Ensaio geral: os resultados parciais da greve de massas
Por Gabriel Landi Fazzio*
“Eu não sei bem o que seja, mas sei que seja o que será. O que será que será que se veja vai passar por lá”. Linha de Montagem, Chico Buarque.
“Em diferentes momentos da evolução econômica, dependendo das diferentes condições políticas, nacionais-culturais, de vida, etc., diferentes formas de luta passam para primeiro plano, tornam-se as principais formas de luta, e, em ligação com isto, modificam-se também as formas secundárias, acessórias de luta.” A Guerra de Guerrilhas, Lenin.
Introdução
1 – Rumo à greve geral de 15 de março
2 – O primeiro passo não é só um avanço: é um rumo
3 – 28 de abril: greve, bloqueios e manifestações
4 – A Esquerda Socialista e a greve geral
Apêndice – O que é uma greve de massas?
No centro de São Paulo, as primeiras bombas do batalhão de choque explodiram pouco depois da zero hora de 28 de abril, dispersando um pequeno grupo autônomo de jovens que ensaiava algum protesto espontâneo em frente à Câmara (sem qualquer significado maior). Depois, a noite calou sobre a cidade. Quantas pessoas, nos grandes centros urbanos, dormiram incertas sobre como seria a manhã? Cientes de que a classe trabalhadora brasileira ousara prometer uma greve geral.
É bem verdade que os patrões cuidaram de boa parte da agitação ao longo da semana, com seus preparativos generalizados contra a paralisação de “suas” atividades. E, por outro lado, a simpatia da ampla maioria do povo trabalhador pelas palavras de ordem dos grevistas parecia cada vez mais nítida. Qual seria, afinal, a amplitude da greve geral? E seus resultados?
Como comunistas, acreditamos que é nosso dever não esconder as debilidades de nossas forças, mas criticá-las abertamente para livrarmo-nos delas “o mais cedo possível e de maneira mais radical”. Mas é preciso que essa crítica se volte em ação enérgica em frente, não em hesitação contemplativa, apostando num desfecho negativo e conspirando, com a inação, para sua realização. Ainda mais quando a propaganda antigrevista ventilada pelos meios de comunicação comerciais busca minimizar o significado que se pode extrair do dia 28 de abril.
Por isso não nos parece demais repetir: “o dia 28 de abril de 2017 fica marcado como uma data em que a classe trabalhadora assumiu novamente o protagonismo das lutas no país.” Ou, em outras palavras: a classe trabalhadora passa a se firmar como força dirigente na oposição aos planos da burguesia. Somos atacados enquanto trabalhadores; lutamos como trabalhadores. Esse impulso para que orientemos as lutas de massas por uma perspectiva de unidade da classe trabalhadora é, por si só, um passo adiante na luta ideológica pela elevação da consciência de classe do proletariado.
É autoevidente que a greve geral de 28 de abril não obteve seus objetivos declarados – barrar os ataques do governo dos capitalistas. Por isso mesmo devemos evidenciar os seus resultados ideológicos e organizativos, contra toda tendência oportunista a avaliar uma luta determinada apenas por seus resultados mais econômicos, menosprezando sua importância enquanto momento de uma longa série de lutas rumo à emancipação da classe trabalhadora.
Portanto, ainda que os próximos lances das lutas de classes demandem grandes esforços para a superação das insuficiências do movimento revolucionário (com ainda poucos laços orgânicos com as massas trabalhadoras que passam a se mover), apenas após nos determos um pouco mais nas constatações positivas das potencialidades abertas poderemos avaliar as condições para tal superação. Notemos alguns dos elementos mais significativos que indicam uma intensificação da mobilização da classe trabalhadora.
Antes ainda, é preciso lembrar como chegamos à greve geral de abril pela greve geral de 15 de março – o primeiro ato do ensaio geral grevista.
Rumo à greve geral de 15 de março
Já iam mais de duas décadas desde que pela última vez se levantou, em massa, o chamado à greve geral. Em 1996 a paralisação de 12 milhões de trabalhadores não bastou para barrar as contrarreformas do governo burguês da época, e tal derrota do movimento operário terminou de precipitar seu refluxo. Evidência disso é que a quantidade de greves de 1997 apenas foi retomada em 2012. Deste ano em diante as paralisações da produção se tornaram cada vez mais numerosas e amplas, e o movimento grevista se intensificou até nos setores mais mal remunerados do proletariado (o “precariado”), como garis e operadores de call centers. Ainda assim, mesmo com o acirramento das lutas de massas, de 2013 em diante, as manifestações se lançaram às ruas sem atingir politicamente os locais de trabalho. A classe trabalhadora ia às ruas sob a insígnia da “multidão cidadã”.
Neste período de descenso das lutas de massas da classe trabalhadora, boa parte das direções do movimento operário se integrou à política burguesa, e dezenas de intelectuais “de esquerda” velaram a “morte da classe trabalhadora”. Essa tendência foi enfraquecida abruptamente pela temerária e vexaminosa ruptura da burguesia com a política de conciliação de classes, ao longo do impeachment de Dilma: com a notória passagem da burguesia à ofensiva, a classe trabalhadora foi forçada à defensiva – ou, como seria forçoso lembrar, à eminência de uma derrota colossal.
Todos os estágios da luta de classes que se iniciam em junho de 2013 e atravessam a consolidação do governo Temer até o 15 de março têm esta marca: apresentam como a forma de luta predominante as manifestações de massas, a ocupação das ruas, a luta legal, reivindicativa, mediante o direito de livre manifestação. Essa forma de luta, que se generalizou ao longo dos últimos anos, conferiu um novo impulso às massas, mas também evidenciou seus inúmeros limites: nem em seu auge lograram deter a ofensiva golpista do impeachment, ou mesmo se equiparar à erupção espontânea de 2013. A luta democrática de massas contra o golpismo precisaria ser ultrapassada pela luta grevista de massas do proletariado contra a espoliação. Nas manifestações de massas, a classe trabalhadora se dilui em meio ao “povo” (composto por classes sociais diversas, exceto a burguesia) e à legalidade pacífica, típica das camadas médias – que, diga-se de passagem, dirigiram ideologicamente a oposição de esquerda em todo o período anterior. Na greve geral, a classe trabalhadora assalariada aparece destacada à frente, como primeira fileira, a artilharia pesada de todo o povo explorado e oprimido.
É nesse contexto em que o chamado à greve geral se firmou, mostrando-se necessária e arrastando crescentemente adesões, ainda que fosse vista por muitos setores populares como uma possibilidade remota, uma ameaça agitativa que não se poderia cumprir, quiçá com efeitos desmoralizadores e catastróficos. Em 22 de setembro e em 11 de novembro de 2016 alguns setores paralisaram pontualmente suas atividades e foram organizadas manifestações de massas de baixa adesão.
A greve de 15 de março demorou meses para engrossar suas fileiras. Mesmo a combativa decisão dos trabalhadores da educação de paralisar suas atividades por um dia, em 15 de março, foi humildemente anunciada como “greve geral da educação”. Nos meses seguintes, sob a pressão das contrarreformas de Temer, a passagem acelerada de diversos dos setores mais atrasados do movimento operário para a greve empurrou o movimento muito mais longe do que seus primeiros impulsionadores poderiam prever. A adesão dos rodoviários foi decisiva no Rio de Janeiro e Curitiba, como a dos metroviários em Recife e Belo Horizonte.
Mas, em São Paulo, a paralisação simultânea de ambos reverberou profundamente. Não é exagero dizer que, provavelmente, este é o elemento mais significativo na compreensão do dia 15 de março e seus desdobramentos.
Em 15 de março já é razoável afirmar que não havia ninguém na cidade de São Paulo que desconhecesse a palavra de ordem pela greve geral contra as reformas do governo. Pela primeira vez na história os metroviários e condutores de ônibus paralisaram conjuntamente no maior centro urbano do país, fazendo reconhecer a força do proletariado dos transportes.
Como em todos os momentos anteriores das manifestações de massas, essa luta grevista não obteve qualquer vitória em suas reivindicações. Mas, em termos ideológicos, essa forma de luta obteve efeitos agitativos comparativamente maiores, e um sentido político muito mais preciso: o de classe, não apenas o democrático-formal.
Uma das mais explícitas evidências disso se encontra nas efusivas manifestações de apoio amplamente registradas dos trabalhadores no geral à paralisação política dos metroviários contra a reforma da previdência – as greves que, no seu efeito, sempre sofreram grande rechaço popular, passaram a ser apoiadas quando superaram seu caráter corporativo.
Ambas as greves foram julgadas ilegais pelo Tribunal Regional do Trabalho, uma vez que eram greves com objetivos políticos, e não econômicos. Essa desavergonhada tomada de posição do direito do trabalho em favor da burguesia indignou mesmo o mais legalista dos democratas pequeno-burgueses – ainda que, decerto, tenha seus efeitos negativos sobre os setores mais atrasados das massas, tanto por abrir portas aos cortes de pontos quanto por ilegalizar a greve. Em 15 de março a Justiça do Trabalho aceita abertamente desempenhar o papel de coveira de si mesma, causando náusea mesmo às alas mais reformistas e trabalhistas do movimento operário. Assim, o movimento operário deu de ombros à estrita legalidade e seguiu organizando sua greve.
Nesse sentido, 15 de março já representa uma das maiores ondas de greves políticas das últimas décadas. Percebe-se uma crescente inclinação das massas populares pelas palavras de ordem contra o projeto governamental de desmonte da previdência social – ainda que refletida em boa medida num apoio passivo, hesitante.
Sobre o próprio movimento operário organizado, o impacto subjetivo de 15 de março foi gigantesco: com a reverberação muito maior do que a esperada das greves, muitos setores hesitantes foram atirados ao entusiasmo; os sabichões que cantarolavam que “a greve geral é impossível” baixaram sua voz. O dia 15 de março confirmou o sentido que a luta social deve seguir: a greve de massas, a mobilização de todo o povo trabalhador sob a força arrastadora do proletariado, a única força social capaz de pôr verdadeiramente em risco os planos das classes dominantes.
O primeiro passo não é só um avanço, é um rumo
Ao contrário do que diz a propaganda patronal, o dia de greve geral é um dia de intensa atividade, ao menos para os setores organizados e mobilizados da classe trabalhadora. Em 18 cidades do Brasil, desde a madrugada, os comandos grevistas começaram a fechar as garagens dos ônibus. Nos metrôs, mesmo o deslocamento de funcionários administrativos para as linhas não evitou a paralisação de quase todo o fluxo. Mal o sol raiou e, ao longo de todo o território nacional, foram bloqueadas rodovias, avenidas, barcas, aeroportos e portos pelos trabalhadores sem moradia, trabalhadores do campo, populações indígenas e grupos de estudantes, especialmente secundaristas. Os metalúrgicos cruzaram os braços em diversas fábricas do país, bem como os petroleiros, operários da construção civil (em Fortaleza, 90% dos canteiros de obra foram paralisados), estivadores, aeroviários, funcionários dos correios, químicos, bancários, trabalhadores dos serviços e professores – inclusive nas escolas privadas, um fato novo, em escala (foram 227 só em São Paulo), no movimento dos trabalhadores da educação. As trabalhadoras e os trabalhadores de mais de uma centena de sindicatos e de diversos movimentos populares uniram seus esforços numa ação concentrada e unitária.
O comércio foi gravemente afetado: além de muitos estabelecimentos sequer abrirem, estimou-se uma “perda” na casa dos R$5 bilhões. Os prejuízos à produção propriamente dita a burguesia nem ousa anunciar publicamente. Ao fim, estima-se que cerca de 40 milhões de brasileiros tiver a sua rotina de trabalho interrompida – isso em um país que, de seus 200 milhões de habitantes, tem 60,5 milhões de assalariados, segundo o PNAD de 2014.
As manifestações de massas foram às ruas em tom secundário, como apêndice da greve – como sua voz política, sua constituição em sujeito de massas, para apresentar as reivindicações unificadas de todo o movimento: nenhum direito a menos, a retirada de tramitação de todas as propostas de contrarreformas do trabalho, da previdência, dos direitos sociais, em suma, a interrupção de tudo o que constitui o governo Temer e a agenda da burguesia brasileira!
Adiante, retornaremos a análise da combinação entre cada uma dessas formas de luta. No momento, baste dizer que a mobilização de centenas de milhares de pessoas em todo o país foi fruto da coordenação das ações de inúmeras organizações proletárias e populares das mais diversas orientações políticas.
Só foi possível atingir tamanha mobilização porque o movimento contou com a adesão expressiva de diversos sindicatos tradicionalmente enredados na política burguesa, em maior ou menor grau. Essa passagem à luta causa, naturalmente, desconfianças – seja entre as forças revolucionárias, seja no conjunto da própria classe, que se influencia enormemente pela retórica burguesa em torno do imposto sindical – que faz confundir a corrupção burguesa do sindicalismo com a luta operária. Mas seria um equívoco de nossa parte resumir a adesão das bases do sindicalismo de direita (Força, UGT e afins) à greve geral nesses termos.
Ainda que consideremos que o sindicalismo de direita se move para a greve geral apenas para preservar o imposto sindical, seria despropositado crer que seja isso que empurra suas bases para a adesão em massa à greve – por mais coação que esse sindicalismo pudesse utilizar, nos seus setores mais mafiosos. Por outro lado, nota-se a tendência à radicalização da própria base: veja-se o caso dos condutores de São Paulo, ameaçados pela demissão em massa prevista de 14 mil cobradores; ou os trabalhadores das linhas 8-Diamante e 9-Esmeralda da CPTM que, em assembléia, deliberaram pela paralisação dos trens contra a decisão da diretoria do sindicato de manter as atividades.
Temos todos os motivos para desconfiar do sindicalismo patronal, mesmo quando este se atira à luta. Por isso seguiremos denunciando e combatendo suas direções, seus objetivos, seus métodos que, decerto, os levarão ora ou outra à negociação, na qual buscarão permutar a luta de nossa classe em troca de seus privilégios. Mas temos o dever de lutar ao lado deste sindicalismo nas greves políticas de massas – principalmente se ele se atira à luta sob um deslize da massa trabalhadora em direção à ação grevista! Não é possível sequer conceber a superação destas direções sem que todos seus críticos se liguem profundamente à própria luta das massas que começam a se mover para fora dos limites burocráticos do sindicalismo, com seus dissídios coletivos, multas por greves ilegais, prudências e afins.
Ver na greve geral de 28 de abril algo como um ato performático não poderia passar por mera reticência crítica, combate ao entusiasmo cego: não seria apenas uma desconfiança para com as direções reformistas da classe trabalhadora, mas uma profunda descrença no potencial revolucionário do proletariado – potencial a ser desenvolvido a cada estágio da luta que se atravesse, com seus obstáculos específicos. Apenas um tamanho ceticismo poderia permitir ver os elementos performatividade das manifestações de massas e cegar-se para o elemento inovador da greve geral à qual estas se subordinam.
Em verdade, um passo firme foi dado à frente no sentido oposto ao da ação performática: um rumo que traduz, já na forma, elementos de um conteúdo radical de classe. Começou a desmoronar o temor, tão difundido pelos reformistas no seio da classe, da “impossibilidade de fazer a greve geral na atual conjuntura”.
28 de abril: greve geral, bloqueios e manifestações
A esta altura, pretendermos já ter demonstrado que, a despeito de não ter atingido seus objetivos expressos (barrar as contrarreformas), a greve geral de 28 de abril obteve conquistas – no plano da organização, da ação unitária, da consciência classista, etc. A entrada em cena do proletariado, o potencial de sua posição dirigente na luta do próximo período, se expressa no fato de que a forma de luta de classe do proletariado (ou seja, a sua forma particular e intransferível, que nenhuma outra classe ou camada social pode realizar com mesmo impacto e efeito) se tornou a luta principal que levanta a oposição social a Temer: a luta grevista.
Não pretendemos dizer que com certeza haverá, em breve, uma grave geral ainda maior: dizemos apenas que a tarefa concreta que o movimento de massas agora se colocará é precisamente esta, e que do seu sucesso depende todo o futuro imediato, de vitória ou não da ofensiva burguesa. E, a cada dia, mais trabalhadoras e trabalhadores estão mais conscientes desta verdade.
Deste modo, é preciso tirar o máximo possível de lições, para organizar o amanhã de modo superior, mais consciente.
Em 28 de abril se combinaram de modo sucessivo três formas de luta: a greve geral, os bloqueios e as manifestações de massas. Nesta precisa combinação reside todo o potencial da experiência de 28 de abril em termos da superação do caráter performático (pequeno-burguês) da luta de massas. A luta pela hegemonia proletária no movimento de massas passa precisamente por essa experiência.
A greve geral se apresentou como o fio condutor de toda a mobilização. Foi o maior ato de agitação (e propaganda) da luta da classe operária em décadas, diante do qual imensas parcelas da sociedade foram interpeladas a tomar posição, mesmo que hipoteticamente. Apresentou o conflito geral do país nitidamente nos termos da luta da classe trabalhadora contra o governo dos grandes proprietários.
Não é demais notar que, ao longo da semana, a agitação pela greve geral se alastrou em proporções inesperadas: não apenas diversos sindicatos se lançaram à mobilização de suas categorias (o relato de um camarada sobre a agitação, de porta em porta, de dirigentes do Sindicato dos Porteiros de São Paulo na Avenida Paulista, é um curioso exemplo); como amplos setores da Igreja Católica e alguns setores evangélicos convocaram seus fiéis à greve, e apoios foram manifestados por diversas entidades e personalidades influentes nas camadas médias. Ou seja: a greve geral foi erguida como uma palavra de ordem, expressão concentrada do comando à mobilização do conjunto da classe trabalhadora, na qual mesmo inúmeros setores das camadas médias depositaram sua convicção, chamando-a à ação para deter o governo pela paralização do trabalho.
Quando raiou o dia 28 de abril, a greve nos transportes de 18 cidades já impedia a ida de imensas parcelas da população trabalhadora a seus locais de trabalho – nos casos em que não forneciam justificativa para a expressão parcialmente ativa do apoio passivo, o boicote. Nesse sentido, contra a simplificação burguesa, tomemos nota do potencial das greves do transporte para a libertação grevista de forças que, por si próprias, não poderiam paralisar, em categorias de trabalhadores menos mobilizadas, mais pulverizadas, terceirizadas, etc.
Também nesse sentido [1] pesaram decisivamente os bloqueios. Em 28 de abril os bloqueios se apresentaram (ainda que não em termos conscientes) como a forma de luta de todas as camadas da sociedade que não está em greve. Isso pode não ser evidente, mas por diversos motivos é verdade: seja porque apresenta nitidamente uma atividade que não se confunde com a paralisação da produção, seja porque extrapola violentamente o direito de greve. Ademais, de fato, foi eminentemente a forma da luta das camadas que não fizeram greve – ou porque não estão inseridas imediatamente na produção, como desempregados e estudantes; ou porque estão inseridas numa posição que não lhes permite paralisar, como os trabalhadores autônomos, pequenos produtores, etc. É, contudo, uma forma de luta absolutamente subordinada à greve geral: é o método “guerrilheiro” e disperso de qualquer pequeno grupo que deseje lutar ao lado do proletariado, somando forças para sua ação grevista de massas.
Essa subordinação dos bloqueios à greve implica uma mudança fundamental em relação ao período anterior, no qual os bloqueios surgiam como forma de luta residual, pouco discerníveis dos próprios protestos de massas, que buscavam exercer pressão sobre os governos através da interrupção do trânsito e, com isso, da rotina de trabalho dos centros urbanos (exceto nos casos dos bloqueios de rodovias pelo movimento dos trabalhadores rurais, em que essa forma de luta se apresentava com alguma autonomia que, desde logo, apontava para a paralisação da circulação – senão da própria mercadoria força de trabalho, ao menos das demais).
A extrapolação da luta grevista para além de seus limites econômico-legais, acompanhada dos piquetes rodoviários “foquistas”, foi recebida pelas classes dominantes, seu Estado e sua mídia como uma violência de classe criminosa – que trataram de apresentar como uma violência contra os próprios trabalhadores e seu direito de ir e vir a serviço de seu empregador! Mas a violência efetiva da greve é outras: a de arrancar aos patrões o sagrado direito sobre o pedaço principal de cada dia da vida e atividade de seus empregados, e fazer com que cessem de acumular riqueza, ao menos momentaneamente.
Nesse contexto, se ressaltou nas manifestações de massas o caráter de forma pacífica de ação de massas em 28 de abril. A paralisação dos transportes não só dificultou o acesso às manifestações, mas também lhes esvaziou qualquer papel de obstrução viária (exceto nas cidades menores), despindo-as até nisso do seu conteúdo de “violência contra a ida e vinda”. Esse tom acessório que os atos de rua assumiram ao lado da greve geral teve, em algumas capitais, o efeito de diminuí-los em maior ou menor grau em relação ao atual grau de mobilização já recentemente demonstrado.
Ao mesmo tempo, o chamado nacional de uma greve geral teve um efeito mobilizador, nas cidades do interior do país, muito maior que todos chamados anteriores por dias de manifestações coordenadas. Atos em apoio à greve geral e contra as “reformas” ocorreram em centenas de cidades do país (cerca de 254, segundo levantamentos midiáticos pessimistas).
Não é exagero dizer que mais de um milhão de pessoas foram às ruas em manifestação em todo o país, numa das maiores ondas de protestos de tal tipo desde Junho de 2013. As estimativas otimistas dão conta de que, em Recife, quase 200 mil pessoas foram às ruas; 150 mil em Belo Horizonte; 100 mil em Fortaleza; 80 mil em Salvador; 70 mil em São Paulo, Campo Grande, Goiânia e Natal; 50 mil em Belém; 40 mil em Manaus; 30 mil em Curitiba; 10 mil em Porto Alegre, dando apenas alguns exemplos. A PM, em inúmeras cidades, se recusou a fazer suas estimativas próprias, apenas podendo nos levar a crer que a cifra total, caso oficial, poderia por em causar o discurso oficial sobre nosso “fracasso”…
Ainda que em algumas cidades a mobilização tenha sido expressiva e acima das expectativas, a adesão relativamente baixa aos protestos dos quais talvez se esperasse mais do que o efetivado (como em São Paulo, com suas 70 mil pessoas) parece contradizer a afirmação do parágrafo acima. Mas é preciso ter em vista que não foram apenas as grandes metrópoles que realizaram greves e protestos contra o governo usurpador, como lembra o camarada Edmilson Costa:
“No Brasil profundo, constituído pelas pequenas e médias cidades do interior, também se realizaram manifestações. Por exemplo, foram realizados atos contra o governo em Bujari, no Acre; Marituba, no Pará; Gurupi, no Tocantins; Arapiraca, em Alagoas; Assu, no Rio Grande do Norte; Lauro de Freitas, na Bahia; Juari, no Mato Grosso; Sabará, Minas Gerais; Tatuí, São Paulo e Ijuí, no Rio Grande do Sul. Isso sem contar as cidades de porte médio, onde em quase todas ocorreram manifestações contra o governo.”
Em São Paulo, protestos se estenderam por Piracicaba, Ribeirão Preto, São Carlos, Bauru (cerca de 4 mil!), Marília, Campinas, Franca, São Roque… Em Minas Gerais, estima-se terem ocorrido ao menos 60 atos de massas. Cerca de 130 municípios do Ceará se mobilizaram, segundo o MST, bem como diversos do Maranhão, Alagoas, Espírito Santo, enfim, todos os estados da federação. Na ampla maioria das cidades, portanto, as manifestações representaram uma das maiores ondas de mobilização desde Junho de 2013 – e, sem dúvida, a com mais nítido conteúdo classista, até em relação àquele ano.
Na mesma medida em que se generalizaram os protestos se generalizou a repressão. Sob os ares de uma greve geral, o aparato repressivo não se conteve e respondeu à altura: dispersou desde cedo os bloqueios, manteve-se alerta e reprimiu a ampla maioria das manifestações pacíficas ao redor do país. No Rio de Janeiro as duas grandes ações policiais ao longo do dia inviabilizaram a própria reunião das manifestações por muito tempo. As forças repressivas se lançaram contra os piquetes e protestos, ferindo e prendendo dezenas de militantes proletários. Ao fim do dia, a brutalidade policial levou as manifestações pacíficas a coroarem o dia com, em verdade, uma onda razoavelmente ampla de enfrentamentos entre as massas e as polícias em todo o país.
Em abrangência, 28 de abril de 2017 levou às ruas e aos choques contra a polícia um número significativamente menor de pessoas que as jornadas de junho de 2013. Contudo, também em escala, a greve geral disseminou um senso de pertencimento de classe dos trabalhadores com potencial de explicitar os antagonismos fundamentais de modo muito mais nítido. [2] Qualquer “radicalidade das formas de ação” que supostamente se possa ver em Junho é, na verdade, apenas uma sombra da radicalidade da greve geral de massas: não vai à raiz da luta de classes, infundindo na própria forma de luta a radicalidade da ação proletária de massas, no conteúdo de sua inserção objetiva. A adoção de formas de ação direta de massas típicas dos trabalhadores (trancamentos, piquetes, greves, ações em porta de fábrica etc.) ensina muito mais que as performáticas barricadas de entulhos, vidraças quebradas e provocações deliberadas ao aparato de repressão – tanto porque envolve camadas mais vastas na execução das ações, quanto por demonstrar, com o impacto da paralisação, toda a centralidade do trabalho e da classe que o realiza.
O caráter de classe e conteúdo das mobilizações de 28 de abril é muito distinto daquele das Jornadas de junho de 2013 também por isso – do mesmo modo que pelas suas palavras de ordem em oposição ao conjunto de contrarreformas voltadas à intensificação da exploração, do aumento da extração de mais-valia absoluta, enfim, por suas reinvindicações defensivas proletárias.
É preciso combater em nosso movimento a tendência pequeno-burguesa a superestimar as virtudes da irrupção espontânea em oposição à ação organizada – como se o caráter de classe da ação de massas fosse um fator secundário frente à sua radicalidade formal. Se é verdade que a revolução proletária não pode ocorrer sem a sublevação mais ou menos “epifânica” da milhões de pessoas; por outro lado nenhuma explosão das massas poderá marchar muito além de reivindicações se não se preparar longamente, através das sucessivas fases da luta de classes, para a ação organizada e consciente da classe operária, para não apenas explodir em demandas, mas para realizar os grandes feitos organizativos que se exige de uma verdadeira revolução. [3]
A Esquerda Socialista e a greve geral
Com o principal desta contribuição delineado, restam alguns apontamentos finais.
Em primeiro lugar, vale destacar a falência da palavra de ordem pelas eleições gerais: não apenas essa palavra de ordem comprovou sua insuficiência na mobilização das massas, em contraste com as palavras de ordem defensivas e classistas; mas também se mostrou sua própria incapacidade de erguer-se como palavra de ordem de unidade e ofensiva, no curso da greve geral do dia 28 de abril. Se isso não determina, de pronto, seu abandono pela vanguarda, por outro lado demonstra o acerto das forças revolucionárias que não cederam à sua pressão, expressão perfeita da hegemonia pequeno-burguesa e suas ilusões democráticas sobre o movimento operário.
Por sua vez, a greve geral não é nem nunca foi uma panaceia para todos os males da esquerda revolucionária. É, apenas, “um dos meios de luta, necessário em certas condições”. A greve geral se torna necessária, no atual estágio da luta de classes, justamente pela avassaladora ofensiva com que a burguesia empurra contra a parede o proletário, que desesperadamente recorrer a todos os meios de resistência disponíveis. Torna-se necessário, além disso, do ponto de vista da esquerda revolucionária, na medida em que provoca uma agitação tamanha entre os trabalhadores que revolve as bases do sindicalismo de conciliação que hoje é dominante.
Por isso, a agitação por uma nova greve geral não pode aparecer como um fim em si, como se uma nova paralisação (pouco importa qual a sua duração) pudesse representar qualquer avanço, a menos que acompanhada de uma disputa acelerada pelas bases do movimento operário. Se, por um lado, boas notícias já se anunciam nesse rumo (como a vitória da esquerda socialista no Sindicato dos Petroleiros do Rio de Janeiro), por outro muito a que se fazer – em especial no que tange aos trabalhadores dos ônibus, em cujas bases a intervenção das forças revolucionárias foi até hoje evitada com base no banditismo maior ou menor do sindicalismo reacionário.
É apenas o sucesso nesta frente da luta que permitirá vencer as hesitações deste sindicalismo oficial, disposto a sentar à mesa de negociações com o governo e rifar, em nome da manutenção da estrutura sindical vigente, todas as demais medidas de reestruturação das relações de emprego. Inclusive vai neste sentido toda a tática deliberada após o dia 28: uma semana de “pressão” sobre os parlamentes promovida às escondidas das bases, em conversas de gabinete em Brasília, sem qualquer indicativo de nova greve. Caso essas semanas de “pressão sobre Brasília” não obtenham qualquer ganho, sequer aos burocratas, uma nova e maior greve pode ser esperada ainda para este semestre. Do contrário, a esquerda socialista dependerá precisamente desse enraizamento para poder fazer avançar a organização de uma nova paralisação da mesma envergadura.
De todo modo, é previsível que a mera ocorrência da greve do dia 28 estimule crescentemente o recurso às greves para cada luta parcial e econômica que se seguirá, nas categorias isoladamente consideradas.
Caberia, por fim, o balanço: diante do chamado à greve geral, como a classe trabalhadora respondeu? Houve hesitações gigantescas, isso é verdade. Mas houve, também, um apoio decidido e qualitativamente superior em muitas categorias historicamente menos influenciadas pela esquerda classista. Houve, também, grande apoio passivo, que agora deve ser crescentemente organizado e mobilizado.
O que se espera da vanguarda, portanto, é que não se quede catatônica; receosa de não repetir amanhã a grandiosidade de seus feitos do dia 28. É preciso empenho, energia e audácia. Só com uma ação resoluta, toda o ganho do movimento operário que resulta do dia 28 de abril, em termos de legitimação e direção “moral”, poderá ser levada adiante. Quanto mais forte for a ação da classe trabalhadora, mais simpatia atrairá de todos demais setores oprimidos da sociedade.
Sabemos que podemos mais pela boca de nossos próprios inimigos: ao anunciar que os protestos foram “abaixo do previsto”, Temer revelou que o monitoramento interno do governo (leia-se, o aparato de vigilância ligado à repressão) constatou que há “uma adesão em outros setores da sociedade”, para além do sindicalismo tradicional. Em outras palavras: há todo um colossal apoio estático das massas ao movimento, com cujas bandeiras e métodos concordam, mas ao qual não se integraram.
Nossa tarefa é clara: converter em força ativa toda a energia potencial da revolta que se alastra pela classe operária. Seguir unindo as lutas defensivas sob uma perspectiva classista, e, no interior dessas lutas, avançar numa agitação unificada por um programa de caráter anticapitalista, que aponte para a construção do Poder Popular e o socialismo.
*Militante do PCB-SP.
[1] Mesmo nos países onde a chamada flexibilização produtiva reverteu a tendência à concentração do proletariado nos locais imediatos de trabalho, ainda assim a tendência à concentração do proletariado nos centros urbanos se manteve e aprofundou. É nesse sentido que a paralisação da produção, nesses centros urbanos, depende vitalmente da paralisação geral dos transportes e vias.
[2] “Se somos atacados pelo inimigo, é bom, porque isto prova que traçamos uma linha de demarcação bem nítida, entre o inimigo e nós. E se ele nos ataca com violência, pintando-nos com as piores palavras e difamando tudo quanto fazemos, melhor, porque isto prova não só que estabelecemos uma linha de demarcação nítida entre o inimigo e nós, mas ainda que conquistamos êxitos em nosso trabalho.” Mao Zedong.
[3] “E não seria possível imaginar a própria revolução sob a forma de um ato único (como parecem fazer os Nadejdine): a revolução será uma sucessão rápida de explosões mais ou menos violentas, alternando-se algumas fases de calma momentânea mais ou menos profunda”. O que Lenin afirma em “Que fazer?” poderia, nesse aspecto, se aplicar a todas fases ascendentes da luta de classes.