A Hungria no laboratório do neoliberalismo
Uma história de lutas
A Hungria é um importante país do leste europeu. Sempre foi da tradição magyar a luta pela liberdade, pela autodeterminação e por uma perspectiva progressista para humanidade.
No século XIX ocorreram lutas por emancipação política, a exemplo da revolução de 1848/49 que lutava contra o império Habsburgo. O povo húngaro conseguiu a sua autonomia dentro daquele império em 15 de março de 1848 e, em abril de 1849, a sua independência.
Já no século XX, uma revolução de caráter socialista, comandada pelos comunistas, sob a liderança de Béla Kun, se estabeleceu. Era o começo de 1919 e o país fervilhava com grandes movimentações sociais. Os trabalhadores organizados em conselhos marcharam para conquistar o poder e, em março de 1919, foi criada a República Soviética da Hungria. Era a segunda revolução com esse caráter no começo do século XX, pois a primeira havia acontecido na Rússia em 1917, sob a vanguarda dos bolcheviques.
A República Soviética da Hungria durou apenas alguns meses, exatamente de 21 de março de 1919 a 06 de agosto do mesmo ano. As tropas do obscurantismo, a serviço da reação conservadoras, conseguiram cercar o governo dos sovietes e o embrionário poder socialista dos trabalhadores húngaros foi derrotado.
O governo comunista de Béla Kun, que teve como comissário (ministro) de cultura aquele que viria a se transformar no filósofo marxista mais importante do século XX, Giörgy Lukács, não teve tempo histórico para aprofundar a socialização da política e da economia.
A repressão se abateu mais uma vez sobre os trabalhadores, e a Hungria viveu uma longa noite de trevas, com perseguição política, terror étnico, manifestação do fascismo e colaboração com o nazismo.
Mas como nos afirmou o dramaturgo William Shakespeare, “não tem longa noite que não encontre o dia”. E assim aconteceu. Após movimentações sociais contra o atraso conservador, as lutas contra o nazismo no campo de batalha, os trabalhadores húngaros com a revolucionária solidariedade do Exército Vermelho conquistaram o poder no pós segunda guerra, e fizeram uma revolução socialista com ampla participação popular.
A experiência do socialismo realmente existente na Hungria foi marcada por avanços na socialização da política (decisões coletivas) e da economia (gestão dos trabalhadores). O povo húngaro conquistou um grande padrão de vida nas questões essenciais ao desenvolvimento humano, a exemplo da educação, transporte, saúde, moradia, lazer, pleno emprego e participação nas decisões. Todavia, contradições e equívocos se apresentaram no processo que funcionaram para emperrar a socialização da democracia popular e dos seus pressupostos socialistas. Diante desse quadro tivemos na Hungria episódios de complexa análise e saídas não convencionais para o cabedal clássico do socialismo revolucionário. Estou referindo-me aos acontecimentos de 1956, que até hoje demandam uma interpretação mais profunda, com estudos mais elaborados, no sentido de tirarmos lições desses atos, que nos ajudem, enquanto revolucionários, a não mais incorrer nesses erros. Essa análise não pode ser pautada, portanto, na sanha ideológica da imprensa burguesa.
A derrota dos trabalhadores
A Hungria é um país de constante movimentação política. Os acontecimentos que começaram a trazer para a cena política debates sobre o socialismo realmente existente no leste europeu e na URSS, a partir da chegada de Mikhail. Gorbachev ao poder em 1985, não deixaram a Hungria de fora. Ao final da década de 80 do século XX, um processo de contrarrevolução capitalista tomou conta desse país e o fez caminharceleremente para o passado das privações sociais e políticas.
Em 1987, o próprio Partido Comunista Húngaro, a partir de decisões do seu Comitê Central, aprovou medidas que institucionalizam regras formais da democracia burguesa de características liberais. Prosseguindo nesse roteiro, em 1988 János Kádár é afastado e substituído por Imre Pozsgay, confirmando assim, o entranhamento das posições pró-capitalistas na nova ordem política da Hungria. Como coroamento desse processo,em 23 de outubro de 1989 é aprovado essa república do capital.
A partir desse novo quadro político são realizadas as eleições de maio de 1990, quando os populistas e a direita (como o partido dos proprietários de terras) chegaram ao governo e fizeram contra-reformas que instituíram a ruptura, pelo alto, com a ordem anterior. A Hungria começou a ser invadida pela lógica da barbárie e virou um laboratório para um novo ciclo do capital, com requinte de crueldade absurda. Logo, ela entra para a OTAN, em 1999, e para a União Européia em 2004. Confirmando-se assim, a cada medida confeccionada no laboratório do capital, como um país pensado de fora para dentro. O livro do histórico dirigente político e pesquisador social, Gyula Thümer, Az elsikkasztott ország, ainda sem tradução para o português, discorre sobre o que ele chama de processo de venda da Hungria. Esse livro obteve uma grande repercussão entre os movimentos sociais e trabalhadores húngaros, saindo uma segunda edição com grande tiragem.
A realidade atual da terra magyar
A Hungria é hoje um país de 10 milhões de habitantes, com um desemprego que alcança mais de um milhão de trabalhadores, com mais de dois milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, o que equivale dizer, que vivem com menos de 250 euros por mês. O salário mínimo é algo em torno de 250 euros (um dos mais baixos da União Européia), grande parte dos trabalhadores ativos (três milhões) recebe nessa faixa salarial. A carestia toma conta do país, chegando ao ponto de circular no meio sindical que, na Hungria, se tem salários da África e custo de vida da Áustria.
Após a contrarrevolução capitalista, o capital destruiu o parque industrial num processo de privatização que tem como característica uma conduta típica da máfia russa. Efetivou-se um grande movimento da direitagovernista, com o apoio da social democracia trânsfuga, no sentido de medidas que internacionalizaram a economia, sendo hoje, essa internacionalização em torno de 75% do geral da economia. Com 100% do setor bancário, 85% na indústria e agricultura. O processo de privatização em massa atingiu o setor de energia, sendo hoje 100% privado e internacionalizado, gerando uma grave distorção, pois o povo paga um preço muito alto pelo consumo. As privatizações também alcançaram os serviços, onde os preços também são extorsivos.
As grandes plantas industriais da economia planificada foram substituídas por empresas de no máximo 300 trabalhadores, quando antes eram de Cinco mil. Hoje, 58% dos operários húngaros laboram em empresasde no máximo 50 trabalhadores.
O que chama à atenção nesse amplo processo de empobrecimento do país, é que a classe operária já destruiu a poupança que tinha e, já vendeu a sua moradia (ambas conquistada no período do socialismo realmente existente), vivendo de aluguel. Mas, ainda dois fatores sobressaem na realidade da Hungria: a alta concentração de renda (um milhão de pessoas com alto padrão de vida e consumo) e a corrupção governamental.
Aqui na Hungria, aprofundamos e mantivemos contato com vanguardas políticas, movimentos sociais, movimento sindical combativo. Pesquisamos no Arquivo Nacional e mantivemos contato com o ambiente acadêmico e cultural, sempre na perspectiva de extrair dados e informações que nos permitisse construir uma acurada análise sobre o que está ocorrendo nesse país, a partir do laboratório de maldades que foi efetivado pelo capital. Fica claro que, se a crise da União Européia se agravar, a Hungria como uma economia completamente dependente, será fortemente abalada.
As frações de classe da burguesia disputam entre si a possibilidade de aplicar o seu choque de capitalismo. O governo entreguista e reacionário do FIDESZ (União Cívica Húngara), a espelho do receituário neoliberal, conseguiu implementar golpes nos direitos sociais dos trabalhadores. Tendo como exemplo dessa lógica, o pacote com leis que mudam a legislação trabalhista.
Reflexão para um grande passo na história
Os trabalhadores do mundo que acreditam no progresso social e na emancipação humana têm que voltar o seu olhar, internacionalista, para o que está acontecendo na Hungria. É um momento de acirramento das contradições de classe. Nesse contexto, sindicatos e confederações dominados pela social democracia e pela direita, a serviço do capital, conciliaram com a burguesia e concordaram com a flexibilização das relações detrabalho, tendo como contrapartida a manutenção da representação sindical no local de trabalho. É importante registrar que, sempre na história contemporânea desse país, existiu a presença da representação da classe dentro da empresa, ou seja, no tradicional local de trabalho. Foi uma troca de Pirro!
Pelo que se percebe, os trabalhadores vivem um momento de reflexão política, mas também de luta aberta. O comando do processo está nas mãos da burguesia. São poucos sindicatos que tem uma prática revolucionária e os movimentos sociais ainda não encontraram uma perspectiva classista. As bandeiras e palavras de ordem que podem movimentar o bloco histórico ainda estão em fermentação. Todavia, desse estágio de reflexão política e ação aberta existem possibilidades de combates.
Compreendemos que há forças em movimentação social, a exemplo do MUNKÁSPÁRT. Essa possibilidade de luta faz com que o governo de direita, que emergiu do desatino social democrata, tente, através de uma legislação fascista, esmagar as alternativas de avanço nas lutas progressistas.
A cena política na Hungria, em termos gerais, não é diferente dos processos históricos quando, da mais profunda opressão, os trabalhadores encontraram formas e forças para defender a humanidade da barbárie. Nesse contexto, existe a possibilidade dos trabalhadores, dos movimentos sociais e dos operadores políticos, a exemplo do MUNKÁSPÁRT, encontrarem o elo que os ligará a experiência de 1919. Sabendo retirar ensinamentos do período do pós segunda guerra, para fazer a Hungria se reencontrar com a sua história de lutas em defesa da humanidade. Afinal, como aprendemos numa canção galega, “apenas o socialismo abre as portas para construir a democracia real”.
*Milton Pinheiro é professor de Ciência Política da Universidade do Estado da Bahia – UNEB e membro do CC do PCB.