OTAN: sete décadas de mentiras, guerra e sangue
Para assinalar o significado do 70º aniversário da OTAN talvez fosse suficiente passar os olhos pela guerra que há 18 anos destroça o Afeganistão, ou pelo caos em que a Líbia continua mergulhada ou pelas violações do direito internacional patrocinadas pela organização nos Bálcãs, designadamente o aterrador desmembramento da Iugoslávia.
Talvez fosse suficiente… Mas estaríamos longe de fazer justiça à amplitude e longevidade de uma ação cada vez mais global e próxima de comportamentos gangsteristas como a que caracteriza a aliança. Sendo que a enxurrada de considerações épicas em torno dos mitos que a sustentam é de tal modo ameaçadora nestes dias que todas as oportunidades serão poucas para aprofundar o contraditório.
Não surpreende que a OTAN seja o que é. O que poderá causar alguma perplexidade, sobretudo entre quem anda um pouco mais a par da realidade internacional e quem vai além da informação mainstream, é a desfaçatez com que dirigentes altamente posicionados em nações e no mundo tentam interligar os seus belos discursos sobre a aliança com as práticas sangrentas desta. Ou acreditam nas suas próprias mentiras ou confiam demasiado na propaganda e na consequente alienação do cidadão comum.
A OTAN nasceu no meio de mentiras e de mitos propagandistas tão em vigor hoje como há 70 anos, apesar de serem facilmente desmontáveis. Mas os servidores da organização têm fé no efeito de repetição e num universo midiático reverente.
A OTAN não nasceu para responder a qualquer ação contrária, uma vez que o Tratado de Varsóvia só foi fundado quatro anos depois. E também não veio para defender a democracia, porque fez questão de integrar, à nascença, uma ditadura fascista – a portuguesa – adotando outras com o correr do tempo, como foi o caso da grega e da turca.
A «aliança defensiva»
Porém, o mito fundador que mais foi refinando com o tempo e a prática é o da «aliança defensiva», uma espécie de culto de Calimero a uma escala bastante viril. A OTAN nunca ataca; defende-se sempre de um qualquer inimigo, que trata de inventar quando não existe. Quando instala armamentos, cada vez mais exterminadores, é para defender-se; quando avança os seus meios militares pela Europa afora até às fronteiras russas, ou em África, ou agora na América Latina é em legítima defesa.
A melhor defesa é o ataque, argumenta-se em termos de tática futebolística. A OTAN adotou-a ou vice-versa, é uma dúvida semelhante à do ovo e da galinha. O que interessa é saber-se que a OTAN nunca ataca, defende-se.
Assim foi durante a Guerra Fria, por exemplo recorrendo a organizações terroristas clandestinas, como a Gládio, espalhando o sangue, o horror e o medo através de atentados sucessivos em Itália para impedir o acesso dos comunistas à esfera do poder, mesmo quando o povo assim o desejou em eleições legítimas e livres.
Ou não hesitando em conspirar para promover golpes de Estado e mudanças de regime, dentro e fora da guerra fria, como aconteceu em Portugal, na Grécia, na Turquia e mais recentemente na Ucrânia – não interessando, também neste caso, que o resultado seja um regime nazifascista. Sempre em nome da democracia e do mercado, a entidade que mexe as marionetes democráticas e sabe o que é melhor para os cidadãos, mesmo que estes desejem o contrário.
A OTAN e o respeito pela própria palavra
A OTAN tem uma relação complicada com a própria palavra. É o que acontece a quem vive da propaganda e não tem a coragem de assumir perante os povos as reais motivações da sua missão.
A OTAN esboça a sua realidade virtual nos mapas e nas mensagens que transmite aos cidadãos; e depois procede em conformidade mas de uma maneira real, agressiva, muitas vezes sanguinária, espezinhando os direitos humanos.
A mentira que esteve na gênese da organização – a necessidade de responder a uma entidade de sinal contrário que viria a nascer apenas quatro anos depois – vigorou até ao colapso da União Soviética e do Tratado de Varsóvia, no início da década de noventa do ano passado.
Agora é hora de a OTAN se dissolver, deixaram de existir razões para continuar, argumentaram então os ingênuos e os que ainda acreditam na boa-fé dos discursos político-militares e das instâncias que os produzem.
Não é bem assim… respondeu a aliança atlântica. Reparem nos inimigos que ameaçam o «nosso civilizado modo de vida»: o Irã, Saddam Hussein, Khaddafi, a Coreia do Norte, Cuba, Assad, Chávez, al-Qaida, Bin Laden, os Talibã, eixos do mal cruzando-se, entrecruzando-se, exigindo a presença vigilante, dissuasora, sempre defensiva da OTAN, ainda que alguns tenham sido amigos ou mesmo criados para bem do mercado e preservação da democracia.
Portanto, nesta guerra «entre a civilização e a barbárie», a OTAN não pode dissolver-se; mas podem estar certos de que não vai crescer uma polegada, em território e número de membros. Quem assim falou foi James Baker, secretário de Estado norte-americano de George Bush pai.
E se bem o disse melhor o fez; ele, os sucessores, o chefe e herdeiros, no fundo toda a fina flor Atlântica. Num ápice a OTAN estava em «tempestades no deserto» invadindo o Iraque, destruindo a Iugoslávia numa das mais selvagens guerras modernas, invadindo o Afeganistão dando o pontapé de saída na «guerra contra o terrorismo», no âmbito da qual foi dizimar a Líbia em aliança com os terroristas islâmicos que dizia estar a combater.
E foi assim que o «nem uma polegada» se transformou em muitos mais bilhões de polegadas; que a “guerra contra o terrorismo” descambou no recurso a informais braços terroristas como o Estado Islâmico e a al-Qaida, por exemplo na participação clandestina do atlantismo na agressão à Síria e, mais recentemente, na interminável invasão do Afeganistão – onde o inimigo a derrotar – os Talibã – já controla dois terços do país.
E onde se ouviu James Baker dizer nem mais um membro deve ler-se duplicação da família dos aliados, porque em meia dúzia de anos a OTAN engoliu a maior parte dos países do antigo Tratado de Varsóvia mais os Estados nascidos da ex-Iugoslávia, sem esquecer os que lhe eram adjacentes nos Bálcãs, como a Albânia.
A família defensiva já vai em 30 membros e não fica por aqui, porque ao Atlântico Norte juntam-se agora o Mediterrâneo, os mares Adriático, Báltico e Negro e também o Atlântico Sul. Graças a imaginativas normas de integração temos a caminho da OTAN não só o narco-Estado terrorista da Colômbia mas também o Brasil, uma vez reconvertido ao fascismo. Porque a OTAN sente urgência em defender-se da sempre ameaçadora Cuba e, sobretudo, da temível Venezuela de Maduro.
Pelo que abundam razões para acreditarmos piamente no que a OTAN e os seus porta-vozes dizem e prometem. Claro como água.
O mito da defesa solidária
Outro dos mitos fundadores e base de propaganda da OTAN é o da defesa solidária. Ou seja, qualquer Estado membro pode contar com os restantes no caso de ser agredido por um Estado terceiro ou organização inimiga. Todos acorrerão a defendê-lo…
Desde que…
O Estado em questão, como qualquer outro dos membros, tenha abdicado previamente de parte da sua independência; os seus governos se tenham submetido à autoridade econômico-militar do complexo militar, industrial e tecnológico que governa os Estados Unidos da América – e a OTAN, por inerência; e estejam dispostos a que o seu território seja utilizado para que a OTAN, isto é, os Estados Unidos da América, se defendam atacando.
Em boa verdade, os Estados membros da OTAN são protetorados da estrutura imperial norte-americana, que tem a aliança como seu braço armado: são obrigados a abdicar de uma política de defesa independente, a colocar vultosos fundos orçamentais à disposição do Ministério da Defesa dos Estados Unidos, a envolver-se em guerras por razões que lhes são alheias, ou mesmo contrárias, a manter relações hostis com Estados porque assim o exigem os interesses norte-americanos e não os interesses nacionais.
Numerosos estudos demonstram que os Estados Unidos da América têm entre 800 a mil bases militares em territórios ocupados no estrangeiro. Nessas áreas, em bom rigor, os Estados hospedeiros abdicam da sua soberania, cedem-na a Washington.
Ora estes estudos pecam por defeito, porque não consideram muitas das instalações militares dos Estados membros da OTAN.
Estas instalações, em última análise, estão a serviço dos Estados Unidos, mesmo que tecnicamente não sejam consideradas bases norte-americanas. As suas atividades não são independentes ou autônomas da estratégia militar da OTAN, logo dos Estados Unidos. Os Estados membros da aliança não possuem instalações militares verdadeiramente próprias porque não têm uma política de defesa por eles definida tendo em conta os verdadeiros interesses dos seus povos.
Eis porque o Pentágono administra um império de instalações militares mundiais muito mais amplo que as cerca de mil unidades recenseadas.
Conflito constitucional
Na União Europeia entra-se mas não se sai ou, pelo menos, não se sai a bem, como estamos a perceber cotidianamente pelo caso do Reino Unido.
Acontece o mesmo com a OTAN?
O assunto é acadêmico, porque em relação à Aliança Atlântica apenas temos assistido a entradas, não a saídas ou tentativas de saída.
Na União Europeia ainda se realizam alguns referendos esporádicos para decidir o relacionamento entre as instituições centrais e Estados membros. Referendos, é certo, que têm sido repetidos quando não dão os resultados que deveriam dar – segundo a perspectiva da União – ou então sabotados.
Nada disso acontece na Aliança Atlântica. A OTAN representa, em absoluto, a vontade dos povos, razão que torna qualquer consulta supérflua. Dir-se-ia um comportamento ditatorial, não soubéssemos nós que a OTAN é a essência da democracia.
Portugal foi fundador da OTAN com a ditadura de Salazar, continuou depois do 25 de Abril – que foi gravemente ferido no 25 de Novembro com a colaboração prestimosa da aliança – e continua a não questionar a presença, apesar da letra e do espírito da Constituição da República.
Em Portugal, a propósito da OTAN, há um conflito constitucional latente, do qual todos os governos têm fugido como o diabo da cruz. Salazar dizia que “a pátria não se discute”; os governos de hoje assumem que a OTAN não se discute ou, pelo menos, não se questiona. Porque era isso que deveria fazer-se à luz da Constituição, que determina o envolvimento de Portugal nos esforços de paz e de dissolução dos blocos militares, isto é, da OTAN.
Nada disso. O que fazem caças portugueses violando espaço aéreo da Finlândia, por exemplo? Nada contra este país, apenas uma sequela de uma presença agressiva, no âmbito da OTAN, contra uma nação – a Rússia – com a qual Portugal poderia e deveria ter relações absolutamente naturais e normais, como acontece como tantas outras.
Essa presença em territórios bálticos, em si mesma, é uma agressão à Constituição da República.
Em termos de democracia, porém, a OTAN sobrepõe-se à lei fundamental do país. A posição dos dirigentes nacionais de hoje em relação à aliança não é muito diferente da que há 70 anos era tão grata a Salazar: estão muito agradecidos pelo favor que a OTAN faz em permitir que o país faça parte de tão grande e defensiva família.
Esqueçam a Constituição.
Fonte: https://www.abrilabril.pt/internacional/nato-e-sete-decadas-de-mentiras-guerra-e-sangue