A disputa da memória: 1964 foi o golpe da ditadura
Como historiador, tenho duas certezas. Uma é que as formas coletivas de lembrar e falar do passado são objeto permanente de disputas políticas – por isso, o revisionismo e o negacionismo são sempre um risco. A outra é que é possível construir conhecimento sobre o passado, a partir de fontes, método e crítica rigorosos – de modo que as “narrativas” sobre o que aconteceu em outros tempos não são todas equivalentes entre si.
Assim, penso que que para além de construir conhecimento, precisamos encontrar modos de fazer com que esse conhecimento sirva ao debate público e à disputa política pela memória. Pensando nisso, uma das minhas DEScomemorações do golpe de 1964 é compartilhar parte dos documentos que recolhi em arquivos públicos ao longo dos últimos anos pesquisando o tema.
São cinco pastas com dezenas de arquivos cada, conformando milhares de páginas a serem lidas e pesquisadas. As três primeiras pra mim são especialmente importantes, porque permitem questionar frontalmente o mito da “ditabranda”. A ditadura não deixou 434 vítimas. Esse é o número de mortos e desaparecidos políticos oficialmente reconhecidos pelo Estado. Mas há milhares de atingidos que não são reconhecidos pelo Estado ou pelas memórias e histórias mais correntes sobre o período. Moradores de favelas e periferias, a população negra, povos indígenas, pessoas LGBT, mulheres, trabalhadores do campo, enfim, aqueles que são o alvo preferencial da violência do Estado antes, durante e depois do regime iniciado em 1964.
*Pasta 1: Ditadura e pessoas LGBT*. A ditadura não tinha apenas seus inimigos políticos – tinha também seus inimigos morais. Quem fugia do padrão heteronormativo era perseguido, censurado e sofria diversas formas de violência. Pesquisas como as de James N Green e Renan Quinalha tem demonstrado isso. Link: http://bit.ly/ditaduralgbt
*Pasta 2: Ditadura e favelas*. Foram centenas de milhares de moradores de favelas no Rio de Janeiro e em outras cidades do Brasil removidos de suas casas, em nome de uma política de limpeza racial e social das áreas que interessavam ao capital imobiliário. Lideranças faveladas foram presas, torturadas e desaparecidas por resistirem às remoções. Link: http://bit.ly/ditadurafavelas
*Pasta 3: Ditadura e movimentos negros*. Não só a organização política, mas também as manifestações culturais negras foram duramente perseguidas na ditadura. A militarização do Estado e a elevação do mito da democracia racial à ideologia oficial fizeram com que o histórico racismo institucional se aprofundasse, deixando inúmeras vítimas. Link: http://bit.ly/ditaduraracismo
*Pasta 4: Atas de reuniões da Comunidade de Informações*. A Comunidade de Informações era o encontro dos comandantes das forças que se voltavam para a repressão política e para o controle social da população. Essas atas permitem ver como a prática de violência e arbitrariedade era discutida às claras pelos agentes da ditadura, afastando a ideia de as violações ocorriam nos “porões”. Link: http://bit.ly/ditadurainfo
*Pasta 5: Relatórios do CISA no momento da transição*. São Relatórios Periódicos de Informação da Aeronáutica acompanhando vários momentos importantes das Diretas Já até a Constituinte. Fica claro que a abertura política não significava uma mudança nas perspectivas das Forças Armadas. Link: http://bit.ly/relatorioscisa.
Lucas Pedretti é doutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ). Mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio. Graduado em História pela PUC-Rio em 2015. Foi estagiário da Comissão Estadual da Verdade do Rio (CEV-Rio), sendo efetivado como assessor em julho de 2015. Foi assessor da Coordenadoria Estadual por Memória e Verdade de janeiro de 2016 a agosto de 2017. Colaborou com o projeto de pesquisa “Políticas Públicas de Memória para o Estado do Rio de Janeiro: pesquisas e ferramentas para a não-repetição”, do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio.