Que os mortos enterrem os seus mortos

imagemAngeles Maestro

Uma reflexão sobre a evolução da situação em Espanha, em que o arrastar da crise teve forte repercussão no interior do PSOE, culminando com a demissão do seu secretário-geral. Haja ou não novas eleições, forme-se ou não um governo do PP encabeçado por Rajoy, a tensão não irá abrandar. Resta saber em que condições poderá desenvolver-se uma resistência popular.

A crise agudiza as contradições e acelera os processos políticos. As formas intermédias e as tentativas reformistas são ilusões que rapidamente desvanecem.

O empenho de Pedro Sánchez em conduzir o PSOE por vias diferentes daquelas marcadas a fogo na Transição foi efémero. Muito mais do que a tentativa de Zapatero de sair dos carris impostos pela UE, em que acabou sendo o grande executor das suas políticas, reforma constitucional incluída. Perante a derrota do já ex-secretário-geral do PSOE é preciso recordar o Marx do XVIII Brumário de Luís Bonaparte, em que recomendava que se deixassem os mortos enterrar os seus mortos, para que as revoluções tomassem consciência do seu próprio conteúdo.

Mas não têm validade, e menos que nunca em momentos de crise geral como os de agora, as análises a traço grosso que reduzem tudo a burguesia contra proletariado. E não são úteis porque nos impedem de ter em conta um aspecto central da luta de classes: conhecer as contradições e todos aqueles aspectos relativos às classes dominantes que possam debilitar o inimigo.

Por isso importa saber que o pilar político fundamental sobre o qual a Transição se articulou está a ceder. O PSOE, se não se divide, vai sair profundamente debilitado. E essa é a prenda envenenada que recebe a fracção capitaneada pelo grupo PRISA, que foi responsável directa pelas políticas mais agressivas contra a classe operária nas últimas décadas, políticas bem remuneradas com lugares nos conselhos de administração das empresas do IBEX 35.

Teremos com muita probabilidade governo do PP com Rajoy à cabeça. Já não haverá terceiras eleições. Mas a instabilidade política e a deslegitimação da engrenagem institucional, do futuro governo e da maioria parlamentar que o sustente não terá precedentes.

Porque a tarefa que o novo Executivo tem ante sí é aplicar os cortes na despesa pública, las reformas laborais e das pensões, e as privatizações pelas quais a Troika clama impaciente desde há meses.

E a resposta popular perante isso que, embora adormecida, não vai partir do zero. Dar-se-á sem reservas e sem a anestesia que teriam podido representar caras jovens e amáveis que viessem explicar – como fez Syriza na Grécia – que “não se pode fazer outra coisa senão o que Bruxelas manda”.

É esse o grande tema, oculto em todas as análises e que, como o rei que vai nu, ninguém aponta. ¿Será que um governo do PSOE, com Podemos e as direitas nacionalistas (que sonham com ser Estados da UE) teria deixado de levar a cabo as criminosas políticas contra as classes populares que a Troika reclama impaciente?
O descomunal cenário mediático em torno da crise do PSOE não deve impedir que vejamos o verdadeiro bosque; e é que nenhuma das formações políticas com representação parlamentar questiona a camisa-de-forças com a qual – através do cumprimento dos objectivos do défice e do pagamento da Dívida – a UE asfixia qualquer possibilidade de soberania.

Por isso mudar o discurso de possíveis ministros e ministras de um hipotético governo “contra a casta” sem programa alternativo algum – para não falar já de anticapitalista, mas nem sequer de resistência ante os desígnios da UE -, que venham agora colocar-se em lugares de destaque pretendendo encabeçar a mobilização, não é credível.

O movimento popular e, em concreto, as Marchas da Dignidade que já acordaram convocar grandes mobilizações para 3 de Dezembro, têm pela frente uma grande tarefa de organização e de clarificação. Será preciso impedir que novos prestidigitadores, como os que elaboraram o Plano B (do qual hoje ninguém se lembra), tentem desviar e confundir os objectivos políticos que com muito esforço se vão configurando.

Todo isso sem esquecer que a grande tarefa pendente é a construção do referente político que dê corpo, estabilidade e perspectiva – que não pode ser outra que a conquista do poder – aos embriões de estruturas de poder popular que vão aparecendo. E o tempo urge porque o vazio político não existe.

O fracasso das ilusões eleitorais e o consequente desengano, quando milhões de pessoas – e entre elas muitíssima juventude – vivem mal sem trabalho e sem esperança é terreno fértil em que o fascismo germina. E o fascismo apenas pode combater-se a partir de firmes posições de classe que apostem na luta operária e no fortalecimento do poder popular organizado, afirmando que a UE é irreformável e que não há solução para os nossos problemas que não passe por romper com ela, com o Euro e com a NATO, no caminho de destruir as relações sociais do capitalismo e construir o socialismo.
2 de Outubro de 2016

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