Meio século depois – O Livro, Alexei Tolstoi e a Revolução
Miguel Urbano Rodrigues
Pode suceder que a leitura de um livro desencadeie uma opção que marcará todo o resto da vida. E pode suceder que a releitura desse mesmo livro, muitos anos passados, surja como decepcionante. O livro é o mesmo. Mas o trajecto histórico percorrido modificou profundamente o leitor.
Percorrendo a estrada de muitos reencontros com autores que descobri na juventude, reli nas últimas semanas O Caminho dos Tormentos, de Alexei Tolstoi.
Lido em Conakry em 1961, provocou em mim o terramoto interior que infletiu o rumo da minha vida. O choque emotivo e ideológico desencadeado pela trilogia de Alexei Tolstoi conduziu-me à opção comunista e ao combate politico pelo socialismo.
Ao regressar a São Paulo, o encontro com o Caminho dos Tormentos gerou o desejo de contribuir para a sua divulgação. Traduzi para português, a partir da edição francesa, as 1200 páginas da trilogia, com a ajuda de Manuela Antunes, camarada do jornal Portugal Democrático. A obra foi editada em 1966 pela Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro.
Transcorridas mais de cinco décadas, iniciei a releitura, interrogando-me. Que sentiria?
Afirmar que não gostei seria expressar mal o efeito produzido pelo reencontro com uma obra que marcou tao profundamente uma viragem existencial.
O desencontro com o autor e o livro foi aumentando de capítulo para capítulo. Porquê essa rejeição inesperada?
A deceção era, creio, inevitável.
O Caminho dos Tormentos não é uma obra-prima literária. O romance não mudou. Eu sim, mudei, sou outro.
Tudo era então novo para mim na história romanceada da Revolução Russa. Nas páginas do Caminho dos Tormentos descobri a complexidade
da revolução russa, o mural épico da guerra civil, o sofrimento e a esperança de uma geração que lutara para mudar o mundo.
Pouco conhecia na época de marxismo, e de Lenin lera somente um livro. Hoje o meu olhar sobre a Historia é inseparável de meio século de militância como comunista, da vivência de revoluções e contra-revoluções, e de uma intimidade relativa com culturas antagónicas em dezenas de países por onde andei.
O Caminho dos Tormentos foi escrito ao longo de mais de vinte anos. O autor iniciou o primeiro tomo durante a guerra civil e terminou o terceiro em junho de 1941, quando o Reich nazi invadiu a União Soviética.
O pano de fundo da obra é a própria Revolução, motor das transformações ocorridas entre 1913 e 1919 num território gigantesco.
Na introdução que escrevi para a edição brasileira cometi um primeiro erro. Influenciado por um artigo lido numa revista literária francesa, afirmei que Alexei Tolstoi era parente do autor da Guerra e Paz. Estabeleci uma ponte imaginária entre ambos. Imperdoável o disparate porque entre os dois escritores de comum apenas existe o apelido.
Na tradição da literatura russa desfilam pelo romance centenas de personagens. É aquilo a que os franceses chamam roman fleuve, uma estória torrencial no qual o autor aspirou a colocar a totalidade da vida. Não atingiu o objetivo.
Mas nesse desfile de homens e mulheres muito diferentes apenas quatro personagens atravessam a trilogia. As secundárias importantes, uma meia dúzia, surgem em tomos diferentes, com uma ou duas exceções. As outras entram no binómio antagónico revolução-contra revolução para logo desaparecerem.
O fascínio obsessional que senti então foi tão absurdo que sugeri que a um filho nascido durante a tradução fosse atribuído o nome de uma dessas personagens secundárias: Sergei Sergeievitch Sapojkov. A proposta esbarrou com um veto inultrapassável da mãe do menino. Houve, porem, consenso quanto ao prenome: Sérgio. Mas durante anos, em família, chamei-lhe Sapojkov.
Com alguma surpresa, conclui agora tardiamente que O Caminho dos Tormentos conquistou um prestígio exagerado.
A sua estrutura é tosca. A mensagem transmitida é transparente: a defesa e apologia da Revolução e do socialismo. Escrevi na época que era «um poema revolucionário em prosa». Não perfilho já essa opinião. O resultado não correspondeu à ambição do projeto.
O romance alcançou um grande êxito e contribuiu decisivamente para que Alexei Tolstoi conquistasse uma enorme popularidade e fosse pela crítica considerado um dos mais importantes escritores soviéticos. Uma série televisiva inspirada na obra teve uma audiência de milhões de pessoas.
No primeiro tomo, a atmosfera de Petersburgo no ano 13 é bem evocada por Alexei Tolstoi. Na maravilhosa cidade fundada por Pedro I existia um abismo entre a classe dominante e a massa da população por ela desprezada.
«A capital – transcrevo – levava uma vida agitada, uma vida de notívago entediado. Fosforescentes noites de verão, loucas e voluptuosas noites de inverno sem sono; mesas de jogo e o tilintar do ouro sobre panos verdes, música, pares girando por trás das janelas, troicas lançadas a toda a velocidade,ciganas, duelos ao alvorecer, desfiles militares ao sopro de uma brisa gelada e com acompanhamento de estridentes pífaros, sob os olhos bizantinos e severos do imperador (…) A devassidão infiltrava-se por toda a parte; o palácio parecia atingido por uma epidemia».
É nesse cenário de fim da belle époque russa, efervescente e nauseabunda, que Katia e Dacha, as duas irmãs, procuram um sentido para a vida sem o encontrarem. A aristocracia e a grande burguesia russas, num clima de tédio, confusão e perplexidade, buscavam uma saída para a sua frustração no álcool, no sexo, no dinheiro, em loucas aventuram intelectuais.
As duas irmãs, belas, instruídas, não sabem que caminho seguir.
Katia é casada, mas o marido aborrece-a. Procura o amor numa aventura com um poeta imbecil. Sai amargurada da experiência e foge para Paris em busca, afinal, de nada. Dacha, virgem, apaixona-se pelo mesmo peralvilho, mas recua a tempo.
Para essa classe decadente, o modelo, nas ideias, na literatura, no quotidiano é a Europa ocidental, sobretudo a França.
A Revolução de Fevereiro perturba a intelligentsia burguesa de Petrogrado. Adere porque sentia repulsa pela autocracia, mas não entende o que se passa.
Surgem então no romance Ivan Ilich Teleguine e Vadime Rochtchine. Diferentes- o primeiro é um engenheiro, o segundo um oficial de cavalaria – também são produto da burguesia de Petrogrado.
Ambos são protagonistas do Caminho dos Tormentos.
Alexei Tolstoi destina-os a Dacha e Katia. Um amor esboçado pelo autor como avassalador, quase doloroso pela intensidade.
O vendaval da Revolução de Outubro separa-os. Rochtchine integra-se no exército contra revolucionário dos brancos; Teleguine luta no exército vermelho.
O romance adquire facetas folhetinescas. Perde qualidade.
Dacha liga-se a uma organização anarquista, mas ignora o que é o anarquismo; o percurso de Katia é marcado por uma intimidade permanente com a angústia. Ambas enfrentam situações de beira de abismo. Interrogam-se sobre transformações de uma Rússia desconhecida que não entendem.
Alexei Tolstoi, creio, terá alterado mais de uma vez o projeto do romance. No terceiro tomo, sobretudo, as concessões às teses oficiais sobre a literatura e a História, são transparentes. As atitudes e o discurso de algumas personagens chocam pelo absurdo.
O Caminho dos Tormentos não resvala em alguns capítulos para a sub literatura porque as aventuras folhetinescas de Katia, Dacha, Teleguine e Rochtchine (que adere à Revolução) e o relato inconvincente das batalhas no Cáucaso e nas estepes do Don alternam com páginas belíssimas sobre a vida quotidiana na Rússia devastada.
Mas Tolstoi esboça mal o grande painel épico da Revolução.
O desfecho – um happy end – é preparado com larga antecedência.
Ao terminar a releitura de O Caminho dos Tormentos, invadiu-me uma sensação de mal-estar. Aquele livro, repito, foi determinante para a minha opção pelo comunismo.
Transcorrido mais de meio século, continuo comunista. Sinto ser mais comunista do que no início da Revolução de Abril. Mas interrogo-me: como pôde um romance tão imperfeito fascinar-me?
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