DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DOS MÉTODOS DE TORTURA E DE OUTROS CRIMES HEDIONDOS
Um dos mitos existentes a respeito da sociedade brasileira refere-se a ser pacífico o homem brasileiro. Sempre repetida tal afirmativa pelos seguidores da História Oficial, tal falsa afirmativa acaba por ser aceita como se verdadeira fosse.
Na verdade, a violência foi uma constante na evolução da sociedade brasileira. Estava presente no extermínio de índios pelos colonizadores. Existiu no tratamento dado aos escravos africanos, arrancados de suas terras de origem, imposto ao longo da viagem para o Brasil e sofrido no seu dia-a-dia, como mão-de-obra da Colônia e do Império. Era habitual como prática das autoridades contra os de baixo em geral.
A justiça colonial, ao condenar eventuais rebeldes, usava uma expressão que nos intrigou, por algum tempo: “Portanto condenam ao réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes (…) a que (…) seja conduzido pelas ruas públicas ao local da forca e nela morra morte natural para sempre (…)”. Morrer de morte natural era morrer sem torturas!
Embora não houvesse torturas – pelo menos na hora do enforcamento – a sentença determinava fosse a cabeça de Tiradentes cortada e exposta em local público de Vila Rica – a atual Ouro Preto – e “o seu corpo será dividido em quatro quartos e pregados em postes pelo caminho de Minas (…)”.
Contra outros movimentos de contestação ao regime vigente, adotou-se usualmente prática semelhante.
E o conhecido pau-de-arara, tão amplamente utilizado nos porões da ditadura militar? Nesta, era constituído de dois cavaletes de cerca de 1,5m de altura, feitos com suportes na parte superior, onde eram encaixados às pontas de uma barra de ferro. Despido, com os pulsos e tornozelos amarrados com cordas, com as pernas dobradas, encostadas no peito e os braços envolvendo-as, o preso era pendurado na barra de ferro. Esta, era, então, encaixada nos suportes dos cavaletes. Além de ficar com a cabeça para baixo e, conseqüentemente, com maior concentração de circulação sanguínea na cabeça, o preso sofria pancadas, choques elétricos, queimaduras com cigarros e até podia ser estuprado ou estuprada! Pois bem, esse aparelhinho que a ditadura brasileira até exportou para uso em outros países foi criado no século XVII pelos riquíssimos oligarcas Garcia d’Ávila para punir seus escravos na Bahia!
A prática de cortar a cabeça de adversário derrotado, usada por militares na Guerrilha do Araguaia (1972-1974), vem de longe! Antônio Moreira César, coronel do Exército e comandante da terceira campanha contra Canudos, era conhecido pela alcunha de Corta-Cabeças. Esse cognome devia-se ao fato de haver mandado cortar a cabeça de mil adversários vencidos na Revolução Federalista (1893-1895). Aplicou a usual gravata vermelha quando, da cabeça cortada, a língua pendia, como se gravata fosse.
Os exemplos citados patenteiam o emprego de torturas e outras sevícias contra presos políticos ao longo da História do Brasil!
É importante registrar que métodos de tortura foram sendo aperfeiçoados ao longo dos tempos.
A TORTURA COMO INSTRUMENTO DE PODER E TERROR.
Antes mesmo da ditadura militar, eram enviados policiais e militares para fazerem cursos no exterior. Esses cursos funcionavam na Academia Internacional de Polícia, em Washington, ou no quartel do Forte Gullick, na Zona do Canal do Panamá, onde estava a Escola das Américas. Havia ainda outros quartéis nos Estados Unidos, como o Forte Bragg, o Forte Leavenworth e o Forte Benning, para treinamento militar.
O temor a uma nova Cuba na América acarretou tomar corpo nos Estados Unidos, durante o governo John Kennedy (1961-1963), a criação de projeto de treinamento militar e policial de latino-americanos.
O primeiro professor norte-americano de tortura a chegar ao Rio de Janeiro, em 1960, chamava-se Lauren Goin, que também atuou em Belo Horizonte. Mais conhecido foi Daniel Anthony Mitrione, o Dan Mitrione, policial-instrutor em Belo Horizonte e Rio de Janeiro, desde 1961. Foi ele inclusive quem conseguiu importar “equipamentos de trabalho” no valor de cem mil dólares. “Os Estados Unidos gastaram dois bilhões de dólares para treinar e equipar forças policiais brasileiras a partir de 1964 através de um programa da Agência Internacional para o Desenvolvimento. O programa coordenado pela Secretaria de Segurança Pública, já propiciou treinamento a cem mil policiais, 1/6 dos efetivos policiais do Brasil.” (COOJORNAL, novembro de 1979).
Na Escola das Américas, em Português e Castelhano, eram dados cursos de contra-guerrilhas urbana e rural, métodos científicos de interrogatório, ou seja, tortura. Ensinava-se o que no Brasil denominou-se Ação Cívico Social (ACISO): militares fardados deveriam realizar tarefas que beneficiassem uma comunidade. Desse modo, projetavam uma imagem capaz de torná-los populares.
Muitos militares fizeram esses cursos desde 1954, seja como alunos atentos, seja como instrutores capacitados.
Segundo o general Hugo Abreu “Em fins de 1970 enviamos um grupo de oficiais do I Exército à Inglaterra para aprender o sistema inglês de interrogatório. O método consiste em colocar o prisioneiro em uma cela sem qualquer contato com o mundo exterior. Os carcereiros eram instruídos a deixar o prisioneiro até 18 ou 24 horas sem alimento; depois dava-se o almoço e uma hora depois, o jantar.” Constituía uma técnica de desestruturação psicológica, inclusive com o prisioneiro perdendo a noção do tempo em que vivia. O desequilíbrio psicológico era de tal monta que o prisioneiro ficava fragilizado ao ser interrogado.
O sistema inglês foi introduzido no país pelo general Sylvio Frota, então comandante do I Exército. Apesar disso, Frota ganhou fama de ser contrário a torturas nos presos políticos.
A tortura, entretanto, não é ato que apenas massacre o corpo dos indivíduos. Na verdade, atinge a alma do prisioneiro e deixa marcas perenes. Na verdade, é um crime contra a vida e contra a Humanidade! Recordamos, a propósito, o psicanalista Hélio Pellegrino que considera a tortura “a tentativa de usar o corpo contra a alma, de servir-se da dor como cúmplice contra a mente, sede do espírito e da dignidade dos seres humanos.”
Podemos, portanto, considerar que torturadores, mandantes e coniventes são seres que detestam a vida e a Humanidade!
Que cérebro diabólico da Operação Bandeirante, em 1969, terá criado a cadeira do dragão, terrível máquina de tortura? Esse instrumento de torturas, que os militares repressores chegaram a exportar para outros países, como já haviam feito com o pau-de-arara, era uma cadeira de madeira, cujo assento, o encosto e os braços para apoiar os braços, eram revestidos de chapas de metal. Fios condutores de eletricidade eram ligados às placas e a uma maquininha de choque. Esta era cognominada de Pianola, Boilesen, Perereca,Pimentinha, Maricota ou Manivela. O preso ficava amarrado à cadeira mediante correias de couro. A partir de então, sofria choques elétricos que podiam crescer de intensidade.
O terrorismo de Estado no Brasil foi se sofisticando com o aperfeiçoamento e a diversificação dos instrumentos e métodos de tortura realizados nos órgãos de segurança.
Assim aconteceu com o microfone elétrico, desde 1972 acoplado à cadeira do dragão: os gritos das vítimas, transmitidos pelo microfone, aumentavam a intensidade dos choques.
“Geladeira
O principal equipamento do ‘sistema inglês’. É um cubículo construído em concreto com dois metros de altura por 1,80 metro de largura e 1,80 metro de comprimento com uma porta, de aço, com um metro de altura, tudo pintado de negro. Na parede oposta à porta, junto ao teto, estão instaladas as caixas de som. Na parede lateral direita, a 20 centímetros do chão, há uma abertura para ventilação protegida por uma tela de aço enquanto no teto, também protegido por uma tela de aço, um nicho onde ficam as lâmpadas. Em funcionamento – com um prisioneiro nu, que pode permanecer na ‘geladeira’ até por várias semanas – as caixas de som despejam ruídos de todo tipo: barulho de passos, de moedas girando em uma mesa, de trens, cornetas, de turbinas de jato etc. O volume do som varia aleatoriamente, de extremamente alto a quase inaudível, assim como a temperatura ou as luzes. O equipamento de ventilação pode fornecer dias de frio quase insuportável, algumas horas de calor altíssimo e novamente frio; as luzes podem passar semanas sem se acenderam ou dias inteiros piscando ininterruptamente.” (FON, ANTÔNIO CARLOS. Tortura: a história da repressão política no Brasil, São Paulo: Global Editora e Distribuidora, 1979, pp. 74 e 75).
Acrescentaríamos que as caixas também transmitiam, em altíssimo volume, os gritos de outros torturados e sons dissonantes ensurdecedores. Há notícias ainda do uso de serpente, cujo veneno fora retirado, mas deixava o preso alucinado ao se sentir picado. Mais difícil era o emprego de um jacaré pequeno suspenso por uma corda e ameaçando abocanhar, com suas presas, o preso.
Eventualmente empregava-se o pentotal sódico, vulgarmente cognominado de soro da verdade. No entanto, por ser considerado pouco eficaz, acabou sendo pouco aproveitado. Um dos seus efeitos trágicos é a possibilidade de acarretar danos psíquicos à vítima.
Um dos métodos mais utilizados pela repressão foi o afogamento, em várias modalidades. A mais usual era empurrar a cabeça do preso em um barril cheio d’água.
Foram 310 tipos de torturas, físicas e psicológicas, aplicadas de maneira institucionalizada visando precipuamente sustentar o regime implantado, serem um método de coletar informações e constituir uma arma de intimidação.
Já vimos que os métodos se sofisticaram e se diversificaram, contudo, muitos torturadores ainda recorriam a práticas pré-históricas: com um alicate arrancavam dentes da vítima até que ela confessasse. Empregava-se também a medieval roldana ou polé, espancamentos desapiedados, inclusive nas solas dos pés…
Torturadores brasileiros foram identificados atuando no Uruguai, no Chile e no Paraguai, por ocasião dos golpes, implantando ditaduras militares naqueles países, isso antes mesmo da criação oficial da Operação Condor, em 1974.
É preciso deixar claro não ser correta a idéia simplista de que os torturadores fossem pessoas marcadas por um sadismo congênito e incontrolável. Na verdade, em geral, constituíam pessoas comuns que agiam a serviço de uma política do Estado. Eram motivados freqüentemente pela possibilidade de obter recompensas diversas: medalhas, prêmios, gratificações, promoções. Eram pessoas que rotineiramente mergulharam na prática de sevícias ao preso, chegando mesmo a ficar insensíveis aos gritos e à agonia dos presos selvagemente torturados.
Naturalmente era conhecido dos órgãos de segurança o estudo do general francês Jacques Massu A verdadeira batalha de Argel. Comandante da 10ª Divisão de Paraquedistas e um dos líderes da Organisation de l’Armée Secrete, em seu estudo expõe os métodos repressivos, implicando torturas, empregados contra os guerrilheiros argelinos que lutavam pela independência do seu país. A Folha de São Paulo, de 4 de maio de 2008, por sua vez, publicou entrevista com o general francês Paul Aussaresses que afirmou ter sido instrutor de torturas para oficiais brasileiros no Centro de Instrução de Guerra na Selva, em Manaus, em 1975.
Ainda no governo Médici (1969-1974), o gabinete do ministro do Exército, general Orlando Geisel, fez circular documento confidencial intitulado Interrogatório. Esse documento foi descoberto nos arquivos do DOPS paranaense pela professora de História Derlei Catarina de Luca. O documento confirma que, efetivamente, a tortura foi utilizada como instrumento oficial da política de repressão. Fica evidente que a tortura utilitária era aceita pelos chefes militares da repressão.
Artigo no Jornal do Brasil, de 10 de dezembro de 1978, registra: “Primeiro torturaram-se aqueles que combatiam o regime de armas na mão e praticavam atos terroristas. Depois, aqueles que por qualquer meio lhes foram solidários. Em seguida, os que tinham qualquer ligação, ainda que pessoal, com subversivos. Esgotada essa área, quando o espectro da tortura já rondava a sociedade política do país, utilizava-se qualquer pista para atemorizar jornalistas, intelectuais, estudantes universitários e políticos. Qualquer um podia ir preso e, preso, qualquer um podia ser torturado.”
Esse comentário, eivado de termos popularizados pela repressão, merece os versos seguintes:
“Na primeira noite eles se aproximam e
colhem uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores, matam o nosso cão.
E não dizemos nada.
Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho
em nossa casa, rouba-nos a lua e
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.”
(GOMES, JÚLIO CÉZAR MEIRELLES. A lógica da maldade, Brasília: Thesaurus, 1985, p. 48).
Este Texto foi retirado do livro Um tempo para não esquecer do prof. Rubim dos Santos Leão de Aquino
Fonte: http://www.uni-vos.com/opiniao.html