A armadilha do desenvolvimento sustentado
A localidade de Bento Rodrigues foi arrasada pela lama tóxica da Samarco Mineração SA, em 5 de novembro de 2015.
A Samarco é uma subsidiária da anglo-australiana BHP Hilton e da brasileira Vale, respectivamente a primeira e a quinta maiores mineradoras mundiais.
Créditos / Agência Brasil
José Goulão
ABRIL ABRIL
A cultura do lucro máximo e sem restrições continua a se aprimorar. O discurso do desenvolvimento sustentado é um dos seus principais suportes propagandísticos.
E de repente tudo se tornou sustentável. Dos mais solenes discursos dos poderes à publicidade mais assanhada instando ao mais desenfreado consumismo, à «sustentabilidade» tornou-se um mandamento inapelável. Ignoramos se muitos dos doutrinadores saberão do que estão a falar. Em prol da sustentabilidade faz-se uma mixórdia de conceitos onde cabem a ecologia, o combate às mudanças climáticas, a pegada de carbono e respectiva neutralização, o efeito de estufa, o degelo, as energias renováveis, o desenvolvimento sustentável; num ápice, as coisas que consumimos no dia-a-dia tornaram-se recicláveis, compostáveis, biodegradáveis, obrigatoriamente biológicas. Circula muito e há constante ruído para nos obrigar a assimilar coisas de que a generalidade das pessoas não fazem ideia. Ora, nada disto é inocente, conjuntural e fortuito.
«O capitalismo, o monstro cujas entranhas geraram a crise ambiental em que grande parte do planeta está mergulhado, promete agora limpar a sujeira que provocou – gerando para isso novos negócios»
Embalados por tão poderosa quanto compulsória campanha, caminhamos assim, promete-se, para o melhor dos mundos. E, milagre dos milagres, nada mudou para que isso acontecesse, a não ser «a consciência» do sistema. O capitalismo, o monstro cujas entranhas geraram a crise ambiental em que grande parte do planeta está mergulhado, promete agora limpar a sujeira que provocou – gerando para isso novos negócios. E já sabe como vai fazê-lo: através do desenvolvimento sustentado. Isto é, o capitalismo, na sua versão mais agressiva, o neoliberalismo, tornou-se «verde», ecologicamente correto.
Alcançou-se assim a quadratura do círculo. E, a par da crise ambiental, estamos agora mergulhados também na mais insustentável das mentiras.
Mentindo desde 1987
Foi em 1987 que, através do chamado «Relatório Brundtland», a Comissão Mundial do Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU cunhou o conceito de desenvolvimento sustentado ou sustentável. O que corresponderia a «satisfazer as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras em suprir as suas próprias necessidades». Para isso funcionar haveria, pois, que «satisfazer as necessidades do presente», meta da qual nos vamos afastando cada vez mais; e haveria também, nos termos do documento, que «criar e aplicar novas normas para o comportamento pessoal e recíproco no nível do indivíduo em todos os países, a fim de alcançar o desenvolvimento sustentável». O método a seguir: o ardil da propaganda.
A partir de então, a sustentabilidade transformou-se num chavão, numa muleta semântica para garantir o respeito ambiental sempre que seja necessário vender uma intenção, promessa ou decisão do sistema dominante. Na década de noventa do século passado, segundo técnicos que trabalharam na instituição, o Banco Mundial inseria pelo menos uma vez por página dos seus documentos e relatórios as palavras «sustentável» e «sustentabilidade». Não é necessário recordar o papel do Banco Mundial como pilar do autoritarismo neoliberal e da asfixia globalista. Mas, para que conste, a sua conduta ecologicamente correta dir-se-á irrepreensível.
Digamos que o conteúdo do citado «Relatório Brundtland» foi o primeiro ataque em forma do capitalismo nos terrenos da ecologia e das preocupações ambientais e pacifistas que emergiram com pujança na década de oitenta, precisamente como oposição ao aumento do poder predador do sistema imperial dominante. Na Alemanha Federal, o Partido Verde conseguiu afirmar-se e quebrar o monopólio bipartidário; é importante não confundi-lo, porém, com o atual Partido Verde alemão e respectivas sequelas transnacionais, convertidos ao colaboracionismo dentro do sistema neoliberal, de que é exemplo maior o grupo Verde no Parlamento Europeu.
A conversão, aliás, foi bastante rápida. Durante a década de noventa, com o conceito de «sustentabilidade» afirmando-se de vento em popa, os Verdes alemães chegaram ao governo e então foi possível observar como assumiram, sem pestanejar, o militarismo atlantista na guerra contra a Jugoslávia e o bombardeamento criminoso sobre Belgrado, em 1999. Joscka Fischer, o carismático chefe dos Verdes, era então o ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, portanto mergulhado até aos cabelos nesta guerra de facto nada sustentável.
Dez a 15 anos antes, porém, o cenário era ainda bem diferente. Os Verdes alemães engrossaram o grandioso movimento de massas em que as preocupações ambientais se manifestavam juntamente com a oposição ao militarismo e à instalação no continente europeu de uma nova geração de armas nucleares norte-americanas. Foram os tempos das gigantescas Marchas da Paz em toda a Europa, em que as preocupações com a sobrevivência do planeta abrangiam, de facto, todas as insustentáveis formas de destruição, desde a degradação ambiental, a rapina de recursos naturais à guerra. Então, o neoliberalismo em vez de combater frontalmente esse movimento dividiu-o e assimilou parte, chamando a si a ecologia. E assim nasceu o desenvolvimento sustentável.
Um silêncio insustentável
Hoje, quando tudo se tornou sustentável, a campanha pretensamente em defesa do planeta tornou-se bastante mais seletiva.
E da mesma maneira que os partidos oficiais ecologistas foram convertidos à sustentabilidade regimental, deste conceito desapareceram atividades como a guerra, a rapina de recursos naturais, a produção de lixeiras consumistas e a intoxicante agricultura transnacional predadora, entre muitas outras.
Essas práticas sumiram-se da campanha de propaganda em torno da sustentabilidade por serem insustentáveis para o planeta e a esmagadora maioria dos seus habitantes?
Nada disso. Apenas porque o sistema neoliberal e respectivas câmaras de eco fabricaram os seus próprios e inatacáveis modelos de sustentabilidade e de agressão ambiental, excluindo deles todas as ações que devem ser ignoradas sempre que se fale da destruição do planeta e, por isso, não cabem nos soundbites políticos e publicitários. Ou seja, os predadores do planeta, que são os mesmos que se apropriaram da sua pretensa salvação, reconhecem a crise ambiental mas tentam esconder que é um resultado inevitável do modo capitalista de produção e consumo. Ora, como todos sabemos, o capitalismo nasceu e cresceu com base na extorsão dos recursos da Terra.
Histórias da Carochinha
O resto da estratégia de construção do mito da sustentabilidade é buscado através de lavagens cerebrais, entretendo os cidadãos com infindáveis histórias da Carochinha elaboradas a partir das inconsequentes cimeiras climáticas da ONU, de agendas e recomendações produzidas, com ou sem chancela das Nações Unidas, pelos poderes globalistas responsáveis pela tragédia ambiental.
Se o leitor visitar websites de alguns dos principais predadores do planeta, com atividades que vão desde a exploração de combustíveis fósseis, as indústrias mineiras até à produção de armamentos, todos eles prometem ser «neutros em carbono» até 2050, enquanto garantem apoiar ações sustentáveis através de mil e uma medidas. Entretanto, continuam a fazer o mesmo de sempre, a emitir gases com efeito de estufa, a encher o mundo de cidadãos sem direitos nem acesso a bens e recursos essenciais, a arrasar meio planeta através de conflitos de índole colonial.
A BP, por exemplo, foi responsável pelo gigantesco desastre ambiental decorrente da explosão da plataforma petrolífera Deepwater Horizon, abstendo-se, entretanto, de completar o trabalho de limpeza das áreas atingidas. Hoje «conduz carbono neutro», isto é, garante a todos os consumidores que se abasteçam nos seus postos de combustíveis que estão tendo comportamento «sustentável» porque os efeitos poluentes da gasolina ou gasóleo que utilizarem são «compensados» pelo patrocínio de ações como a compra de créditos de carbono «gerados a partir de projetos globais», ou a plantação de árvores algures na Zâmbia, México ou Índia – poupando-se assim «dois milhões de toneladas de carbono por ano». Entretanto, o sistema dominante e os seus subprodutos arrasam milhões de hectares de florestas em todo o mundo, da Amazônia à Europa Ocidental, passando pela Califórnia.
Ao mesmo tempo, a BP e as suas concorrentes aceleram a exploração e pesquisa de combustíveis fósseis em todo o mundo – e certamente não será para que as jazidas fiquem de pousio. Serão exploradas até ao último mililitro, incluindo os provenientes de fratura hidráulica (fracking), atividade ainda mais insustentável para as terras e as águas atingidas.
Por isso, e apesar de todos os avanços em energias renováveis, os combustíveis fósseis são ainda responsáveis por 80% do fluxo energético mundial.
Esta situação obriga a refletir sobre o significado dos veículos elétricos na propaganda da sustentabilidade. Embora não poluam com emissões de carbono, essas viaturas consomem energia resultante de combustíveis fósseis, sem contar com a exploração não sustentada de recursos naturais, principalmente o lítio, que são componentes essenciais das baterias. Portando, às custas das emissões «zero carbono» da chamada «mobilidade elétrica» existe o lançamento de gases com efeito de estufa na atmosfera praticamente ao ritmo de sempre; além de atividades mineiras não sustentáveis.
«É uma questão de sobrevivência da humanidade: se todos os países emergentes como Brasil, China ou Índia, por exemplo, decidirem copiar o estilo de vida dos países desenvolvidos serão necessários cinco planetas Terra para atender ao aumento da procura»
Sha Zukang, diplomata chinês (2012)
Quando se fala na propaganda sobre as pretensas atividades sustentáveis dos produtores de combustíveis podem igualmente ser abordados os comportamentos das transnacionais dos refrigerantes e do setor agroalimentar. Dizendo-se muito empenhadas na sustentabilidade – a Nestlé promete borras de café transformadas em grãos de arroz – estão envolvidas, por exemplo, na exploração desenfreada e a preços irrisórios dos recursos aquíferos quando as carências de água atingem pelo menos um bilhão de pessoas no mundo. E a privatização da água apenas agravará esse problema, aprofundado ainda pelo aquecimento global.
Quando ao agronegócio, é conhecida a atividade de grandes grupos como a Monsanto que, desde o envenenamento das terras com pesticidas à manipulação genética, multiplicam atividades nocivas para os seres humanos e o ambiente. É difícil acreditar que a sustentabilidade passe por aqui.
Insustentável
Embora se fale até à exaustão em desenvolvimento sustentável, a generalidade das pessoas desconhece do que se trata – e também não são muitos os esforços para informá-las. Desenvolvimento sustentado seria a capacidade de travar ou compensar as atividades que provocam danos irreversíveis ao planeta através da ruptura de ecossistemas, de modo que houvesse soma zero entre prejuízos e vantagens. Um equilíbrio ideal, sempre precário e delicado na sua dinâmica, perfeitamente incompatível com o modo como o mundo funciona sob o poder neoliberal de tendência global.
«Os efeitos nocivos de 30 ou 40 anos de intervenção intensiva [de exploração mineira], entre desperdícios, venenos, desertificação e alterações geológicas, demoram centenas, milhares de anos para desaparecer. São feridas que ficam e que teriam de ser inseridas nas contas de sustentabilidade de uma teoria ecológica séria»
A imposição desse poder através dos padrões industrializados e consumistas decorrentes da ideologia de livre mercado como modelo civilizacional único torna impossível que o desenvolvimento sustentado seja alcançado por este caminho. Em março de 2012, na chamada «Conferência do Rio + 20», o diplomata chinês Sha Zukang, na altura secretário-geral adjunto das Nações Unidas responsável pelo Departamento dos Assuntos Económicos e Sociais, foi muito claro sobre as consequências dessa forma de globalismo: «É uma questão de sobrevivência da humanidade: se todos os países emergentes como Brasil, China ou Índia, por exemplo, decidirem copiar o estilo de vida dos países desenvolvidos serão necessários cinco planetas Terra para atender ao aumento da procura».
Está à vista de todos que a política de desenvolvimento sustentado apregoada pelos grandes poderes ocidentais e as instâncias do globalismo neoliberal como o FMI, o Banco Mundial e o Fórum Econômico Mundial, assenta numa mentalidade colonial.
Não é segredo que as grandes potências, no atual modelo econômico, não conseguem sobreviver com os próprios recursos. Essa é uma das origens essenciais dos comportamentos dominantes para impor o modelo neoliberal global: a guerra, a corrida às matérias-primas e a eliminação de fronteiras e soberanias nacionais através da dissolução do conceito de Estado.
E nenhum destes caminhos é sustentável do ponto de vista humano e ambiental.
A guerra é insustentável por definição. Por isso não surge nas contas de deve e haver que acompanham a doutrina ecológica do capitalismo «verde». As guerras sem fim que hoje constituem a dominante comportamental do neoliberalismo de tendência global arrasam povos, países, territórios e também qualquer doutrina de sustentabilidade. Os efeitos das guerras não são compensáveis por «créditos de carbono», plantações de árvores ou substituição de automóveis a diesel por carros elétricos. Estas medidas, tidas como grandes passos no caminho do desenvolvimento sustentável, não passarão de panaceias irrisórias – mas bastante lucrativas – enquanto se mantiver o culto da guerra planetária: assumida ou alimentada por uma tensão permanente geradora de uma infindável – e insustentável – corrida aos armamentos.
Não poderá existir qualquer teoria ecológica séria e profícua que não equacione com rigor as componentes belicista e militarista, doutrinariamente dominantes. No entanto, a OTAN diz-se comprometida com exercícios militares onde a «sustentabilidade» é uma preocupação; e os gigantes da produção e comércio de armamentos cada vez mais sofisticados prometem «carbono neutro» até 2050 nas suas atividades. A mentira delirante não tem limites.
Tão insustentável como a guerra é a corrida desenfreada aos recursos naturais do planeta, que se desenvolve em muitas pistas – algumas delas muito bem guardadas através da implantação de conflitos armados.
Uma delas é a atividade mineira transnacional, que não conhece direitos humanos e ambientais. Um território abandonado por uma transnacional depois da exploração de uma ou várias minas é uma chaga aberta na crosta do planeta. Os efeitos nocivos de 30 ou 40 anos de intervenção intensiva, entre desperdícios, venenos, desertificação e alterações geológicas, demoram centenas, milhares de anos a desaparecer. São feridas que ficam e que teriam de ser inseridas nas contas de sustentabilidade de uma teoria ecológica séria.
Ora isso não acontece. As transnacionais mineiras também prometem «carbono neutro» à luz dos Acordos de Paris, chegam a instalar moinhos eólicos e painéis solares nas áreas de intervenção para simular que as suas atividades de extorsão são apoiadas por energias limpas e renováveis, mas nada disso disfarça, na prática, a insustentabilidade dos seus comportamentos. Os fantasiosos resultados da propaganda, contudo, tornam-se mais reais que os fatos perante a opinião pública, e assim se vai disseminando, como virtuosa, uma ideia de ecologia absolutamente insustentável.
Estamos perante uma fraude com dimensões planetárias. Enquanto isso, as calotas polares vão-se derretendo, os mares sobem, a água continua a esgotar-se, as zonas desérticas avançam, as tempestades meteorológicas adquirem características e periodicidades cada vez mais agravadas; entretanto, no setor colonialista do mundo os cidadãos estão entretidos com bem-intencionados exercícios ambientalistas, embalados pela conversa fiada do discurso sobre o desenvolvimento sustentado, enquanto o planeta continua a caminhar para o abismo.
A pandemia de COVID-19 está proporcionando um processo de concentração de riqueza nunca visto em apenas meia dúzia de mãos; as instâncias neoliberais preparam o «grande reinício» do sistema capitalista, apresentando a questão ambiental como um dos pilares; a guerra e a dilapidação dos recursos do planeta continuam incontroláveis; a educação para o consumismo, que transforma a Terra numa lixeira, é uma das mais poderosas vertentes coloniais.
A cultura do lucro máximo e sem restrições continua a se aprimorar. O discurso do desenvolvimento sustentado é um dos seus principais suportes propagandísticos.
José Goulão, Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril