Meteoro, ciência e senso comum

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Por G. Lessa

Em 2021, ampliou-se a perplexidade na opinião pública mundial diante da significativa força de movimentos contra a vacinação na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, região e país presumivelmente menos suscetíveis ao negacionismo por terem alto IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e sólidas instituições científicas. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), no dia 29/12/2021, o Reino Unido, a França e a Alemanha ainda têm 30% da população sem as duas doses de vacina contra a Covid-19, número suficiente para sobrecarregar o sistema de saúde diante do espalhamento da variante Ômicron. Os Estados Unidos, produtores de algumas das principais vacinas, estão em uma situação ainda pior, com uma taxa de apenas 60,36% de plenamente vacinados, atrás do Brasil (66,11%), país governado por um presidente negacionista, e de Cuba (84,05%), que conseguiu a façanha de ir para a vanguarda da cobertura vacinal criando o próprio imunizante no interior do infame bloqueio econômico norte-americano. A resposta para o aparente paradoxo de presenciarmos uma epidemia de estupidez quando a ciência se mostra cada vez mais avançada passa pelo entendimento da relação intrínseca entre ciência, senso comum e direção política, e impõe mediações históricas e epistemológicas incontornáveis que parecem nos levar muito para longe do assunto, mas são imprescindíveis.

O senso comum não é uma etapa provisória da mente dos indivíduos antes deles aprenderem o método científico na universidade, consiste em uma das estruturas permanentes do pensamento humano, que as pessoas utilizam para lidar com todas as áreas nas quais não são especialistas. Na moderna sociedade de classes, esta forma cotidiana de pensar não recua necessariamente diante dos avanços da ciência e do sistema de ensino. Por quê? O mais competente médico, dado o alto grau de especialização da ciência contemporânea e o caráter multifacetado da realidade, tenderá a restringir seu conhecimento científico à medicina e a usar o senso comum para pensar sobre áreas que lhe são desconhecidas, como a política, a física e a arte. Mesmo que o conhecimento do método científico diminua a dependência do especialista em relação ao senso comum, pois aumenta a rejeição a afirmações absurdas, este indivíduo não domina as teorias das outras áreas e, portanto, não consegue se posicionar nelas de modo essencialmente distinto das pessoas sem formação científica.

Portanto, a sociedade contemporânea formada por especialistas e fundada na divisão do trabalho é também uma sociedade de não especialistas, pois os indivíduos conhecem cientificamente apenas a própria área. Para percebermos bem as decorrências epistemológicas e políticas deste fato, precisamos observar a relação geral entre ciência e senso comum e analisar como ela se configura com singularidades em cada formação social, dependendo de algumas variáveis estruturais e políticas. De modo bastante breve, quase grosseiro, podemos dizer que o senso comum é marcado principalmente por um materialismo espontâneo e mecanicista, pela generalização exagerada dos nexos causais de situações particulares, pelo uso abusivo da intuição como ferramenta de entendimento das experiências e pela superficialidade das suas “teorias” explicativas. Por outro lado, é capaz de incorporar da maneira que lhe é própria, ou seja, sem mudar a sua estrutura, os resultados da ciência e possui grande capacidade de pressionar as instituições científicas por resultados práticos, sendo esta sua principal positividade.

A sociedade baseada na divisão do trabalho acrescenta singulares assimetrias na relação geral já complexa entre os pensamentos comum e científico. Em uma sociedade de classes e de disputas partidárias, as instituições de produção e difusão científica e cultural (incluindo a imprensa, as TVs e as redes sociais), públicas e privadas, tendem a ser hegemonizadas pelos grupos sociais dominantes, que buscam ter a adesão do senso comum aos resultados da ciência em geral, mas envolvem estes resultados com os valores específicos da própria visão de mundo. Assim, por exemplo, teorias científicas sobre economia ou psicologia tendem a ser misturadas com noções não científicas favoráveis ao status quo; de maneira mais acentuada nas ciências sociais, mas relacionadas aos valores, do que nas ciências da natureza ou na matemática, focadas em objetos mais “neutros”. Cria-se, então, um link bastante forte entre difusão científica/cultural, hegemonia ideológica, direção política e senso comum.

Em cada momento histórico, as disputas econômicas, ideológicas e pelo poder estatal afetam necessariamente os aspectos conjunturais da relação entre ciência e senso comum. Se a classe social mais poderosa e seus representantes políticos estiverem em momento progressista, como a burguesia e os liberais durante a Revolução Francesa, a atitude da ciência em relação ao senso comum será menos ideológica e muito mais baseada no “esclarecimento”, como ocorreu com a publicação da Enciclopédia iluminista. Entretanto, em outros momentos, especificidades das classes dominantes, por exemplo, quando procuram destruir os direitos sociais dos trabalhadores e legitimar essa atitude “cientificamente” enviando batalhões de economistas para afirmarem na TV que o bolo precisa primeiro crescer, podem gerar, principalmente se surgirem forças políticas alternativas obscurantistas, como o neofascismo, e a esquerda estiver fragilizada, um alheamento quase total entre discurso científico e pensamento cotidiano em amplos setores da população, gerando descrença na ciência e nas instituições de pesquisa.

Assim, quando forças políticas e universidades de origem conceitual racionalista usam o discurso científico e o prestígio acadêmico para mistificar aspectos decisivos da realidade social em benefício de programas econômicos e políticos excludentes da maioria da população (como a desmontagem dos sistemas públicos de saúde, previdência social e educação), ou seja, quando inoculam para beneficiar as classes proprietárias o vírus do obscurantismo na própria ciência, abrem a possibilidade de que o senso comum popular as rejeite movido por seu materialismo espontâneo, elemento positivo, contudo limitado, pois é capaz de se amalgamar com as teorias mais plausíveis, mas também com as superstições mais absurdas, e comece a buscar outras referências de autoridade discursiva, criando um momento de crise epistemológica e de hegemonia. Nesta conjuntura de instabilidade, pode ter a sorte de encontrar a esquerda defensora da ciência ou o azar de ser convencido pelo irracionalismo neofascista.

Uma trabalhadora norte-americana da região do metal pode, então, conceber as grandes universidades como inacessíveis aos seus filhos e, ao mesmo tempo, perceber que destas instituições partem várias justificativas sistemáticas de cortes de seus benefícios sociais. Então, para enfrentar o negacionismo existente no mundo, claramente fomentado pela extrema direita e presente em parte significativa das classes trabalhadoras e dos setores médios, o que se expressa, por exemplo, nos altos índices de rejeição às vacinas, nas vitórias de candidaturas neofascistas e na ascensão de “teorias” conspiratórias, é necessário defender os valores e padrões da ciência ao mesmo tempo em que se rejeita qualquer possibilidade do seu uso na legitimação de infames medidas neoliberais evidentemente contrárias à inclusão política e ao bem-estar da população. A miserável razão neoliberal preparou as condições objetivas e subjetivas para o espalhamento do irracionalismo neofascista. Para evitarmos o choque com o meteoro precisamos varrer do planeta a deformação da ciência nutrida pelo grande capital e o irracionalismo neofascista.