Crise no Haiti: culpa de muitos e benefício de poucos
Anelí Ruiz García*
Porto Príncipe (Prensa Latina)
Momentaneamente, o Haiti encerrou outro capítulo de luta antigovernamental aguerrida, com a tímida volta à normalidade das principais atividades da capital e outras cidades, depois de 11 dias de mobilização geral.
Os protestos iniciados em 7 de fevereiro, para pedir a renúncia do presidente Jovenel Moise e sua equipe de Governo, se estenderam como nunca antes desde a chegada ao poder do empresário bananeiro em 2017.
A capital foi a que mais sofreu a ira dos manifestantes, que paralisaram a cidade de três milhões de habitantes e suspenderam serviços básicos como o abastecimento de água, eletricidade, combustível, até o mercado informal, sustento de mais do 70% da população.
Entre as demandas, figura a redução imediata do preço dos produtos de primeira necessidade, o estabelecimento de um governo interino e justiça no caso do desfalque ao programa energético venezuelano Petrocaribe.
Os manifestantes construíram barricadas, atacaram negócios e instituições públicas como a televisão estatal e se plantaram em frente ao Palácio Nacional com gritos de ‘Aba Jovenel’ (Abaixo Jovenel), além de protagonizar confrontos com a polícia.
A operação, chamada pela oposição de “Bloqueio do país”, manteve incomunicáveis várias cidades e ameaçou o funcionamento dos centros hospitalares, sendo que alguns tiveram que fechar suas portas.
Para dar mais sabor ao prato, no domingo passado, foram presos oito indivíduos com um arsenal de armamentos e outros equipamentos, acusados pela polícia haitiana de posse ilegal de armas e conspiração criminosa.
O grupo, conformado por cinco estadunidenses, um sérvio, um russo e um haitiano, foi detido nas proximidades do Banco da República do Haiti, supostamente com intenções de roubá-lo, asseguraram fontes oficiais.
No entanto, o premiê Jean Henry Céant, que tomou posse depois da renúncia forçada do outrora chefe de Governo Jack Guy Lafontant, disse em entrevista ao canal norte-americano CNN que o grupo de mercenários tentava levar a cabo um ataque contra ele e o Parlamento.
As acusações causaram revolta, principalmente porque os presos declararam no momento da detenção estar trabalhando “a serviço do Governo”, o que foi firmemente negado pelos porta-vozes da instituição.
No entanto, o clima fica mais tenso entre os chefes do Executivo, outrora adversários na corrida presidencial de 2016 que ainda mantêm diferenças políticas.
No meio dos intensos protestos e do caos político, o primeiro-ministro descartou a possibilidade de sua renúncia e confirmou à imprensa que recebia pressões do Palácio Nacional para abandonar o cargo.
Dias depois, em uma mensagem transmitida pela Televisão Nacional do Haiti, o mandatário anunciava um pacote de medidas para reduzir a despesa estatal e combater a corrupção, como soluções incipientes para enfrentar a crise.
MEDIDAS GOVERNAMENTAIS ANTICRISES DO HAITI
Durante o primeiro dia de trégua da oposição, Céant comunicou que reduziria 30% do orçamento do Executivo, eliminaria mordomias desnecessárias aos servidores públicos governamentais – como tarifas de combustível diferenciadas, cartões telefônicos, pagamento de viagens internacionais extraoficiais e a redução do número de consultores, entre outras.
Também ordenou uma auditaria a todas as empresas vinculadas ao Estado e que o trabalho seja desempenhado com a comunidade internacional, o setor privado, a polícia e a Inspeção de Alfândegas para vigiar e evitar o contrabando de mercadorias. Além disso, prometeu se reunir com os empresários para discutir um possível aumento dos salários mínimos e seguir investigando a malversação dos fundos do Petrocaribe, que, segundo um relatório do Tribunal Superior de Contas, supera dois bilhões de dólares.
O chefe do Executivo afirmou que conversará com os sócios internacionais para recuperar o investimento direto e desenvolverá um programa com os produtores locais, importadores e sócios estrangeiros para desmembrar o custo dos produtos. Para alguns especialistas, estas medidas, apesar de irem além das que foram aprovadas há duas semanas quando se decretou o estado de emergência econômica, ainda se parecem muito com as promessas do início do governo de Jovenel Moise.
O professor universitário e ativista político Camille Chalmers disse à Prensa Latina que aplicar as disposições é atacar diretamente as alianças que o Governo estabeleceu com os diferentes setores, e que por isso “não é factível”.
Por sua vez, o chefe de Estado, que demorou oito dias para pronunciar um discurso tranquilizador e por momentos agressivo, em meio aos distúrbios sociais, enfatizou o diálogo nacional como única alternativa para encontrar soluções reais à atual crise. Na última terça-feira deu início a uma série de conversas com representantes de vários setores, como o fórum econômico, os religiosos e até o ex-presidente interino Jocelerme Privert.
Ainda não conseguiu convencer a ala mais radical da oposição, que cada vez agrega mais adeptos e se nega a sentar à mesa de negociações com a administração, a quem acusa de má gestão e de deteriorar ainda mais a situação da população vulnerável.
No entanto, o senador Willot Joseph, que abertamente apoia o governo de Moise, denunciou que o presidente não é o único responsável pela deterioração da situação econômica do país. Sem ter suas declarações negadas até o momento, Joseph disse que alguns dos líderes da oposição também controlam instituições “suculentas”.
Entrevistado no programa de rádio Magik 9, o parlamentar disse que o Escritório Nacional do Seguro de Velhice, o principal fundo de pensões do país, está controlado por Youri Latortue e Cholzer Chancy, ambos líderes do partido Ayiti an aksyon, e o Fundo de Assistência Social está em mãos da senadora Graça Delva, também membro da mesma plataforma.
Do mesmo modo, confirmou que o Fundo de Assistência Econômica e Social, com um orçamento de várias dezenas de milhões de dólares, está sob controle do presidente da Câmara Alta, Carl Murat Cantave e do senador Onondieu Louis. Segundo Joseph, o presidente da Câmara deputados, Gary Bodeau, e o senador Rony Célestin têm o Escritório de monetização dos programas de ajuda ao desenvolvimento, que gerencia mais de um bilhão de dólares ao ano, e a lista continua. Para o parlamentar, Moise não deve ser culpado por todos os erros; o Legislativo também tem responsabilidade, pois seus dirigentes monopolizam grande parte das instituições.
Enquanto isso, o Haiti vive uma de suas piores crises econômicas, com um déficit orçamentário que supera os 86 milhões de dólares no primeiro trimestre fiscal, uma inflação de mais de 15% e a perda de mais de 68% do valor da moeda nacional frente ao dólar nos últimos três anos.
Na ordem social, a pobreza extrema atinge um quarto da população e mais de 80% vive com menos de dois dólares por dia. Este cenário resultou nas diversas manifestações que, nos últimos quatro meses, sacodem o governo de Moise e ameaçam desestabilizar ainda mais a empobrecida nação.
*Correspondente da Prensa Latina no Haiti
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