A pandemia e a tragédia da escola pública

imagemNOTA POLÍTICA – CÉLULA MARCOS CARDOSO FILHO

PCB de Santa Catarina

Desde meados de março, quando o país decretou estado de emergência em razão da pandemia do novo coronavírus, o atendimento de todas as redes de ensino foi suspenso e se iniciou um processo de implementação aligeirada de uma série de medidas que visavam dar continuidade ao ano letivo. Em 1º de abril o Governo Federal publicou um decreto (1) que desobriga o cumprimento dos 200 dias letivos, mas mantém a obrigatoriedade das 800 horas. O grande capital, que por hábito vê mesmo em momentos de crise oportunidades únicas para ampliar suas taxas de lucro, se aproveitou mais uma vez da situação para acelerar um de seus projetos mais cruéis para os filhos da classe trabalhadora: o avanço do Ensino à Distância na Educação Básica. As grandes corporações passaram a faturar com contratos milionários vendendo suas plataformas digitais, e a rede privada de ensino conseguiu um argumento que justificasse a cobrança de suas mensalidades.

Importante ressaltar que este processo tem se consolidado no Brasil inteiro, sendo legitimado por instâncias como o Conselho Nacional de Educação. No entanto, o princípio de Gestão Democrática da LDB (1996) vêm sendo constantemente ignorado, uma vez que nunca existiu um diálogo real com a sociedade. Questões importantes sobre os desdobramentos dessa política educacional vem sendo sumariamente omitidas, como as implicações para o trabalho docente, as (im)possibilidades de acesso dos alunos, a efetividade desta modalidade pedagógica, parâmetros de qualidade, e ainda a desigualdade que será gerada e que a escola terá que dar conta ao fim de tudo isso.

Para os trabalhadores da educação esse processo resulta numa modificação radical e repentina da atividade docente. Em suma, a grande maioria dos professores nunca tiveram qualquer tipo de capacitação para esta modalidade de ensino em suas formações iniciais. Decorrente disso, verificamos um amontoado de improvisos onde os trabalhadores se esforçam para dar conta de algo que não tem domínio, comprometendo a qualidade do ensino e sobrecarregando os profissionais em diversos aspectos. Cabe observar que o ambiente doméstico está longe de ser adequado para o exercício da docência, por melhor que seja a condição de vida desse professor.

A quarentena promoveu um fenômeno que tem implicações diretas na saúde mental e física do trabalhador. Ao estabelecer o regime de teletrabalho, modifica-se completamente as rotinas exigindo uma nova organização para os núcleos familiares. Os professores se veem no desafio de reinventar suas práticas pedagógicas, aprender a utilizar as tecnologias e cumprir sua carga de trabalho ao mesmo tempo em que são obrigados a realizar as tarefas básicas do cotidiano doméstico. Para as mulheres, que correspondem a um grande número entre os profissionais do magistério, essa situação é ainda mais perversa quando verificamos a super exploração histórica, a partir da divisão sexual do trabalho, delegando a elas todo o trabalho doméstico e o cuidado com os filhos.

Para os trabalhadores da educação que têm relações trabalhistas mais frágeis, o drama é ainda maior. Um elevado número de professores temporários, um grande contingente de professores do setor privado e demais profissionais terceirizados, perderam seus empregos logo no início da pandemia. Parte desses trabalhadores ficaram submetidos à suspensão de seus contratos ou à redução de carga horária e salário, sob respaldo da MP 936 (2) que dá o aval para que as empresas façam negociatas que resultam em perdas salariais para os trabalhadores. Enquanto isso, aqueles que mantiveram seus vínculos empregatícios se veem numa posição delicada, colaborando para que a categoria se mantenha passiva sob a constante ameaça de demissões em massa. O medo de perder o emprego numa conjuntura como a que vivemos imobiliza os trabalhadores e dificulta uma organização de resistência.

Completando a desventura que os professores atravessam, temos que a consolidação das práticas de ensino remoto se materializa numa intensificação do controle da atividade docente, muito oportuna para os setores mais conservadores da sociedade, adeptos do movimento Escola Sem Partido. Se logo de início temos um problema importante a se resolver, que diz respeito aos direitos da produção intelectual, de imagem e demais licenças que seriam necessárias para regulamentar esta utilização improvisada das plataformas digitais, logo nos deparamos com o mais perigoso aspecto presente neste projeto de educação: a retirada de todas as possibilidades de se realizar um ensino crítico, que favoreça o desenvolvimento de um pensamento que seja capaz de refletir sobre as contradições desta sociedade. Temas que são comumente polêmicos para as forças conservadoras, mas profundamente necessários para uma educação de qualidade, como gênero, diversidade, educação sexual, cultura africana e afrobrasileira, política e filosofia estão certamente sob vigia, em vias de censura.

Como constatamos acima, os professores sofrem com as condições materiais nitidamente insuficientes, e para os estudantes a situação não é diferente. O Ensino Remoto, como substituinte da educação presencial tem inúmeras limitações mas isto se agrava ainda mais quando visualizamos as condições em que vivem grande parcela dos estudantes, sobretudo os de escola pública, com a ausência de direitos primordiais para qualidade de vida, como o saneamento básico, alimentação e moradia dignas, além da ausência das ferramentas necessárias para o estudo, como o computador e o acesso à internet de qualidade. Tudo isso já seria suficiente para distanciar uma criança ou jovem do ensino remoto, mas ainda é preciso lidar com a violência policial, que tem feito um verdadeiro genocídio da população negra e periférica em nome da política de controle e extermínio social. Esses problemas, somados aos que surgiram na pandemia, como a baixa testagem do Covid-19 e as limitações da saúde mental diante de tanta insegurança, inviabiliza neste momento qualquer ensino que pretenda ser de qualidade. Ademais, as crianças que cursam o Ensino Fundamental demandam a disponibilidade de um adulto para desenvolver suas atividades, em especial, aquelas que estão em processo de alfabetização ou aquelas que possuem algum tipo de deficiência. No entanto, os pais e demais familiares dessas crianças nem sempre tem instrução suficiente para prestar este auxílio, além de estarem na maioria das vezes ocupados com as atividades que garantem o sustento da família.

Existe um Lobby empresarial pelo retorno das atividades escolares

A pandemia se comporta no Brasil de maneira muito diferente de como ocorreu em outros países, muito em função do governo bolsonarista que demonstra não ter qualquer compromisso com a vida da população. Em razão disso, os gráficos que os especialistas apresentam periodicamente parecem não dar conta de prever por quanto tempo enfrentaremos a crise sanitária, não tendo chegado ainda ao ápice dos níveis de contágio, e prorrogando o risco de colapso do sistema de saúde. Sendo assim, alguns empresários pressionam o Estado para que se institua um clima de “nova normalidade”, forçando o retorno das atividades produtivas, comerciais e de serviços não essenciais, impedindo a classe trabalhadora de realizar a quarentena. Na área educacional não é diferente, de um lado existe uma pressão dos donos de escolas particulares para o retorno das aulas presenciais o quanto antes e de outro uma pressão pelo retorno das creches e escolas públicas para que os pais tenham onde deixar seus filhos para vender a força de trabalho.

A Federação Nacional das Escolas Particulares (FENEP) está pressionando em diversos estados e municípios o retorno antecipado das escolas particulares. Aqui em Santa Catarina já temos essa iniciativa em Florianópolis e Joinville. Segundo Ademar Pereira, presidente da FENEP, “A escola pública já tem diversos problemas, uma série de questões que foram acumuladas ao longo dos anos. Não podemos ser colocados na mesma situação e esperar que elas tenham condições para que nós possamos reabrir” (3). Essa postura demonstra que para os empresários das escolas particulares, mais importante que preservar vidas, é garantir a mensalidade no final do mês. Outra questão colocada é o aprofundamento das desigualdades entre o sistema privado e público caso isso ocorra, já que o estudante da rede pública segue na precariedade do ensino remoto enquanto que o da rede privada volta aos estudos presenciais. Já vemos movimentações de sindicatos de professores se colocando contrários a essas medidas e ameaçando entrar em greve caso seja decretada a volta às aulas antes de ser seguro.

Várias redes de ensino, empresários, sindicatos e demais interessados já estão se organizando para debater protocolos de segurança para minimizar os riscos de contágio que permitam o retorno do ensino presencial. Países como França, Inglaterra e Itália começaram a implementar protocolos e experimentar estratégias de retorno das atividades escolares somente após os números referentes ao contágio e mortes começarem a cair. Entre as medidas necessárias estariam o uso obrigatório de máscaras, álcool em gel, e principalmente uma redução significativa do número de alunos por sala, principal desafio a ser enfrentado pela realidade das escolas públicas brasileiras. Em todo caso, o Brasil ainda não está em condições sanitárias de propor o retorno das unidades educativas.

Para dar conta do problema a Fundação Lemman (4) já apresentou a solução: o Ensino Híbrido, que consiste numa metodologia que mistura o ensino remoto com o presencial, algo que já ocorre em grande medida no Ensino Superior. O governo do estado de São Paulo já anunciou que o retorno das aulas se dará num sistema de rodízio, em que se pretende uma ocupação presencial das instituições de até 20%, passando numa fase seguinte para 50% do total de alunos, que se revezariam entre as atividades presenciais e remotas (5). O plano ainda depende do aval do Comitê de Contingência que administra a crise sanitária naquele estado. Importante pensarmos os limites desta proposta e da implementação dos protocolos de segurança. Os trabalhadores da educação seriam mais uma vez arrebatados tendo de dar conta tanto do ensino presencial quanto remoto, e ainda estariam hiper expostos à contaminação.

Temos um aspecto importante para observar no que diz respeito aos filhos da classe trabalhadora: se seus pais já tiveram que interromper a quarentena para voltar a trabalhar, mas as creches ainda não retornaram, as crianças pequenas estão desassistidas. Com quem, onde e em quais condições elas estão? O atendimento das crianças em creches é uma demanda objetiva muito importante, mas o problema alcança um patamar ainda mais elevado quando pensamos as implicações de um retorno precoce para a Educação Infantil. A OMS não recomenda o uso de máscaras por crianças menores de dois anos, pelo risco de asfixia. Além disso, etiquetas de higiene como cobrir o rosto ao tossir ou espirrar não são condizentes com as possibilidades motoras e cognitivas da faixa-etária. É preciso considerar ainda que de acordo com a especificidade dos bebês e das crianças pequenas não é possível qualquer tipo de sociabilidade que não envolva contato físico. Há que se levar em conta que o cotidiano das creches e pré-escolas é organizado de maneira coletiva, seja no compartilhamento de brinquedos, mesas e bancos conjuntos no refeitório e banheiros de uso coletivo. A reorganização das estruturas não parece ser suficiente para suprir a necessidade de distanciamento social, uma vez que a própria condição das crianças desta etapa da Educação Básica apresentam necessidades físicas, afetivas e emocionais que requerem um contato muito íntimo, como colo, trocas de fralda, banho, etc.

Por tudo que já foi exposto, é primordial mantermos um posicionamento contrário ao ensino remoto e ao ensino híbrido. São os filhos da classe trabalhadora que serão os mais prejudicados como sempre. A desigualdade social, que infelizmente só se aprofundou nos últimos anos, não permite que estas propostas supram as necessidades dos estudantes das escolas públicas. Tampouco o retorno ao ensino presencial antes que seja de fato seguro. Ao contrário de resolver os problemas de nossa classe, a desigualdade será ainda mais ampliada. Os filhos da burguesia tem o direito de ficar em suas casas com todos os recursos tecnológicos, conforto e segurança pelo tempo que precisarem, enquanto os filhos da classe trabalhadora são relegados a um projeto de educação que neste momento os joga para a morte. Não podemos aceitar! A suspensão das atividades escolares não pode causar nenhuma perda que seja tão valiosa quanto a saúde dos estudantes e seus familiares. Estamos num momento em que defender a vida é o primordial.

Somos contrários ao ensino remoto e ao ensino híbrido. Defendemos o ensino presencial quando este for seguro! Reivindicamos que as atividades à distância sejam somente de caráter complementar! Defendemos o direito à quarentena, com auxílio emergencial assegurado durante 2020 e com valor suficiente para manutenção de vida digna aos trabalhadores e trabalhadoras!

Em defesa da escola pública, gratuita e de qualidade!

A vida vem antes do lucro!

1. http://www.in.gov.br/…/medida-provisoria-n-934-de-1-de-abri…
2. http://www.in.gov.br/…/medida-provisoria-n-936-de-1-de-abri…
3. https://www1.folha.uol.com.br/…/escolas-particulares-querem…
4. https://fundacaolemann.org.br/noticias/ensino-hibrido…
5. https://veja.abril.com.br/…/volta-as-aulas-em-sp-tera-sist…/