Água: a vida…ou a Bolsa?

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Latifa Madani

ODIARIO.INFO

Vital ou não, quanto mais um recurso escasseia, mais ele aguça o apetite do capital. A prova: o ouro azul da Califórnia está chegando a Wall Street. Pior, este novo índice do mercado de ações pode tornar-se «uma referência mundial no preço da água». Um precedente inédito e desastroso para a humanidade.

A água é vida, dizemos nós. É também e acima de tudo um maná financeiro inestimável para negociantes ávidos e sem escrúpulos. Os operadores da Chicago Mercantile Exchange (CME) e da Nasdaq anunciaram, em 27 de outubro, o lançamento no final do ano de contratos a termo sobre as águas californianas. Uma nova etapa na financeirização da água consagrada ainda como um direito humano universal pela ONU.

O recurso vital torna-se um produto financeiro juntamente com o petróleo ou o trigo num dos mercados de ações mais especulativos em que os «especuladores poderão empurrar os preços para cima, tentando vender caro o que compraram barato, colocando portanto em dificuldades agricultores, municípios e os seus habitantes», explica Pierre Ivorra, jornalista econômico («L’Humanité», 28 de outubro).

Esta mudança perigosa do estatuto da água tinha sido anunciada há cinco anos após a COP21. «A alteração climática terá um grande impacto na água disponível. O período da água de nascente que flui naturalmente na ducha terminou”, disse Willem Buiter, consultor do Citigroup, um grande banco americano. «É necessário que as pessoas sintam na carteira em cada gole de água que bebem que a água tem um custo. Não é porque água é vida que não signifique que não deva ter um preço», acrescentou sem complexos. «Encontramo-nos no início da revolução financeira da água.»

Cinco anos depois, aqui estamos. Privatizada na Grã-Bretanha por Thatcher, propriedade de fundos de investimento na Austrália, a água está a caminho de se tornar um índice bolsista no qual os negociantes irão apostar. Com um clique na tela, eles comprarão, venderão ou controlarão megalitros de água. Um recurso sem o qual não haveria vida. O novo índice bolsista de água da Califórnia pode tornar-se “uma referência mundial em preços de água”, avança a Chicago Mercantile Exchange em 27 de outubro, acrescentando: «Dois terços da população mundial vão enfrentar escassez de água em 2025.»

ÁGUA CONTAMINADA MATA 2,6 MILHÕES DE PESSOAS

Quanto mais o recurso escasseia, pela procura e pelo aquecimento global, mais aguça o apetite do capital. A escassez pode afetar, segundo a ONU, 5 bilhões de pessoas em 2050. 2,6 milhões de pessoas, especialmente crianças, morrem todos os anos de doenças relacionadas à água contaminada. A procura de água provoca guerras e migrações. No seu relatório de março, a ONU teme que essas tensões aumentem no futuro.

Uma bênção, por outro lado, para especuladores que contam com este quadro dramático. Para eles, o setor promete um futuro brilhante: “O recurso mais cobiçado do planeta tem uma avenida de crescimento. O seu valor pode em breve superar o do petróleo”, argumentou a revista “Capital” na edição de março, por ocasião do Dia Mundial da Água. «A urbanização, que deve promover um aumento de 80% no consumo urbano» daqui a 2050, “irá beneficiar aqueles que gerem o transporte e distribuição de água” como indica, na mesma revista, um especialista do grupo de gestão dos ativos do Pictet Asset Management. Para “lucrar com as boas perspectivas para as profissões de água”, o especialista recomenda um fundo dedicado, como o Pictet Water. Criado há vinte anos, este fundo registou um ganho de 263% desde o início e de 15% nos últimos doze meses.

No dia 27 de outubro, a Bolsa de Valores de Chicago anunciou o lançamento de futuros sobre a água da Califórnia. São produtos financeiros que podem gerar enormes especulações, especialmente neste Estado em que as reservas de água baixam dramaticamente (frente ao lago Oroville que está seco).

1,1 BILHÕES:
Esta é, em dólares, a estimativa do mercado de água na Califórnia. 40% do consumo neste Estado está ligado à irrigação de 3,5 milhões de hectares de produção agrícola.

PIONEIROS AUSTRALIANOS COM DENTES LONGOS

Os fundos de investimento inauguraram na Austrália o mercado de água como um bom investimento. Neste país, particularmente afetado pelo aquecimento global, cada gota de água conta. Os cursos de água, variando com o clima, inflacionaram os dividendos dos investidores e provocaram a morte de muitas pequenas explorações familiares. Como podemos especular sobre um produto natural essencial para a vida e a humanidade? «É herético. Os mercados financeiros estão sempre prontos para fazer qualquer coisa, a ir sempre mais longe», comenta Emmanuel Poilane, secretário-geral da France Libertés – Fundação Danielle-Mitterrand. Ele lembra que o CEO da Nestlé queria, há dez anos, a criação deste tipo de contratos sobre a água, alegando que «seria bom para o planeta, porque seria para proteger o recurso». No entanto, em 2010, a ONU proclamou que «o direito à água potável e saneamento é um direito fundamental, essencial para o pleno gozo da vida e exercício de todos os direitos humanos». Uma primeira vitória na longa batalha pelo estatuto da água, bem comum.

As Nações Unidas reconheceram assim a centralidade da água na realização de outros direitos. Contudo, «entre uma resolução da ONU e a implementação efetiva de um direito, existe um mundo», explica Sylvie Paquerot da Fundação Danielle-Mitterrand, professora na Universidade de Ottawa. «Este direito não pôs em causa o estatuto da água, ou seja, uma visão puramente econômica, utilitarista e extrativista, o que causa a destruição de coisas vivas e cria fortes desigualdades de acesso. Hoje mais e mais direitos humanos são condicionados à capacidade de pagamento.» Para a especialista, «As batalhas na água são fundamentalmente batalhas políticas e democráticas».

DIREITO À ÁGUA, BOLÍVIA E EQUADOR NA PONTA

A aposta é civilizacional. É objeto de fortes mobilizações populares no mundo inteiro. O direito à água experimentou um progresso significativo quando o Equador, em 2007, e a Bolívia, em 2009, inscreveram nas suas Constituições, aprovadas por referendo, “água, bem comum nacional submetido ao princípio de não mercantilização”. O Equador também definiu a natureza como sujeito de direito. A Nova Zelândia atribuiu aos seus ecossistemas aquáticos personalidade jurídica.

Na Europa, são regularmente travadas lutas contra a mercantilização da água. Em 2012, a iniciativa europeia “Direito à Água (right2water)” reuniu mais de 2 milhões de assinaturas. A Comissão Europeia tomou nota, sem que isso se tivesse traduzido em fatos. Está cheio de armadilhas o caminho para fazer do direito à água uma realidade, para impor que a água seja o bem comum da humanidade e dos seres vivos, e especialmente que não se torne «ouro azul», o petróleo do século XXI.

Em La Victoria del Portete, a cerca de quinze quilômetros de Cuenca, Equador, Carlos Pérez Guartambel garante que não o vão deixar. “Os meus pais ensinaram-me que água e fogo partilham-se, não se vendem», diz o presidente da União de Sistemas Comunitários de Água de Azuay. Neste país, a gestão da água pela comunidade foi arrancada à custa de sangue. Além disso, promete, «a luta pela água vai ser a luta pela vida».

Original em: https://www.france-libertes.org/wp-content/uploads/2020/12/leau-la-vie-ou-la-bourse-huma-dimanche-201120.pdf

(Traduzido por STAL)