Gaza: notas sobre uma chacina
Os bombardeIos de Israel causaram 126 mortos na Faixa de Gaza até dia 14 de maio de 2021, dos quais 20 mulheres e 31 crianças
Imagem: Raneen Sawafta / REUTERS
José Goulão
ABRIL ABRIL
As forças armadas sionistas que participam em exercícios atlantistas são as mesmas que fazem jorrar o sangue de civis indefesos na Palestina, impedidos de escapar das suas bombas.
Israel está cometendo mais um ato no mais alto grau da chacina a que vem submetendo impunemente a população da Faixa de Gaza – e da Palestina em geral – durante as últimas décadas. Os alvos não são «os túneis do Hamas», como informa o regime sionista, mas dois milhões de pessoas que vivem enclausuradas num imenso campo de concentração do qual não podem escapar. Não se trata de um «confronto»: é uma barbárie.
Algumas notas sobre o que está se passando.
1) O principal responsável pelo massacre não é Israel: é a chamada comunidade internacional
A Faixa de Gaza e a respectiva população são um alvo que Israel tem sempre à mão quando necessita de recorrer a manobras de diversionismo por causa da degradação política interna, como acontece no momento atual, em que se misturam a prolongada indefinição governativa, a corrupção em alto nível do regime e a polêmica gestão da pandemia – por sinal, insolitamente elogiada no plano internacional.
Os dirigentes sionistas não duvidam, nem por um instante, de que podem utilizar o instrumento da guerra contra Gaza porque sabem que a chamada comunidade internacional o permite. As instâncias internacionais, com a ONU à frente, e as grandes potências, com destaque para os Estados Unidos e a União Europeia, permitem tudo a Israel sem assumir uma única medida para conter a barbárie. Há mais de 70 anos que a comunidade internacional vem adotando instrumentos legais para fazer respeitar os direitos inalienáveis do povo palestino e há mais de 70 anos que eles são interpretados como letra morta. Este comportamento é um incentivo à discricionariedade de Israel; e Israel se aproveita disso consoante às suas conveniências, sabendo que nada de mal lhe acontecerá e nenhuma reação irá além do apelo à «moderação» e a um «cessar-fogo entre as partes». Isto é, entre uma «parte» que pode tudo e uma «parte» que sofre tudo. Os foguetes do Hamas são irrelevantes quando comparados com o aparelho de guerra usado pelo regime sionista. A atuação da comunidade internacional na questão israelense-palestiniana é o exemplo mais flagrante da sua permanente utilização do sistema de pesos e medidas variáveis.
2) O mundo árabe isola cada vez mais a Palestina
Isolada pela comunidade internacional em geral, a Palestina conta cada vez menos com a solidariedade do chamado mundo árabe. Sob a égide da administração Trump nos Estados Unidos, países árabes como os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein juntaram-se recentemente ao Egito na normalização das relações com Israel, o que significa abandonar a defesa dos direitos dos palestinos. Acresce que existem, de fato, relações diplomáticas entre o Estado sionista e a Arábia Saudita, encimadas pela amizade e afinidades entre o primeiro-ministro Netanyahu e o herdeiro do trono wahabita, Mohammed Bin Salman. Uma aliança sobre os escombros da Palestina.
Na prática, a solidariedade árabe nunca desempenhou um papel que permitisse a criação de um Estado palestino, como determinam as normas e a doutrina estabelecidas pela comunidade internacional. O reconhecimento de Israel por cada vez mais países árabes, porém, reforça a ideia de que o problema palestino poderá ter outras «soluções» que não sejam a criação de um Estado palestino independente, viável e plenamente soberano.
Por outro lado, as relações entre países árabes e Israel transformam cada vez mais o Estado sionista numa entidade plenamente integrada no Oriente Médio, dando assim forma ao arranjo pretendido pelos Estados Unidos de uma região com duas potências dominantes – Israel e Arábia Saudita –, ambas viradas contra o Irã.
3. Um massacre com o Irã na mira
O novo pico da guerra de Israel contra Gaza não pode desligar-se dos permanentes esforços de Israel para tentar provocar uma guerra direta contra o Irã – à qual as administrações norte-americanas ainda têm resistido. A ofensiva supostamente «contra o Hamas» – grupo que Israel liga a Teerã, apesar de ser sunita e não xiita – acontece no preciso momento em que a administração Biden ainda não definiu se regressa ou não ao acordo nuclear 5+1 com o Irã. A mensagem israelense é direta: apoiando grupos ativos no Oriente Médio, como o Hezbollah no Líbano e na Síria e o Hamas na Palestina, o Irã terá de ser desencorajado de o fazer. E os acordos com Teerã têm de ser invalidados.
4. O papel dos Estados Unidos, União Europeia e OTAN
Por muito que possam vir a proclamar verbalmente o contrário, os Estados Unidos e a União Europeia estão por detrás de mais esta chacina israelense em Gaza. Se em relação a Washington não existe qualquer dúvida, tanto mais que o aparelho do Partido Democrata no poder é o que está mais sintonizado com os interesses dominantes do sionismo, poderão levantar-se reticências em relação ao papel da União Europeia.
O que não tem qualquer razão de ser. Apesar de algumas declarações de distanciamento, como foi o caso por ocasião da transferência da embaixada norte-americana para Jerusalém, a prática de Bruxelas e dos 27 é objetivamente favorável às atitudes assumidas por Israel, sejam elas quais forem: nada fazem para que seja concretizada a solução de dois Estados na Palestina, mantêm relações econômicas e políticas preferenciais com Israel e não assumem nas instâncias internacionais qualquer posição contra as atitudes militares extremas do sionismo. Antes pelo contrário: Israel é um parceiro ativo da OTAN – que rege a União Europeia do ponto de vista militar – e está mesmo envolvido nos exercícios em curso na Grécia e no Mar Egeu no quadro dos jogos de guerra «Defender Europe». Isto é, as forças armadas sionistas que participam em exercícios atlantistas são as mesmas que fazem jorrar o sangue de civis indefesos na Palestina, impedidos de escapar das suas bombas. Uma aliança que dizima vidas e direitos humanos.
5. A causa próxima: colonização e limpeza étnica
A mensagem de Israel com esta nova operação de barbárie é direta: nada fará parar o sionismo no seu objetivo de limpar e submeter etnicamente a Palestina e de impedir qualquer tentativa, por débil que seja, de implementar a solução de dois Estados.
O instrumento para concretizar esse objectivo é a colonização ininterrupta dos territórios da Cisjordânia – a par do cerco férreo a Gaza – de maneira a estender a ocupação, inviabilizar as possibilidades territoriais de instaurar um Estado e quebrar a resistência nacional palestina.
Nas últimas semanas o regime sionista expulsou mais famílias e arrasou as suas habitações no bairro de Sheik Jarrah, em Jerusalém Leste, no quadro da «limpeza» de todos os palestinos da cidade. Acontece que a ofensiva encontrou forte resistência da população atingida, sinal de que, apesar de isolados internacionalmente, os palestinos não estão dispostos a abdicar dos seus direitos. Uma vez que Gaza respondeu à agressão e da Faixa de Gaza foram disparados foguetes contra território israelense, a operação militar sionista assumiu as já conhecidas proporções de punição coletiva. Contando, para isso, com a habitual impunidade que lhe é assegurada pelas instâncias internacionais.
De fato, Israel usa o terrorismo para impor a lei do mais forte sabendo que encontrará pouca oposição e condenação nenhuma.
A nova fase da chacina contra Gaza e da limpeza étnica da Cisjordânia é, afinal, mais um passo no sentido de um desfecho que inviabilize de vez a solução de dois Estados na Palestina. Ao mesmo tempo que este princípio vai sendo invocado como um mantra cada vez mais vazio de significado pelos que insistem em se dizer defensores das leis internacionais e dos direitos humanos.
Enquanto isto, continuam a morrer inocentes indefesos e a Nakba, o holocausto palestino, prossegue, dia após dia, sob os olhos e a passividade do mundo. Até ao último dos palestinos.
José Goulão, exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril