Marxismo-leninismo: identidade ou práxis?
Por André Brandão*
O potencial e as limitações históricas da inserção do marxismo-leninismo na juventude brasileira
Nos últimos tempos, vem ocorrendo uma maior difusão do marxismo-leninismo no seio da juventude brasileira. Este processo é determinado por múltiplos fatores, principalmente por um aspecto objetivo e dois subjetivos: o aprofundamento da crise econômica brasileira – reflexo da crise sistêmica da ordem do capital – que recrudesce a dinâmica da luta de classes e expõe o caráter burguês do nosso estado e de seus operadores políticos; o declínio da hegemonia das forças políticas conciliadoras, cujo projeto até então bem sucedido perpassava por uma gestão do capitalismo brasileiro apassivando os setores sociais subalternos; e a crescente ação política dos organismos de classe proletários, que vem pouco a pouco reconstruindo revolucionariamente as lutas populares no país.
Os comunistas sabem da importância deste novo elemento para a mudança de rumos da luta de classes no país. Aprendemos com o velho Marx que ‘’a arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas’’[i]. Contudo, para que esse atual movimento de inserção do marxismo-leninismo na juventude brasileira possa se converter de fato em força material, ele precisa superar as limitações condicionadas por nosso tempo histórico.
Vivemos num estágio de desenvolvimento específico da ordem burguesa: o capitalismo tardio, também conhecido como neoliberalismo ou acumulação flexível. Este estágio é marcado por circunstâncias sócio-históricas que modificam profundamente a vida humana: a mundialização do capitalismo, que atingiu praticamente todas as fronteiras; o desenvolvimento de tecnologias que mudam a nossa relação com o tempo e o espaço tempo (computadores, internet, celulares, satélites, aviões comerciais…); o avanço da mercantilização do conhecimento e de outros espaços da vida social; a financeirização da economia (que elege o crescimento do capital fictício como rota de fuga para a auto-expansão do capital); a reestruturação produtiva, que dividiu e precarizou a força de trabalho (vide o fenômeno da terceirização), etc.
Este novo momento da ordem do capital exige a formação de uma lógica cultural própria, que possa ser a ‘’expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias’’[ii]. A pós-modernidade[iii] seria a lógica cultural desenvolvida para exercer esta funcionalidade, como meio de integrar acriticamente os indivíduos sociais de hoje aos atuais imperativos mercantis e produtivos, promovendo uma forma de consciência que tende ao autocentrismo, ao relativismo, ao fragmentarismo, à inconstância, etc.
Nós, sujeitos forjados nesse tempo histórico, por mais que critiquemos a pós-modernidade, seus desastrosos impactos e as linhas teóricas decadentes que a legitimam, ainda apresentaremos sequelas deixadas pela nossa educação, assim como vez ou outra reproduzimos elementos das opressões estruturais que tanto combatemos, as quais só podem ser totalmente sepultadas com a derrubada das suas sustentações materiais.
Sobre a possibilidade de uma ‘identidade revolucionária’’
Reproduzindo a lógica cultural pós-moderna, muitas pessoas têm recorrido à teoria revolucionária do proletariado como resposta individual aos impactos da crise de identidade contemporânea. É neste sentido que diversas vezes o marxismo-leninismo tem aparecido erroneamente para a juventude: simplesmente como uma identidade, uma espécie de nova tribo social para se participar. Trata-se de uma absorção mercantil, justamente daquela construção teórica que tem como objetivo a superação do modo de produção capitalista.
Tem se tornado comum a adoção de uma identidade ‘’soviética’’, ou ‘’revolucionária’’, como forma de demonstrar alguma radicalidade política. Vemos mais e mais pessoas cultuando acriticamente personalidades históricas e símbolos da luta comunista como se fossem figuras religiosas dignas de devoção. No fundo, não há erro em fazer alusão a nada disso, em certa medida – inclusive, é correto um comunista agitar símbolos históricos da luta proletária, reconhecer a importância e as contribuições de grandes figuras comunistas, ou reivindicar e defender o legado das experiências socialistas, que foram tão difamados pela historiografia e a mídia burguesa.
Condenável é o momento em que essas expressões se exacerbam e o modo como essas ideias e símbolos são agitados adquirem um caráter fetichista, afastando diversas pessoas da luta comunista devido aos seus comportamentos autocentrados. Não é coincidência que normalmente são estes indivíduos que atacam com tanta agressividade os “pobres de direita’’, como se a consciência de classe caísse do céu e não houvesse ideologia dominante formando a todos nós.
Muitos destes indivíduos tratam de se filiar a alguma corrente da história do movimento proletário, como se estivessem entrando em alguma igreja neopentecostal, ou a alguma nova tribo urbana. Inserem-se em debates como o de Stalin x Trotsky, ou Althusser x Lukács, ou mesmo Hoxha x Mao Tsé-Tung, não porque estão realmente interessados nas consequências práticas de cada lado dessas dicotomias, mas sim porque querem assumir a identidade de alguma dessas posições, fazer parte de um nicho, se sentir pertencente. Com isso, por vezes vulgarizam debates tão necessários, negligenciam o estudo concreto das posições antagônicas – ou até mesmo das próprias posições! – e hostilizam qualquer pessoa que simpatiza com a outra posição, ou mesmo alguém que ainda não tem uma posição formada.
Há também o crescimento de certa identidade academicista, que se dá quando a aproximação do marxismo-leninismo acontece não pela intenção real de se inserir no movimento revolucionário do proletariado, mas sim para desenvolver uma espécie de erudição individual. Tal processo de erudição é almejado por este tipo de indivíduo para que ele possa ser visto como uma referência intelectual, alguém que seus pares possam destacar como uma figura ‘’iluminada’’, ‘’genial’’, quase um ‘’messias teórico’’. Com isto, a pessoa poderia obter prestígio social, acadêmico, ou ambos.
Sobre isto, o camarada Ho Chi Minh uma vez escreveu:
Estudar o marxismo-leninismo é procurar aprender a maneira de resolver cada problema da existência, a maneira de comportar-se em todas as situações, em relação aos outros e a si mesmo; é assimilar os princípios gerais do marxismo-leninismo, para aplicá-los criativamente às realidades de nosso país. Estudamos para agir. Nossos estudos teóricos devem ir de par com as atividades práticas. Certos camaradas aprendem de cor livros inteiros que tratam de marxismo-leninismo. Pretendem saber esta doutrina melhor que ninguém. Mas, na prova da prática, ou mostram-se incapazes de criar, ou ficam embaraçados. Suas palavras e seus atos se contradizem. Estudam livros de marxismo-leninismo, mas não conseguem adquirir o espírito marxista-leninista. Estudam para exibir seus conhecimentos e não para aplicá-los aos problemas da revolução. Isso também é individualismo[iv].
Ter este tipo de posição frente ao fenômeno do academicismo não significa incorrer em um desvio praticista. O praticista, que também pode ser compreendido dentro de uma espécie de identidade, é aquele que está convencido de que o fator fundamental da luta política é a prática pela prática, independente da orientação teórica que a direcionará. Neste caso, o critério de valorização de uma organização não seria o modo como ela constrói a superação da exploração do ser humano pelo ser humano, mas sim o total meramente quantitativo das suas ações políticas, independente do seu viés.
Sabemos para onde vai esse tipo de perspectiva: são justamente os decadentes grupos defensores da conciliação de classes aqueles que mais assumem esse tipo de visão, como forma de sustentar alguma relevância política para si. Hoje, com o resultado desse tipo de atuação, perpetuando as opressões, explorações e dominações do modo de produção capitalista, já temos consciência de que não é este o caminho da libertação do proletariado e dos setores subalternos do tecido social. Como diria Lenin, “sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário’’[v].
Nunca podemos perder de vista o aspecto pedagógico da ação marxista-leninista. Um comunista não pode ser um impeditivo para a adesão das massas ao movimento que trará a sua emancipação. Devemos sempre estabelecer as condições possíveis para que mais e mais camaradas vejam a importância de se organizar para superar o mundo burguês. Muitas pessoas se afastam do comunismo por conta do modo distorcido como o movimento é apresentado: seja por não se identificarem com a imagem fetichista difundida por alguns, ou por serem reprimidas pelo discurso academicista, ou por não terem condições – por trabalharem, por estudarem, por serem mães , etc – de seguir os imperativos do praticismo.
Precisamos nos afastar desta postura fetichista e autocentrada que trata o marxismo-leninista como mera identidade. Os comunistas não podem desenvolver uma identidade específica ideal. O movimento comunista é o movimento de emancipação da classe trabalhadora. Tendo isto em mente, deveríamos ter noção de que não pode haver uma identidade marxista-leninista cristalizada, justamente porque não existe uma ‘‘identidade proletária’’. A classe trabalhadora não tem uma forma única de se vestir, de se comportar, de fazer arte, etc. Aquelas perspectivas opostas a essa só tem um destino a seguir: o caminho da exotificação da classe operária e das suas lutas.
Só podemos falar indiretamente de uma identidade revolucionária. De fato, os comunistas devem se mostrar organizados, disciplinados, solidários, agitar e propagandear as bandeiras do projeto histórico da classe operária e se portar como combatentes das repercussões opressivas da sociedade de classes. Mas este tipo de comportamento não aparece por conta de um ideal identitário revolucionário, mas sim como decorrência dos princípios estruturantes do marxismo-leninismo: aqueles que fundamentam a sua práxis.
O marxismo-leninismo como práxis
Para realmente aderir à luta comunista, não basta ter uma postura individual nova, seja ela identitária ou de consciência. A transformação radical da realidade não virá pelo pensamento ou por atos particulares. Nossas ações individuais fechadas em si mesmas são limitadas não só por serem condicionadas pelas determinações sociais objetivas que a sociedade que nos forma impõe, mas também pela própria insuficiência que a nossa ação isolada tem para afetar o complexo social que nós queremos superar.
A libertação, na nossa perspectiva, é um ato histórico, materialmente efetivo, que só pode ser desenvolvido na práxis, ou seja, naquele tipo de ação que é conscientemente transformadora. Há aqui uma dialética interessante: como vimos no início, a teoria marxista-leninista só pode se converter em força material se ela se apodera da classe trabalhadora, se ela se torna arma teórica do sujeito revolucionário do nosso tempo histórico. Por outro lado, a ação política das massas só se torna revolucionária se ela for teoricamente orientada pela ciência revolucionária do proletariado.
Para resolver esta questão, um fator torna-se fundamental: o partido comunista. É justamente o partido comunista que irá ser o operador político dessa dialética. Ele é exatamente a classe para si, a união dos setores mais avançados e conscientes da classe, formando um sujeito coletivo. Este sujeito coletivo deve assumir o papel de vanguarda revolucionária do proletariado, necessária para a agitação, organização, educação e a ação coletiva da classe trabalhadora, para que ela possa extrair do seu ser a sua vocação histórica.
Nós, comunistas, como componentes desse sujeito coletivo, só podemos nos inserir na luta pela revolução socialista, pelo ‘’movimento real que supera o atual estado das coisas’’[vi], caso nós de fato desenvolvamos uma prática revolucionária. E para isso, não dá para tratar o marxismo-leninismo como mero fetiche mercantil, a ser usado como identidade. Só aderimos à luta comunista quando assumimos de maneira real os princípios do marxismo-leninismo na nossa prática militante. Só agindo com disciplina, sem medo da crítica e da auto-crítica, estudando profundamente a realidade ao nosso redor a luz da nossa teoria, reconhecendo a necessidade do centralismo democrático, elaborando uma linha política acertada, se vinculando profundamente com as massas, e, por fim, mas não menos importante, servindo ao povo e ao seu projeto histórico com toda a firmeza e a fidelidade necessária para tal atividade, é que nós poderemos de fato lutar pela superação do capitalismo.[vii]
Estudante de filosofia da UFBA e militante da UJC-Brasil
i. Passagem presente na introdução da Crítica da filosofia do direito de Hegel. Esta introdução é muito importante para compreender o aprofundamento do materialismo em Marx e o início da sua descoberta de que o proletariado é sujeito revolucionário de seu tempo histórico.
ii. Citação d’A ideologia alemã,de Marx e Engels. O capítulo III do tomo sobre Feuerbach trabalha a dinâmica da ideologia dominante sobre nós.
iii. Sobre o fenômeno da pós-modernidade, a fonte principal aqui é o livro As origens da pós-modernidade, de Perry Anderson, rigoroso compêndio histórico de elementos desse novo momento do capitalismo.
iv. Trecho do texto Da moralidade revolucionária, de Ho Chi Minh, importantíssima fonte para o desenvolvimento de uma práxis marxista-leninista.
v. O livro Que fazer?, de Lenin, em que está presente esta frase, é outra fonte teórica fundamental para o marxismo-leninismo.
vi. Mais uma vez citando A ideologia alemã
vii. A influência do texto Da moralidade revolucionária é evidente aqui.