Uma chance para corrigir os erros
Os eventos deste ano no norte da África e no Oriente Médio tiveram imenso impacto sobre a esquerda mundial. Em todas as correntes do pensamento crítico multiplicaram-se variadas interpretações acerca da chamada “primavera árabe”. Saudada na Tunísia, Egito, Iêmen, Arábia Saudita e Barein, tornou-se motivo de controvérsia quando alcançou países como Líbia, Síria e Argélia, de passado conhecidamente anti-imperialista e onde os processos adotaram uma dinâmica particularmente complexa, seja pela adoção de medidas repressivas por parte dos governos locais, seja pelas contradições destes países perante os interesses de EUA, União Européia e Israel.
Diante dos acontecimentos que varreram aquela parte do mundo, a esquerda dividiu-se. De um lado, agruparam-se aquelas correntes que defendem a ideia de que as revoltas populares, que no Egito e na Tunísia foram impulsionadas por poderosos movimentos de massa, logrando derrubar dois dos mais importantes aliados do imperialismo na região, seriam parte de uma mesma onda revolucionária cujos desdobramentos envolveriam a Líbia, Síria e outros países do Oriente Médio e África. Em outras palavras, a “primavera árabe” seria uma só, e se alimentaria de um sincero desejo comum de liberdade, democracia e justiça social, alheio aos interesses das potências estrangeiras.
De outro lado, expressou-se uma posição mais cautelosa, que não via nas revoltas populares um processo que se encerrava pela simples derrubada de governos e destacava a necessidade de solidariedade aos setores mais avançados do movimento de massas contra a transição tutelada pelas elites através do exército, ao mesmo tempo em que distinguia claramente os levantes populares que se alastraram pela Tunísia, Egito e outros países, da guerra civil que teve lugar na Líbia a partir da intervenção estrangeira, que em última instância, garantiu aos “rebeldes” de Benghazi o poder de fogo necessário para fazer frente ao regime de Muammar Kadaffi.
Seguramente, entre essas correntes encontraremos diferentes matizes, que vão desde a simpatia velada ao ditador líbio, supostamente justificada por seu passado terceiro-mundista e seu apoio aos movimentos de libertação, principalmente na América Latina, até o apoio aberto à intervenção da Otan, que vitimou centenas de civis em nome da… proteção de civis! Os mesmos que outorgaram todo o seu apoio aos “rebeldes” que ora negociam com as potências ocidentais a entrega dos recursos naturais da Líbia – notadamente o petróleo e a água – e que continuam acreditando na existência de um suposto – e até agora desconhecido – “setor anti-imperialista” no interior do Conselho Nacional de Transição, expressam outra vez sua simpatia pela possibilidade de uma ação militar estrangeira, desta vez na Síria.
A recente tentativa de aprovação de sanções contra o país no Conselho de Segurança da ONU, vetada por Rússia e China, buscava pavimentar o caminho de uma nova intervenção da Otan. Assim como ocorreu na Líbia, as potências imperialistas tentam explorar a seu favor as profundas contradições que enfrentam os setores populares dentro e fora da Síria diante de um regime marcado pela corrupção e pelo autoritarismo político. Para isso, contam com poderosos meios de comunicação – CNN, BBC, Al Jazeera, Reuters, AFP, dentre outros – que trabalham para confundir a opinião pública internacional, omitindo tanto a violência promovida por parte da oposição, quanto as iniciativas tomadas no sentido de viabilizar uma solução política interna à crise que vive o país.
Portanto, a estratégia do imperialismo na Síria é a mesma utilizada meses atrás na Líbia: estimular a dissidência interna, controlar a oposição e utilizar o justo descontentamento das massas para garantir a queda do regime e levar ao poder seus aliados. Assim, mais uma vez é necessário que aqueles que defendem a democracia e a autodeterminação dos povos manifestem-se contra a manipulação imperialista. Para isso, aqueles que emprestaram seu apoio à intervenção da Otan e aos “rebeldes” associados ao imperialismo, devem adotar agora outra posição.
Antes de tudo, pelas gritantes diferenças que existem entre Líbia e Síria – ainda que isto não sirva como justificativa para apoiar agressão imperialista em nenhum dos casos. Essas diferenças se manifestam por condições muito particulares, que vão desde a existência de uma oposição progressista na Síria – que rechaça fortemente a intervenção estrangeira e reconhece o papel independente da política externa do governo sírio – até a disposição do regime de Bashar al Assad de implementar reformas econômicas e sociais que permitam uma transição política negociada.
O documento divulgado recentemente pelo oposicionista Partido Comunista Unificado da Síria deixa claras as diferenças daquele país em relação à Líbia. Diferente da oposição a Kadaffi, composta por ex-integrantes do regime e por diferentes facções tribais, as manifestações de protesto que tiveram início em março na Síria contam com setores verdadeiramente comprometidos com reformas sociais e econômicas democráticas. Além disso, o governo já apresentou sua disposição para a reforma ou elaboração de uma nova constituição e a criação de leis a respeito da democratização da comunicação e da administração pública. Como afirma o documento da oposição comunista, na Síria “o governo adotou diversas reformas sociais e democráticas que incluem a anulação das leis e tribunais de exceção e respeito às manifestações pacíficas legais”. No mesmo sentido, uma nova lei eleitoral e outra permitindo o estabelecimento de partidos políticos também foram adotadas.
Evidentemente, não se trata de defender o governo de Bashar al Assad, cujo partido, o Baath, está no poder há mais de quarenta anos. Apesar de seu compromisso com a causa palestina, sua relativa independência em relação aos interesses imperialistas na região, seu caráter profundamente laico e seu apoio ao Hezbollah, o regime sírio padece de problemas que não poderão ser superados sem uma profunda ruptura com o atual modelo político e econômico. A implementação dos planos de ajuste econômico, a corrupção e o autoritarismo político são incompatíveis com a ideia de uma Síria soberana e independente. Mas não serão o imperialismo, as facções fundamentalistas e as elites financiadas pelas potências ocidentais que viabilizarão as reformas reivindicadas pelos setores populares. Ao contrário, sob a batuta das forças reacionárias o futuro reserva violência, instabilidade e total ausência de soberania.
Aqui reside a diferença fundamental entre Líbia e Síria, para a qual devem estar atentos os que viram na agressão imperialista da Otan a única alternativa para a queda de Kadaffi: na Síria a oposição é composta por um amplo leque de partidos, onde existem grupos conservadores financiados e armados desde o exterior, mas também, setores claramente nacionalistas e democráticos, como o próprio Partido Comunista Unificado ou o Partido Muçulmano, que rechaçam a agressão imperialista e lutam para garantir melhores condições para a luta política de massas e uma transição política pacífica. A esses, devemos prestar toda a nossa solidariedade, denunciando os bandos armados e financiados pelas potências ocidentais, bem como as pretensões imperialistas de intervenção militar. Eis uma excelente oportunidade para corrigir os erros cometidos em relação à Líbia.
*Juliano Medeiros é membro da Direção Nacional do PSOL, da Fundação Lauro Campos e editor do site internacionalista Unamérica.