Junto com as denúncias, os guardiões e guardiãs da floresta também reafirmaram o compromisso com a defesa da Amazônia e com o desenvolvimento sustentável. “A floresta vive porque nós estamos vivos e assim permaneceremos como sementes da justiça para as muitas Amazônias que somos nós”.

Leia a carta completa aqui:

Carta de Marabá

Nós, povos da Amazônia, reunidos na cidade de Marabá, no Pará, neste dia 17 de outubro de 2019, vimos a público manifestar as nossas preocupações em relação ao nosso futuro, ao futuro desta região e ao futuro da humanidade.

Não falamos de um espaço vazio. Falamos desde uma região habitada há 39 mil anos na Formação Cultural Chiribiquete (Amazônia colombiana) e há pelo menos 11 mil anos no Sítio da Pedra Pintada, em Monte Alegre, no Pará. Esses milênios não podem ser desprezados e apagados da memória, pois eles nos conferem um acervo rico e diverso de conhecimentos construídos por distintas etnias, pensados a partir de diferentes línguas indígenas e enriquecidos pela diversidade de pensares afroamazônicos e camponeses que diversificam ainda mais a ancestralidade desse território. Somos, portanto, defensoras e defensores, guardiães e guardiões da Amazônia, pois fomos nós, também, que produzimos a diversidade ecológica e biocultural desta região, mantendo-a viva e ajudando no equilíbrio do planeta inteiro. Por isso, a partir de nossas experiências de respeito à natureza no campo e na cidade, pedimos que nos ouçam, pois o futuro de todos nós está em risco.

Há muitos anos o Estado, as corporações e o latifúndio têm nos negado o direito à vida! Estamos cercados por uma leitura de desenvolvimento que só consegue ver a natureza como commodity e apenas um projeto de país que reserva à Amazônia o fardo de região exportadora de bens primários. Tudo isso vem sangrando os nossos territórios, através de hidrelétricas, extensas fazendas de gado, da exploração desenfreada de madeira, de plantações de soja, milho e outros monocultivos, da construção de extensas ferrovias e da multiplicação de grandes projetos de mineração.

Toda essa engrenagem ganha tons dramáticos com a posse do novo presidente do Brasil em janeiro deste ano. Desde então, estamos vivendo um ataque ainda mais violento e sistemático aos nossos direitos territoriais, através de um desmonte de leis, códigos e instrumentos de proteção ambiental e de uma ofensiva contra os órgãos de fiscalização do meio ambiente, de reforma agrária e da política indigenista. Somado a isso, o total desprezo em relação aos compromissos ambientais assumidos pelo Brasil em diferentes acordos internacionais e os constantes discursos oficiais que não só legitimam a violência aos povos do campo e da cidade e a devastação da floresta, mas também tentam difundir mentiras sobre os povos, contestar dados de pesquisas confiáveis e atacar irresponsavelmente lideranças; está construindo um cenário em que a diversidade ambiental e étnica da Amazônia está sendo consumida pelo fogo e banhada de sangue.

O crescimento de 60% no número de focos de incêndio na Amazônia até agosto desse ano, em comparação à média dos últimos três anos; o aumento do desmatamento no mês de julho nessa região em 66% se compararmos a julho do ano passado, além da redução em quase 30% das multas aplicadas pelo IBAMA e da queda acachapante das operações realizadas por este órgão de fiscalização, apresenta-nos o cenário extremamente preocupante que vivenciamos. Esse cenário se agrava se observamos o crescimento de invasões para exploração ilegal dos recursos naturais de terras indígenas, que já somam 160, entre janeiro e setembro de 2019, um número bem maior que as 111 invasões registradas no Brasil em 2018 pelo Conselho Indígena Missionário. Toda essa ofensiva aliada ao estímulo e conivência do governo, levam ao aumento no número de assassinatos de lideranças camponesas,indígenas e ambientalistas na Amazônia.

Segundo os dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 1985 e 2019 ocorreram 49 massacres de camponeses em todo o Brasil, ceifando a vida de229 pessoas. Mas vale afirmar que 81,63% desses massacres e82,53% dessas mortes ocorreram na Amazônia, vitimando camponeses pobres que lutam pela terra e pelo território. Neste ano, de acordo com essa mesma entidade, 17 camponeses foram assassinados no Brasil em decorrências dos conflitos agrários, sendo que 16 deles na Amazônia. Aqueles que historicamente só conseguem lucrar pelo exercício da violência e da devastação nunca se sentiram tão à vontade para nos matar e devastar a floresta.

Até nossas experiências de educação popular, que sempre se construíram em parceria com distintas instituições públicas de ensino,estão sendo ameaçadas pelo ataque nefasto à educação pública promovido pelo atual governo. Todas as interações construídas entre a riqueza de conhecimento dos povos e os conhecimentos sistematizados e produzidos no âmbito das universidades, está sob ataque de uma visão da educação como mercadoria, extremamente doutrinária e que não consegue conviver com a diferença.

Chega de sermos a região com o maior registro de assassinatos no campo! Chega de sermos o território de experimento de novos agrotóxicos! Chega de fogo a queimar nossas entranhas! Chega de estupidez a ignorar nossa diversidade!

Esse cenário de guerra tem sido respondido à altura. Somos múltiplos povos em luta contra o saque e a invasão dos nossos territórios. Por isso, repudiamos veementemente os ataques racistas e preconceituosos aos povos indígenas e quilombolas, os conchavos legislativos para a invasão de nossos territórios, a ganância das grandes corporações que saqueiam nossa terra e o banditismo social do latifúndio, blindado por grande parte do Poder Judiciário e assessorado pelas forças de segurança do Estado.

Diante desse cenário de ameaças é preciso que todos nos ouçam quando dizemos que qualquer projeto para a Amazônia deve, primeiro, ouvir o conhecimento que os povos construíram nessa região. Por isso, exigimos que os nossos territórios indígenas, campesinos, ribeirinhos, quilombolas, de quebradeiras de coco babaçu, de seringueiros, vazanteiros e de vários outros povos e comunidades tradicionais da Amazônia sejam respeitados, garantidos e protegidos contra a ganância dos empreendimentos predatórios que devastam a natureza e violentam a vida. Dessa forma, também exigimos respeito e cumprimento dos tratados internacionais firmados pelo Brasil que nos garantem o direito à consulta prévia, livre e informada antes de quaisquer decisões que afetem nossos bens e direitos, como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Exigimos, ainda, que a natureza seja respeitada como um sujeito de direito, pois só reconhecendo os direitos da natureza conseguiremos frear ações predatórias que alterem de forma irreversível determinados ecossistemas e impedir empreendimentos que conduzam a processos de extinção de espécies e alteração de ciclos naturais.

Este cerco de ignorância, sangue, fogo e fumaça que agora se forma ao redor de nós, protegido pelo aparato militar, não irá nos acovardar! Resistimos por muitos séculos e continuaremos a resistir. Estamos nas ruas, no campo e na cidade. Estamos com Papa Francisco que convocou o Sínodo, um grande evento da Igreja Católica para discutir a Amazônia. Estamos com intelectuais, artistas e toda a sociedade que cada vez mais se agrega à nossa luta. Reafirmamos a defesa da Amazônia com gente, com desenvolvimento sustentável, com fortalecimento das instituições representativas dos povos, dos órgãos públicos que tratam da reforma agrária, regularização fundiária, social e ambiental, com atuação responsável e socioambientalmente correta.

Queremos e contamos com a solidariedade de todas e todos na busca por horizontes mais justos para a Amazônia e para o mundo, pelo bem viver da atual e das futuras gerações. O que nos une não é a ignorância e a intransigência, mas a vida em sua multiplicidade, expressa na diversidade de nossas organizações e nas distintas formas de respeito à natureza que construímos. A floresta vive porque nós estamos vivos e assim permaneceremos como sementes da justiça para as muitas Amazônias que somos nós!

Marabá, 17 de outubro de 2019.

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