Venezuela: a ameaça imperialista e o risco da guerra
por Euclides Vasconcelos
Revista Opera
É do estadista francês Georges Clemenceau a frase “a guerra é demasiado séria para deixá-la em mãos dos generais’’. Ao comentá-la, o historiador italiano Domenico Losurdo nos lançou uma luz que precisa ser bem aproveitada: “os especialistas frequentemente são capazes de ver as árvores, mas não a floresta, eles se deixam absorver pelos detalhes perdendo de vista o global; neste caso sabem tudo, menos o que é essencial’’ [1]. Com uma ameaça de guerra rondando nossa região, essas linhas são de alguma valia.
Em guerra e em política cedo se aprende a não fazer previsões, mas ficar alheio aos cenários que se projetam é também um erro, e talvez o mais grave. No horizonte sul-americano desenha-se em linhas claras a possibilidade de uma guerra contra a Venezuela. Guerra essa que, chegada às vias de fato, será o maior banho de sangue da história do nosso continente, fazendo a guerra contra o Paraguai parecer brincadeira de criança.
Este texto não tem o objetivo de convencer o leitor da possibilidade da guerra. Não só há uma possibilidade como ela ocupa, hoje, lugar de destaque no leque que visa uma mudança de governo na república bolivariana. Falharam os recursos à via eleitoral, aos distúrbios de rua (as guarimbas em 2017) e o atentado ao alto escalão governamental em uma cerimônia pública em agosto de 2018. No mesmo sentido, os estímulos a dissidências, complôs e tentativa de golpes nas Forças Armadas estão sendo continuamente desbaratados pelo governo. A cada tentativa falha, aproxima-se o recurso da guerra.
Da mesma forma, este não é um espaço para o convencimento de que na política (especialmente na guerra, a sua fase mais bruta) não há espaço para que fiquemos em cima do muro. Desde há mais de um século o continente americano foi palco de dezenas de episódios de intervenções diretas por parte dos Estados Unidos e outras incontáveis interferências sem a deflagração formal de um conflito. Isso, por si só, já deveria bastar para que todos os defensores da mais ínfima autonomia dos povos fossem radicalmente contra qualquer ameaça de guerra. A questão aqui é bem menos, quase nada, sobre o governo Nicolás Maduro, seus acertos e seus erros. É muito mais sobre a pergunta: quantos Allendes devem morrer para o povo latino perder a vergonha de se defender? [2]
Entramos então, e finalmente, no mérito: deixar claro de que forma o cenário para a guerra se organiza e que papel o Estado brasileiro vem cumprindo. Nunca é supérfluo lembrar: esse exercício é como tatear um terreno escuro onde, aqui e ali, ora sim, ora não, um feixe de luz ilumina parte do cenário e das personagens que o compõem. Trata-se de uma tese em que os protagonistas são Estados e suas instituições se preparam para eventos de grande escala. As informações tornadas públicas são poucas e a confiabilidade de muitas, questionável. Como tese, pode conter equívocos, estar parcialmente correta ou pode ser engolida por novos acontecimentos. Tempo ao tempo.
A reboque dos interesses de terceiros: o papel do Brasil
Quase dois anos atrás, por ocasião da realização do Amazonlog17, escrevi um texto [3] alertando para o papel que o Estado brasileiro, já naquele momento, passava a cumprir no processo de pressão contra a Venezuela. Pela primeira vez na história, tropas dos Estados Unidos participaram de um exercício militar na nossa Amazônia, ao lado de outros países, entre eles o Peru e a Colômbia, além de observadores de outras nações. Definido nos meios de comunicação do Exército e do Ministério da Defesa como um exercício logístico de preparação para situações de crise humanitária, é um elemento para clarificar qual seria o papel do Brasil, hoje, num cenário de guerra próximo de nossas fronteiras.
No fim de 2017 a situação na Venezuela era outra, assim como no Brasil. Aqui, ainda sob o governo Temer, o Estado brasileiro passara a empreender uma série de medidas diplomáticas visando ao isolamento cada vez mais profundo do país, como foi a sua suspensão do Mercosul. Dando um salto temporal, com a eleição de Jair Bolsonaro e a escolha para o Ministério das Relações Exteriores de um homem que defende uma guerra no nosso continente, integrante de um grupo com apoio maciço dos EUA, que vem pressionando cada vez mais o governo brasileiro para usar a força contra a Venezuela. Por ora, esse grupo vem sendo barrado por um segundo, este composto por boa parte dos generais da ativa, dos quais falaremos mais à frente.
No texto apontei, em linhas gerais e bastante simplificadas, três dos modus operandi dos EUA para a mudança de regime nos países que contrariam seus interesses. O primeiro, de financiamento da oposição interna e/ou estímulo a manifestações violentas orientadas para a derrubada de um governo. O segundo, a organização de uma coalizão de países vizinhos cuja postura seja agressiva contra o país alvo. Uma guerra econômica, diplomática e, em casos extremos, uma agressão militar. Por fim, o terceiro recurso seria a agressão direta e aberta pelos próprios EUA contra o país alvo. Os três caminhos não são excludentes e onde foram aplicados o foram de maneira mesclada. Na Venezuela não seria diferente. Desde há algum tempo está em curso a organização da coalizão latino-americana, tendo sua formalização na criação do Grupo de Lima.
Algumas análises do cenário sul-americano têm tomado um ponto de partida viciado: buscam calcular, através do poderio militar dos países da região, quem “ganharia” uma guerra em nosso continente. Assim, acabam por ponderar sobre a capacidade técnica brasileira versus a venezuelana ou ainda colombiana versus venezuelana, como se o que o futuro desenha fosse um conflito entre dois Estados. Se assim o fosse, basta dizer que nenhum país ao sul dos EUA possui capacidade técnica equiparável à venezuelana. Não me demoro aqui; basta dizer que não acontecerá uma guerra do Brasil contra a Venezuela e, portanto, análises desse tipo estão comprometidas em seu ponto de partida. O cenário que se projeta é a de uma coalizão de países versus Venezuela e é dentro dessa coalizão que o Brasil já vem cumprindo o seu papel, que não é o de agressor principal.
Mas mesmo essa coalizão guarda ainda uma particularidade: os países sul-americanos que já funcionam como “tropa de choque” diplomática e econômica através do Grupo de Lima, mesmo reunidos, não são militarmente equiparáveis ao Estado venezuelano (tendo em mente que mesmo esse “cálculo de equivalência’’ é problemático já que o aspecto técnico é apenas um dentre tantos elementos). Sendo assim, qualquer incursão militar contra a Venezuela precisa contar com algum nível de participação ativa dos Estados Unidos para ter alguma chance de sucesso, e esse é um ponto de tensão na região. Os países sul-americanos estão temerosos pela sua própria incapacidade, ao passo que os EUA cada vez mais pressionam pelo uso da força, tensionando o início de uma guerra.
Desde há cerca de dois anos, o Brasil cumpre de maneira planejada a administração da situação dos venezuelanos que deixam o país pela deterioração nas condições de vida. A Operação Acolhida, em Roraima, e a mobilização do Estado para realocar os civis venezuelanos pelo território nacional são exemplos desse papel que vem sendo cumprido com sucesso. Voltando ao Amazonlog, realizado na cidade de Tabatinga, na tríplice fronteira entre o Brasil, o Peru e a Colômbia, o exercício dotou as Forças Armadas brasileiras de ensaios para o cenário de uma crise humanitária de grandes proporções. E qual é o cenário causador de uma crise desse tipo? Uma guerra.
Eis o motivo pelo qual, ao meu ver, é viciada a avaliação que busca “calcular’’ os pormenores de uma guerra entre Brasil e Venezuela. Se levarmos em conta apenas dois fatores: a disparidade técnica e principalmente as condições geográficas da fronteira Brasil-Venezuela, uma guerra de agressão a partir daqui seria um tiro no pé digno de um amadorismo barato, e nossos militares não são amadores. Cada uma dessas variáveis, e outras tantas, foram calculadas mais de uma vez e é por isso que, no momento, o delírio aventureiro do chanceler e sua trupe encontra seu freio no grupo de generais que tutela o governo Bolsonaro.
O ensaio que o Estado brasileiro vem empreendendo é de garantia da retaguarda de um conflito e de administração do pandemônio que se seguiria, com massas de refugiados buscando segurança em qualquer lugar que não haja guerra. Voltemos os olhos para o Oriente Médio e às guerras sem fim que o converteram numa colcha de retalhos banhada em sangue. Quantos civis iraquianos e afegãos morreram nesses anos de conflito? Quantos outros fugiram de seus países e qual o impacto dessa massa de desabrigados nos países vizinhos? Quantos palestinos são obrigados a viver no exílio na medida em que o avanço de Israel sobre suas terras não cessa? Roraima, o nosso estado fronteiriço (e os estados vizinhos) tem alguma condição de lidar com milhares ou mesmo milhões de refugiados de guerra? Eu diria que não.
Isso não determina todo o futuro, é claro. Não significa que a participação brasileira se encerre nesse âmbito. Nada impede, por exemplo, a participação brasileira no comando de tropas próprias de outro ponto de partida ou no comando de tropas de outro países. Nada impede, também, o uso do território brasileiro para fins do conflito. O ponto aqui é que o Brasil, sozinho, não será ponta de lança numa agressão ao nosso vizinho. Mas aqui ultrapassamos a linha da projeção para a adivinhação de cenários, onde prefiro não me aventurar.
Cabe a nós então a pergunta: o que ganha o Brasil com tamanha escalada de tensões? O que tem a ganhar os brasileiros com uma guerra em nossas fronteiras? O grupo dirigente brasileiro é tão irresponsável e de tal forma subordinado a interesses que não os seus, que chega realmente a cogitar um conflito que poderia até mesmo arrastar com ele uma parte da nossa floresta amazônica, seja através de algo como uma “balcanização’’ da região ou da instalação de uma base militar estrangeira que dificilmente seria desativada. É criminoso estarem dispostos a ceder vidas brasileiras, recursos nacionais e arriscar a destruição ou mesmo a perda de partes do nosso território em nome de interesses que não os nossos.
Não veremos um novo Paraguai: a confiança nas próprias forças
‘’Todos os cidadãos serão soldados quando formos atacados pelo inimigo.’’ Simón Bolívar, Manifesto de Cartagena.
A guerra do Paraguai é até hoje o maior conflito armado no palco de operações sul-americano. Com a ofensiva da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) em território paraguaio, é impossível contabilizar a totalidade de civis mortos e tornados inválidos, mas estima-se que, ao final da guerra, 70% da população masculina do país tenha morrido. A nós interessa no momento explorar a memória do conflito e como os Estados da região lidam com ele, mais precisamente o Brasil e uma personagem não envolvida no conflito: a Venezuela.
Essa guerra se configurou peça central na construção da ideia de Pátria do Estado nacional brasileiro e é constantemente rememorada como feito heróico e consolidador da nossa nacionalidade, como prova de nosso protagonismo no continente e expertise em confronto. A historiografia ligada ao Estado brasileiro e suas Forças Armadas tratou de transformar o conflito em um dos mitos fundadores de nossa identidade e, especialmente, da identidade do nosso Exército. Mas o que importa aqui é ressaltar o papel que reivindicamos para nós enquanto potência regional: o de um potencial agressor, em nome de sabe-se lá o que. Isso não foi ignorado pelos demais países sul-americanos. O nosso desenvolvimento deu-se de costas para o continente, e muitas vezes às custas deste.
De que nos interessa saber disso? A guerra do Paraguai foi um episódio constantemente rememorado pelo ex-presidente Hugo Chávez como exemplo da disposição política e capacidade técnica do Estado brasileiro em sufocar um país vizinho. Os dirigentes venezuelanos não estão alheios às considerações sobre a questão militar e de defesa nacional e sempre mantiveram os olhos voltados para esse aspecto, como não poderia ser diferente.
Hoje, passados exatamente 20 anos da primeira eleição de Chávez, o debate acerca da defesa nacional e a elaboração de uma doutrina militar anti-imperialista já não é mais um projeto. Existe um extenso acúmulo teórico que encontra raízes nas guerras de independência da América espanhola, nas elaborações de militares venezuelanos pré-bolivarianismo e nas experiências para além das próprias fronteiras, especialmente nos casos da China, do Vietnã e de Cuba. As formulações de Mao Tsé-Tung ocupam espaço central nas academias militares venezuelanas, uma vez que o líder chinês foi um dos maiores estrategistas e teóricos militares do século passado e elaborou um pensamento que reúne em si princípios comuns com qualquer tentativa de ruptura radical em países subdesenvolvidos (ou, como eram chamados à época, terceiro-mundistas). O próprio Chávez era um dedicado leitor de Mao e adepto da doutrina de guerra popular do líder comunista asiático.
Porém, tão importante quanto uma correta elaboração e compreensão teórica do fenômeno é a aplicação prática de tais princípios. Para o que se propõe este texto, precisamos ir a fundo em como, em termos práticos, está organizada a Venezuela para a defesa nacional.
A Força Armada Nacional Bolivariana (FANB) é integrada por cinco componentes: a Armada Nacional, a Aviação Militar, o Exército Nacional, a Guarda Nacional e a Milícia Nacional Bolivariana, que funciona como um agrupamento de reserva. Ao longo dos governos Hugo Chávez, as forças passaram por um grande processo de mudança para além dos já citados esforços políticos-doutrinários. Por ora, não olharemos aos termos técnicos. No que toca ao equipamento, a Venezuela está muito bem armada. Muito melhor que o Brasil, aliás. O Estado venezuelano empreendeu um projeto para reequipar e modernizar suas Forças Armadas, indo desde a aquisição de milhares de fuzis de assalto Kalashnikov modelo AK-103 para substituir os FAL belgas que armavam as forças desde 1950 [4] até a compra de jatos Su-30 russos, o que colocou o país em posse dos melhores caças da região [5]. Voltemos os olhos para o quinto componente da FANB, seu agrupamento de reserva, a Milícia Nacional Bolivariana.
Em dezembro de 2018, durante um evento marcando os 188 anos da morte de Bolívar, o presidente Maduro falou aos membros da Milícia Nacional Bolivariana sobre a ameaça de invasão e o papel dos milicianos, que segundo ele já são 1,6 milhões, nesse cenário. O tom do discurso destacou a importância da MNB para a defesa do país nos tempos que se aproximam e rememorou a liderança de Chávez: “Foi uma tarefa que nos deixou o comandante Chávez, levar a milícia a todo o território nacional (…) Temos que preparar um plano perfeito para que os milicianos tenham sua preparação permanente e saibam como cumprir sua missão no momento em que sejam chamados ao combate’’ [6]. Mas, afinal, o que isso significa na prática?
Do ponto de vista defensivo, o território venezuelano está dividido em setores capacitados para atuarem de forma auto-suficiente se necessário. Trata-se de um conjunto de medidas políticas, administrativas, jurídicas, econômicas e militares que garantem a preparação, desde os tempos de paz, de todos os cidadãos (civis e militares) para lidar com a defesa de sua região em caso de guerra. Isso significa dizer que o país está previamente dividido e subdividido. Ou seja: para cada uma das zonas maiores, existem centenas e milhares de unidades menores, preparadas para funcionar como um “pequeno vespeiro” em caso de agressão. Serão regiões que a própria população irá tratar de defender em armas, sendo essa a medula da noção de guerra popular, já mencionada como orientadora do pensamento militar bolivariano.
O caráter desse tipo de preparação implica que uma guerra de ocupação seria por demais custosa ao inimigo. Falando dos Estados Unidos, as duas principais guerras em que embarcaram nos últimos anos, Iraque e Afeganistão (a Síria é um caso a parte), pôde-se observar um certo padrão de sucessos e falhas. As forças estadunidenses conseguiram com sucesso sobrepor as forças regulares iraquianas e afegãs graças ao seu incontestável poderio, principalmente aéreo. Porém, uma vez derrotadas as forças regulares, a ocupação do território encontrou absurda resistência por parte da população civil, que organizou-se em grupos armados para acossar permanentemente as forças estadunidenses. Em solo, os EUA perderam e perdem muitos combatentes para os grupos iraquianos e afegãos que se insurgiram contra a ocupação em métodos de combate irregular, principalmente a guerrilha. Por mais preparadas que sejam as forças ocupantes em métodos de contra-insurgência, existem fatores em que um soldado em território estrangeiro jamais se igualará a um cidadão que vê sua terra ocupada, como o conhecimento do terreno e o ímpeto da luta.
E por quê importa a reação da população ao poder ocupante? A ocupação de um terreno possui objetivos que remontam aos milênios de atividade guerreira dos seres humanos: o saque, o roubo. No caso contemporâneo, principalmente petróleo. A extração, refino (nos casos onde é feito no próprio país), transporte até os portos e embarque nos navios necessitam de algo que está diretamente ligada à população local: estabilidade. A estabilidade dos dominantes, claro, mas ainda assim estabilidade. A logística da situação exige trabalhadores, boas estradas, meios de transporte e uma segurança mínima para deslocamento. Nada disso está garantido quando grupos estão dispostos a impedir permanentemente a ocupação inimiga, seja com ataques diretos ou sabotagem de ferrovias, estradas, veículos de transporte, etc.
E qual a especificidade do caso venezuelano que multiplica o fator popular na balança estratégica? É que a população está organizada e preparada em armas desde antes de qualquer agressão. Se no Oriente Médio ocupado há tanta resistência, que dirá da Venezuela onde há anos a população se prepara para qualquer cenário? Mais uma vez devemos muito ao gênio estratégico de Chávez.
Chegamos então, finalmente, à Milícia Nacional Bolivariana. Como agrupamento de reserva, funciona como força auxiliar, com funções integradas às demais forças ou ainda independentes. Por exemplo: os efetivos do Exército possuem um caráter de mobilidade. Embora possuam seus postos, são preparados para se deslocarem com efetividade quando necessário. Se em determinado local do país um agrupamento for exterminado ou feito prisioneiro, o Estado precisa estar preparado para realocar as suas forças. O caráter dos agrupamentos de milícia é outro. São civis treinados militarmente, não soldados profissionais. Possuem trabalhos aos quais precisam comparecer e não estão dotados de equipamento e logística que permitam mover-se rapidamente. Esse caráter local faz com a sua função defensiva também seja local.
São grupos pequenos e destinados a funções concentradas, como a defesa de uma fábrica ou estrada de importância estratégica ou ainda, se necessário for, a destruição desta mesma fábrica ou estrada, para evitar que caiam em mãos inimigas. Esse caráter concentrado é o responsável pela noção de “vespeiro” onde a população em armas é a responsável por importunar as forças inimigas onde quer que elas estejam. Assim, mesmo que as forças armadas do país sejam derrotadas, o processo de ocupação inimiga será por demais custoso.
A criação das milícias remonta a 2005, fruto da cada vez mais profunda união cívico-militar e da noção de que as Forças Armadas, sozinhas, possuem recursos limitados diante do poderio militar estadunidense. Um extenso trabalho de agitação e propaganda foi feito pelo presidente Chávez entre a população para criar o convencimento da necessidade de participação no setor defensivo, ao passo que também é feito um trabalho de convencimento dos oficiais militares da urgência de uma quinta força, preparada nos moldes da guerra não-convencional, irregular.
Estão entre as atribuições da MNB alistar, equipar e treinar seus combatentes, além de atribuições administrativas em suas regiões. Tudo como preparação para uma situação, cada vez menos hipotética, onde seja preciso atuar de forma independente. As MNB subdvidem-se em Milícias Territoriais e Corpos Combatentes. Em linhas gerais, a primeira diz respeito àqueles maiores de 18 anos e moradores de determinada comunidade/bairro que organizam-se a partir desse local de moradia, tratando de preparar-se para a defesa daquela região. Já os Corpos Combatentes são unidades de trabalhadores de determinada instituição (pública ou privada) que passam a receber treinamento para a defesa do posto de trabalho, dada a importância estratégica da economia do país em caso de guerra.
O próprio Chávez alertou, certa vez: ‘’Não sou Allende nem esta Revolução está desarmada. Esta é uma Revolução pacífica, mas não desarmada, tem aviões, tanques de guerra e outras coisas mais. Por isso, que nossos inimigos não se equivoquem…’’ [7]. Com certeza ele tinha na memória as palavras de Maquiavel, séculos atrás: “sem armas próprias, nenhum principado é seguro; antes, é todo dependente da fortuna, não havendo virtù que o defenda fielmente na adversidade. E foi sempre opinião e sentença dos homens sábios: ‘Nada é tão incerto e instável quanto a fama de uma potência que não se funda na própria força’.” [8]
À guisa de conclusão: um Vietnã latinoamericano
“escucha yanqui lo que te voy a decir / tu a mi pais no lo vas a intervenir / vente pa ca que lo que te viene es palo / seremos tu Vietnam latinoamericano”.
Ao contrário do que podemos pensar, uma guerra não “estoura”, não surge de surpresa. Política que é, a guerra possui objetivos racionais e calculados. Nas palavras do próprio Clausewitz: “é preciso recordar que nenhum dos dois antagonistas é para o outro uma pessoa abstrata (…) a guerra nunca deflagra subitamente: sua extensão não é obra de um instante.” [9]. Contudo, um alerta: sendo racional e calculada, ela não é controlada em todos os seus pormenores. Uma vez iniciada, a guerra se converte numa espiral de variáveis que mais se assemelha a um furacão, e aos protagonistas cabe dele sair vitorioso. Por isso, “conte com as circunstâncias, que também são fadas. Conte mais com o imprevisto. O imprevisto é uma espécie de deus avulso ao qual é preciso dar algumas ações de graças; pode ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos’’ [10]. É a esse furacão que não podemos permitir-nos ser arrastados.
As considerações acerca da capacidade defensiva venezuelana nos fazem acreditar que ela se basta diante dos vizinhos ariscos, e se os Estados Unidos esperam algum grau de sucesso, isso dependerá do nível de participação direta no conflito. Ainda assim, o que reina é a incerteza do que os analistas chamam de “cenário Vietnã”. Se o pequeno país asiático, longe das fronteiras e da opinião pública por um bom tempo, conseguiu humilhar os estadunidenses defendendo-se com meios precários e organizando toda uma população para a guerra, o que será capaz de fazer um país e um povo previamente preparados e equipados? Isso já levanta outras questões. Os Estados Unidos nunca se envolveram tão perto de suas fronteiras em uma guerra com a magnitude da que se aproxima. Intervir em ilhas caribenhas e pequenos países centro-americanos não é, nem de longe, algo parecido.
Há ainda considerações a serem feitas acerca dos papéis da Colômbia, a verdadeira ponta de lança do imperialismo no continente, da Rússia, da China e de Cuba. O grande Urso tem cumprido um papel chave na manutenção da revolução bolivariana através de apoio diplomático, econômico e militar (principalmente de inteligência). O Dragão asiático, por sua vez, cumpre papel semelhante, mas mais modesto. Algo em comum, porém, é que nenhum dos dois parece disposto a envolver-se em um conflito tão longe das fronteiras, ainda mais no continente americano. Mas não é hora de detalharmos tudo isso. O texto já se estende para além do aceitável e o leitor merece um pouco de descanso.
Por fim, fica o lembrete: “não será lutando da maneira que fizeram os que ganharam a última guerra que a próxima será vencida, mas também é certo que apenas estudando as formas como se lutou historicamente é que podemos conhecer as novas alternativas tecnológicas usadas como meios bélicos e, fundamentalmente, compreender o significado político das numerosas guerras atuais” [11]. Se o imperialismo é um tigre de papel, precisamos de uma tesoura afiada. Caso contrário, “não estar preparado para o momento em que as trombetas de Marte anunciarem a chegada da hora pode significar uma irresponsabilidade histórica imperdoável e a tardia constatação de não haver estado à altura dos acontecimentos” [12].
Notas:
[1] http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=11&id_noticia=151542
[2] http://www.justificando.com/2017/08/03/quantos-allendes-devem-morrer-para-o-povo-latino-perder-vergonha-de-se-defender
[3] https://pcb.org.br/portal2/16934/presenca-militar-estadunidense-na-amazonia-brasileira-e-crime-de-alta-traicao/
[4] https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,chega-a-venezuela-primeiro-lote-de-fuzis-russos,20060603p46505
[5] https://www.aereo.jor.br/2016/10/09/o-armamento-dos-sukhoi-su-30-mk2-venezuelanos/
[6] https://www.telesurtv.net/news/nicolas-maduro-milicia-soberania-venezuela-20181217-0032.html
[7] Marcelo Buzetto, ‘’Guerra de todo o povo’’: a influência das lutas políticas e sociais na nova doutrina de defesa nacional venezuelana, p. 242.
[8] Maquivel, O príncipe, ed. Vozes, p. 63
[9] Clausewitz, Da guerra, Martins Fontes, p. 13
[10] Machado de Assis, Esaú e Jacó.
[11] Saint-Pierre, A política armada: fundamentos da guerra revolucionária, Editora Unesp, p. 225.
[12] Idem, p. 228.
Notas sobre a Venezuela: as coisas da guerra estão sujeitas à contínua mudança