100 dias de Dilma: a direita aprova

Dilma mantém o essencial da política de seu antecessor, com uma vantagem. Dilma é Lula sem o jogo de cena. Não precisa dizer que faz o que pode. Ela faz o que deve ser feito, segundo as receitas neoliberais.

O governo Dilma completou 100 dias em 10 de Abril passado. A grande imprensa fez seu balanço. E, como se sabe, os editoriais dos jornalões brasileiros são porta-vozes de vários sectores da direita nacional. Para “O Globo”, o saldo é positivo. A “Folha” diz que é “auspicioso”. O “Estadão” limitou-se a cobrar um “estilo”. Ou seja, a esperança venceu o medo… dos empresários.

Parece ter ficado para trás o clima de terror fanático que reinou durante as eleições presidenciais do ano passado. As demonstrações de boa vontade em relação à presidenta não foram poucas. Em programas de TV populares, em entrevistas cordiais, visitas de celebridades. E, claro, no reconhecimento de que o governo Dilma mantém o essencial da política de seu antecessor, com uma vantagem. Dilma é Lula sem o jogo de cena. Não precisa dizer que faz o que pode. Ela faz o que deve ser feito, segundo as receitas neoliberais.

É o que demonstrou ordenando um corte de R$ 50 bilhões no orçamento de 2011. As áreas atingidas? Gastos com pessoal foram reduzidos em R$ 3,5 milhões, incluindo congelamento dos salários dos servidores. Foram também cortados R$ 5 bilhões no Programa “Minha Casa Minha Vida”. O ministério da Reforma Agrária ficou sem R$ 929 milhões. Na área da Educação, corte de R$ 3,1 milhões. Na Saúde, R$ 578 milhões. R$ 1,5 bilhão, nos Desportos. Quase R$ 400 milhões no Meio Ambiente. R$ 2,3 bilhões dos Transportes.

Gastos sociais são sacrificados, mas Dilma mantém em dia o pagamento da enorme dívida pública. Um rombo e um roubo que consumiu 44% do orçamento federal no ano passado. Em 2010, foram reservados mais de R$ 78 bilhões para pagar os juros dessa dívida. É o chamado superávit primário, cujo pagamento é sagrado, mesmo que se destine a banqueiros e especuladores nacionais e estrangeiros.

O resultado já se fez sentir. O superávit primário do primeiro trimestre deste ano foi 105% maior em relação ao mesmo período do ano passado.

O balanço dos movimentos populares, dos trabalhadores e da esquerda em geral deveria ser outro. Nada positivo. A começar pela luta pelo reajuste do salário mínimo. O governo barrou um aumento maior, dando mais uma demonstração de “responsabilidade” ao empresariado. As centrais sindicais não gostaram. Mas as mágoas logo se dissiparam.

Na mesma época, os trabalhadores de obras do PAC entraram em greve. Os sindicalistas pelegos agiram prontamente. As centrais sindicais oficiais, incluindo a CUT, saíram em defesa dos patrões e das obras. Entre elas, Belo Monte, que recebeu uma licença ambiental ilegal por pressão do governo. Depois de muita negociação, a solução aceite pelos sindicalistas foi vergonhosa: 3 mil demissões.

A direcção do MST reclama do desprezo do governo quanto à reforma agrária. Não deveria. Não foram poucas as lideranças dos Sem-Terra que acusaram o governo Lula de fazer menos pela reforma agrária do que FHC. Dilma, cuja candidatura foi apoiada por muitas dessas lideranças, apenas continua Lula.

Operações urbanas como os “choques de ordem” multiplicam-se nas grandes cidades. Na verdade, são acções de expulsão das populações pobres dos centros urbanos em busca de revalorização para especulação imobiliária. Processo que deve se radicalizar durante a preparação para a Copa Mundial e Olimpíadas. Tudo isso contando com a cumplicidade activa do governo federal.

Muita gente defendia o voto em Dilma para manter a política externa de Lula. O novo governo condenou o Irão e seus ataques ao povo iraniano. Mas falta coerência. Nada fez contra a intervenção militar estrangeira na Líbia. Ao mesmo tempo, recebeu Obama com tapete vermelho e as maiores honrarias. O chefe da potência mais violenta do mundo teve uma recepção quase monárquica. Depois, foi à China mendigar acordos comerciais para as multinacionais brasileiras. Em nome disso, fechou os olhos para a falta de liberdades e a feroz repressão do Estado chinês a movimento populares e de trabalhadores.

É o lulismo em pleno funcionamento. Uma engenharia política que favorece os poderosos; pede calma aos explorados e alivia a fome dos miseráveis com migalhas. Daí, um início com grande apoio popular do governo Dilma. A herança de Lula lhe garantiu a melhor avaliação para um presidente dos últimos 12 anos. No início de Abril, registaram-se 56% das pessoas pesquisadas pelo Ibope considerando o governo Dilma óptimo ou bom.

O grande álibi utilizado pelos apoiadores de esquerda do governo Lula eram os ataques da grande media. Apesar de tudo o que o governo petista fez para manter intacto o monopólio dos meios de comunicação, estes não engoliam o ex-sindicalista.

Dilma tem um inimigo diferente. É a extrema-direita. Um sector que não perdoa seu passado de guerrilheira. Bom álibi para a esquerda que defende a presidenta. Mas, diferente dos gorilas fardados, Dilma não nega seu passado nem está presa a ele. Sua tarefa actual é a manutenção de uma ordem injusta e opressora.

Ao mesmo tempo, a verdadeira oposição popular ao lulismo continua a tropeçar em suas próprias dificuldades. O movimento sindical combativo não consegue se unificar. Houve divergências e debates intermináveis até para decidir os locais de manifestações do 1º de Maio. Os partidos de esquerda são incapazes de unir forças, não somente em eleições, mas nas lutas e frentes em que actuam lado a lado.

As principais lideranças dos movimentos sociais se deixaram vencer pelas políticas de cooptação de governos e instituições. Principalmente em relação à dependência financeira. O MST reclama dos efeitos desmobilizadores do Bolsa-Família, mas a maioria de suas lideranças alinha-se ao governo quase incondicionalmente. Além disso, o maior problema é o apoio decidido do governo petista ao agronegócio, que enfraquece a agricultura familiar a passos largos. Compromete o horizonte camponês que atrai e impulsiona a luta da maioria dos integrantes do movimento.

Outro aspecto importante é a institucionalização dos conflitos. Algo que já vinha se impondo antes dos governos petistas, mas que se aprofundou. Foi imposta aos movimentos sociais e sindical a lógica do “lobby”. A pressão popular passa a ser direccionada para gabinetes parlamentares, órgãos governamentais e instituições oficiais. Importantes decisões são tomadas em consultas públicas controladas pelo poder económico. Os espaços e instrumentos de luta se esvaziam, fragmentam e são domesticados. A militância torna-se cada vez mais profissionalizada a serviço de ONGs e na disputa por espaço para sua “clientela” em programas sociais.

Para começar a superar tais dificuldades é preciso romper com uma trajectória de crescente dependência da institucionalidade. Um caminho que vem sendo seguido há quase três décadas, marcado pela valorização exagerada da conquista de aparelhos sindicais e pela montagem de grandes estruturas burocratizadas em partidos e entidades de luta.

O problema é que esse tipo de superação não depende apenas da vontade militante. Ela precisa ser empurrada pelas contradições que somente as lutas e conflitos de classe podem fazer surgir. Uma situação que se apresenta principalmente em momentos de crise social. Momentos que deixam à mostra a exploração dos trabalhadores e da população como verdadeiro motor de um desenvolvimento económico desigual e injusto.

Não é possível profetizar quando tais momentos podem surgir. Mas há sinais de que o crescimento económico a partir do qual o lulismo se fortaleceu pode sofrer abalos em breve. A economia nacional conseguiu escapar às piores consequências da crise económica de 2008. Para isso, contou com um forte aumento no preço de produtos nos sectores do agronegócio, mineração e =petróleo. Sectores em que a produção brasileira se destaca.

É inegável o considerável crescimento no consumo interno através de uma pequena mas inédita elevação de renda entre os mais pobres. Em especial, através do Bolsa-Família e do microcrédito. É o que se convencionou chamar de crescimento da “classe C”. O fenómeno é ainda bastante recente e de difícil compreensão. Mas tudo indica que se trata muito mais de um acesso maior ao mercado consumidor do que a direitos básicos como saúde, educação, secularidade social, habitação e cultura.

No entanto, a dependência em relação à produção de sectores como agronegócio, mineração e petróleo é perigosa. São ramos do chamado sector primário, que criam poucos empregos e geram pouco valor. Uma tonelada de minério de ferro, por exemplo, vale menos que um par de ténis importado. Trocamos mercadorias do sector primário por produtos dos sectores secundário e terciário, mais dinâmicos, rentáveis e avançados tecnologicamente.

Por outro lado, a enorme dívida pública brasileira vem atraindo dólares ao país. Os especuladores trocam a moeda americana, que anda desvalorizada, por papéis do governo que pagam os maiores juros do planeta. Esse movimento inunda a economia brasileira de dólares e valoriza o real. As importações ficam baratas. Produtos estrangeiros, incluindo máquinas e equipamentos, invadem o mercado nacional. Derrubam a produção nacional e começam a frear a criação de empregos e ocupações. É o que os especialistas chamam de desindustrialização e reprimarização.

Além disso, o crescimento do mercado interno, que vem sustentando boa parte da actividade económica, pode encontrar dois obstáculos. Um deles é a capacidade de consumo das famílias, que pode estar chegando a seu limite. Outro é a inflação causada, principalmente, pelo aumento nos preços de alimentos em nível mundial. Este último problema talvez não fosse tão grave, não fosse a fobia que os neoliberais sentem em relação ao aumento de preços em larga escala. Um medo ligado ao terror de que isso leve ao aumento da temperatura da luta de classes, com trabalhadores exigindo constantes e elevados reajustes salariais.

Como a equipe económica do governo petista compartilha dessa fobia, começam a se suceder aumentos nas já elevadas taxas de juros praticada no país. Uma medida que desestimula a produção, dificulta a venda a crédito e, portanto, diminui as oportunidades de empregos. Enfim, o crescimento económico pode diminuir muito de ritmo, causando mais problemas de desemprego, com a consequente pressão por salários menores e maiores dificuldades económicas para a maioria da população.

Outro elemento complicador do cenário económico pode ser um novo abalo económico mundial. Uma nova rodada de problemas envolvendo a quebradeira de países e instituições financeiras. Fenómeno que já se pode sentir em alguns países da Europa. Desta vez, algo assim poderia causar uma fuga de recursos e dólares do país, em relação aos quais a economia vem desenvolvendo uma relação de dependência perigosa. Pode-se até temer a formação de bolhas financeiras que venham a colocar o País entre os atingidos por uma nova manifestação da crise que teve início em 2008.

As possibilidades de ocorrer um cenário como este não são poucas. Mas estão longe de configurar uma situação inevitável e previsível. De qualquer maneira, as crises no capitalismo são constantes. A esquerda combativa deve se preparar para saber como intervir quando tais condições ocorrerem. Elas proporcionam momentos “grávidos de possibilidades”, como diria Rosa Luxemburgo.

Só saberemos aproveitá-los se combinarmos a análise da realidade com a busca incessante de formas de organização da luta dos explorados e oprimidos. E esta passa actualmente por dois combates. O primeiro tem como alvo as ilusões geradas pelo governo Dilma e pelo lulismo em geral junto aos movimentos sociais.

Mas a melhor maneira de desmascarar tais ilusões é nos mostrarmos prontos para fazer o combate principal. Aquele que deve ser travado contra os ataques bastante reais e concretos da burguesia, nosso inimigo principal. Para isso é preciso combinar presença nas lutas, debate fraterno e firme com o conjunto da militância socialista e propostas concretas de unidade e acção.

Fonte: http://www.odiario.info/?p=2078

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