EUA: as vítimas do culto às armas

EUA: as vítimas do culto às armasIHU-Unisinos

O massacre do dia dos Namorados mais famoso na história norte-americana é o de Chicago, no ano de 1929 (sete mortos), e provavelmente não será substituído pelo da última quarta-feira em uma escola no sul da Flórida (dezessete mortos). Quem vive nos EUA já passou a reagir ao cotidiano tributo de sangue exigido pelo culto às armas apenas quando atinge as escolas. Quem entende bem isso é quem tem crianças em idade escolar nos Estados Unidos.

O comentário é de de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor de Teologia e Estudos Religiosos na Villanova University, Estados Unidos, autor de Catholicism and Citizenship. Political Cultures of the Church in the Twenty-First Century (Liturgical Press, 2017), publicado por The Huffington Post, 15-02-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.

Quando você recebe um sms da escola espera que seja porque ficou inundada a cantina ou porque o professor está doente ou outra banalidade desse tipo, e não pelo que cada pai teme acima de tudo. Do lado de fora da escola primária de minha filha nesta manhã, na Filadélfia, havia um policial com equipamento de proteção, em uma fútil exibição de segurança à mão armada.

A primeira consideração é de ordem política, ou seja, a intocabilidade do lobby das armas, a National Rifle Association (NRA), que, graças aos generosos financiamentos aos membros do Congresso (especialmente os republicanos, mas não só), faz com que seja impossível limitar a proliferação de armas entre os cidadãos. O que foi feito nas últimas décadas na Inglaterra e na Austrália é impossível nos Estados Unidos devido à dependência tóxica do sistema político norte-americano dos financiamentos privados dos grandes lobbies. Mas essa é uma questão mais simples quando comparada com a cultura e a religião das armas nos Estados Unidos.

Em um ensaio publicado há alguns anos no New York Review of Books por Marilynne Robinson (agora também conhecida na Itália por seus romances ambientados no meio-oeste estadunidense), a romancista e ensaísta evidenciava a ligação entre o culto às armas nos Estados Unidos e a política do medo. Cristã convicta e de credo calvinista, Robinson observava como o lobby das armas tivesse tido sucesso em seu esforço para tornar socialmente aceitável a exibição de armas nos Estados Unidos.

A política do medo faz com que uma pessoa nunca se sinta suficientemente segura. Em um país cristão como os EUA, o culto às armas tem contribuído para a descristianização, injetando um sentimento de insegurança de todos contra todos, insegurança para a qual a arma de fogo é o novo ídolo para o qual todos aqueles em posição de poder ( político, econômico, religioso) devem se curvar.

Em algumas áreas e cidades dos EUA hoje se veem pessoas armadas com pistolas e rifles de guerra nas ruas, em lugares públicos, até em manifestações políticas. É tentador traçar um paralelo com o Far West, ou seja, com o nosso imaginário Far West. Mas os massacres nas escolas dos últimos anos mostram um país diferente, onde a mentalidade do justiceiro, do mocinho que neutraliza o cara mau, foi substituída por uma mentalidade militarizada, em que o uso e abuso de armas passou a fazer parte da vida diária dos norte-americanos, como a previsão do tempo e os números da loteria.

A militarização da vida nos EUA pode ser vista na política (os militares no governo do país, na função substituta e alternativa ao vazio que é a administração Trump), na polícia (as táticas e os armamentos da polícia nas cidades tornaram-se táticas e armamentos de guerra), e também nas escolas e nas igrejas.

As respostas para os massacres nas escolas e nas igrejas nos últimos anos se concretizaram em medidas de prevenção dos mais variados tipos: além de exercícios para o bloqueio no caso de um tiroteio em andamento, foram sugeridas propostas para a formação de professores, estudantes e sacerdotes ou pastores não só sobre o que fazer em caso de emergência de massacre, mas também para o treinamento no uso de armas para professores e ministros do culto. Em alguns estados, os alunos universitários podem entrar na sala de aula armados, e naquelas universidades existem cursos para professores sobre como não provocar reações violentas por parte dos estudantes.

A militarização da vida cotidiana nos EUA tem efeitos particularmente perversos nas escolas e sobre a religião. Nada mudou desde o massacre de Sandy Hook, que em dezembro de 2012 matou vinte crianças de uma escola primária e seis professores. Em um sistema escolar como o estadunidense em que a educação dos alunos é super-individualizada, personalizada, as vítimas dos massacres nas escolas não são mais pessoas – meninas e meninos, garotos e garotas – mas já são consideradas uma estatística, exatamente como na guerra.

O paradoxo do favorecimento das armas em detrimento do resto é particularmente evidente na religião e principalmente no cristianismo dos EUA. No cristianismo conservador hoje assistimos a um renascimento antiliberal sob a forma de uma demonstração de desprezo pela democracia pluralista e liberal.

O interessante é que aos círculos cristãos e católicos norte-americanos que recentemente reapresentaram (não sem razão) a ideia de uma limitação ao acesso à pornografia online é impossível fazer aceitar a ideia de que seja possível e oportuno limitar o acesso às armas por cidadãos: ao instinto para a regulação da pornografia corresponde ainda um instinto libertário quanto à disponibilidade para as armas de fogo.

Na cultura tradicionalista das igrejas norte-americanas, incluindo o tradicionalismo católico, a ideia é que a regulamentação das armas seja uma causa liberal equivalente ao amor livre, ao divórcio e ao aborto, a ser rejeitada em nome da sadia tradição religiosa cristã-americana.

A realidade é que as autoridades morais nos EUA, as instituições políticas e religiosas e a Igreja Católica “made in USA” estão comprometidas, silenciosas e condescendentes em relação à cultura da arma e estão conformadas com o tributo de sangue que o culto às armas exige diariamente. É a parte do fenômeno mais geral da crise norte-americana: Donald Trump é apenas o personagem mais grotesco, a síntese de todas as regressões e hipocrisias da América contemporânea.

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