As várias partituras de uma Revolução*

imagemFausto Neves

A produção musical da Revolução Bolchevique, em compositores e em intérpretes, na formação de músicos e de públicos, no acesso das massas à Música, não se fez esperar. A Música foi até às fábricas, clubes populares, cidades, campo, grandes e pequenos centros urbanos. A União Soviética ofereceu ao Mundo grandes e inesquecíveis nomes.

Apesar de todas as lutas terríveis pela sobrevivência da jovem Revolução de Outubro, Lenin deu sempre grande importância à frente cultural, à necessidade de não destruir, mas recuperar, o seu imenso patrimônio, capturado de há muito pela classe burguesa.

Numa Revolução que tentava sobreviver entre guerras vizinhas e traições internas, rebocando todo um povo da miséria de um feudalismo tardio para o novo socialismo, a Música, como todas as outras artes, adere à Revolução e tenta ocupar o seu lugar no frenesi de cada dia. Muitos são os compositores que abraçam a Revolução e nela enriquecem as emoções e as formas. As experiências sucedem-se, os resultados vão sendo analisados e, apesar da quase impossibilidade de paragem para pensar perante a voragem de Outubro, as teorias surgem em paralelo com as dúvidas. Arte de Intervenção e/ou Intervenção pela Arte? Chegada da Arte às massas através da elevação do nível cultural destas ou de uma simplória facilitação daquela? Há tempo útil de Revolução para a eficácia da primeira ideia, ou a pretensa rapidez de resposta da segunda poderá sacrificar o futuro?

Reagruparam-se duas tendências antagônicas na Associação Russa dos Músicos Proletários e na Associação de Música Contemporânea, rejeitando a primeira toda e qualquer tradição em favor da exclusiva composição de canções e hinos interventivos acessíveis às massas, e a segunda, rompendo com a própria música russa e importando as estéticas mais experimentalistas de outros centros mundiais.

Apesar do aparente radicalismo simplista das posições – ambas afastadas do pensamento inicial de Lenin –, todas as grandes discussões estéticas mundiais que a esquerda travaria aí e nos anos seguintes, sob a pressão, ou de pôr a Arte ao serviço da frágil Revolução, ou de responder com urgência dramática à ascensão da extrema-direita na Europa dos anos seguintes, glosavam estes problemas, de uma maneira mais ou menos sutil. Foi o caso dos pensadores marxistas Benjamin, Brecht, Bloch e Lukacz, entre outros, ou mesmo de Lopes-Graça e de um tal António Vale (pseudônimo de Álvaro Cunhal) nas páginas portuguesas da Vértice. Respondendo na prática a estas preocupações, o alemão Hans Eisler, compositor vanguardista à época, escreve em paralelo os revolucionários Kampflieder ou Arbeiterlieder, e dirige o Coro dos Trabalhadores de Viena; Pablo Casals, grande violoncelista, cria e dirige a Orquestra Operária em Barcelona, sob o governo da Frente Republicana; o nosso Fernando Lopes-Graça lança as Canções Heróicas contra Salazar, lado a lado com a sua obra mais erudita.

Claro que os seráficos representantes de uma sociedade que matou Mozart, ostracizou Beethoven ou obrigou Bach a ser uma espécie de «Ambrósio-da-Ferrero-Rocher» no fornecimento de cantatas a rotineiros ofícios religiosos, não perdoam a «Outubro» o fato de, direta ou indiretamente, ganhar a arte de todas estas individualidades para o serviço do Progresso, para a celebração da era da passagem do Capitalismo para o Socialismo.

Da URSS para o mundo

A produção musical da Revolução Bolchevique, em compositores e em intérpretes, na formação de músicos e de públicos, no acesso das massas à Música, não se fez esperar. A Música foi até às fábricas, clubes populares, cidades, campo, grandes e pequenos centros urbanos. A União Soviética ofereceu ao Mundo grandes e inesquecíveis nomes.

Na composição, para além dos reconhecidíssimos Serguei Prokofief – lembremo-nos da «Cantata de Outubro», executada na Festa! –, Dmitri Shostakovitch e, num nível próximo, Katchaturian ou Kabalevski, muitos outros nomes, que nos são omitidos ou não associados à Arte Soviética, se impuseram: Glazounov, Miaskovski, Glière, Vassilenko, Gnessin, Chaporine, Nikolaieva (também celebrada pianista e pedagoga) e Makarova, entre muitos outros. Os provectos conservatórios de música de Leninegrado e Moscovo enriqueceram-se com a sovietização do ensino e dos seus princípios pedagógicos, e influenciaram rapidamente todo o mundo musical, sendo progressivamente procurados por jovens estudantes internacionais. Uma plêiade de artistas formados após Outubro – sucedendo a nomes como Goldweiser, Oborin, Oistrak (pai), Neuhaus ou Knouchevitski – foi idolatrada e disputadíssima nos grandes teatros mundiais: os pianistas Richter, Guilels, Sak, os violinistas Kogan, Oistrak (filho), Weiman, os violoncelistas Chafran e Rostropovitch, para além de maestros, orquestras, grupos de câmara, muitos deles que ainda hoje ostentam a sua indelével formação artística soviética.

O delicado equilíbrio entre os interesses da Revolução e do Progresso e o âmago individual do criador, tendo tido momentos de sobressalto na histórica Revolução de Outubro, foi analisado e depurado pelo recuo histórico, pela experiência e pela sagacidade de Álvaro Cunhal: «Um apelo à arte que intervém na vida social é intrinsecamente um apelo à liberdade, à imaginação, à fantasia, à descoberta e ao sonho. Ou seja: à não obediência a quaisquer «regras» obrigatórias, antes a consideração de que a criatividade artística, mesmo quando parte de certas «regras», acaba por modificá-las, ultrapassá-las e superá-las.»[1]

1. Cunhal, Álvaro. 1996. A Arte, o Artista e a Sociedade, p. 203. Lisboa: Editorial Caminho.
*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2260, 23.03.2017

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