Pressionar Lula? A pequena burguesia e a questão do poder
Por Rômulo Caires para o jornal O Momento
A palavra de ordem “pressionar Lula” tem circulado em muitos setores progressistas, especialmente aqueles com alguma posição crítica em relação à hegemonia petista, mas que ainda enxergam no ex-presidente e provável candidato em 2022 um importante elo na acumulação de forças contra o bolsonarismo. Além de entenderem o bolsonarismo como um fenômeno eminentemente eleitoral e, portanto, passível de ser vencido nas urnas, tais setores constantemente ignoram os efeitos da continuidade da conciliação como combustível da contrarrevolução no Brasil. Neste breve escrito, pretendemos elucidar o conteúdo de classe presente na palavra de ordem “pressionar Lula” e a partir do resgate de alguns processos históricos latino-americanos e brasileiros demonstrar os limites desta orientação política como norteador da reorganização proletária em nosso país.
No início dos anos 60, a realidade brasileira foi marcada pela ascensão das lutas de massa a partir do movimento operário e popular. A principal referência política da classe trabalhadora naquele momento era o PCB, que tinha construído, a partir do conjunto de formulações que desaguaram em seu V Congresso (1960), uma estratégia que visava como objetivo fundamental a edificação de um capitalismo autônomo em relação ao sistema do imperialismo e o avanço do processo de democratização da sociedade brasileira. Os males decorrentes dos restos pré-capitalistas impediam a consolidação de um Estado moderno, com capacidade de acolher a participação política de grandes massas, como também condicionava uma estrutura econômica incapaz de responder às demandas de carestia da grande maioria da população brasileira. Naquele momento, o PCB e todo o conjunto de forças ao seu redor apostou alto na unidade nacional em torno de um programa de reformas que catapultasse a mobilização popular.
Surge assim a palavra de ordem “pressionar Jango” como uma tentativa de neutralizar as oscilações do governo e encaminhar sua orientação em direção às prometidas reformas de base. No centro de tal palavra de ordem estava a crença de um caminho gradual em direção ao projeto democrático-nacional, desestimulando agitações mais confrontativas à ordem, combatidas sistematicamente sob a rubrica do “sectarismo”, como também estimulando um grande pacto nacional a partir da união das forças ditas patrióticas. A pressão, ainda que advinda de movimentos de massas, terminava se limitando a influenciar as instituições da ordem, sem um horizonte claro de ruptura com o capitalismo brasileiro e seu sistema de dominação. Mesmo se propondo um partido revolucionário, o PCB não conseguiu se diferenciar dos operadores políticos da ordem burguesa e o seu legalismo cobrou muito caro na derrota de 1964.
Sabemos que o pós-64 abriu brecha para que o diagnóstico do capitalismo brasileiro pudesse se enriquecer, como também a situação de grande violência estatal impediu que a “via democrática ao socialismo” pudesse estar na ordem do dia. Apesar de dissidências do partido e outras organizações terem rompido com os meios da oposição institucional e enveredado pela luta armada, com influência grande da revolução chinesa e cubana, o diagnóstico do “capitalismo incompleto” continuou hegemônico na esquerda brasileira. Esse tipo de análise, mesmo apoiada por setores da luta armada, tem como necessidade imanente algum tipo de expectativa na capacidade progressista de setores da burguesia. Mais ainda, tem como perspectiva central uma etapa prévia a ser realizada de acúmulo de forças para poder suplantar a ordem estabelecida.
Os anos seguintes ao golpe burgo-militar no Brasil foram ainda de grandes acontecimentos na América Latina. A experiência da Unidade Popular no Chile trouxe novidades nas formas de luta e mobilização popular, sendo capaz tensionar o sistema de dominação capitalista chileno, porém ainda apostando fortemente numa via institucional ao socialismo. A contrarrevolução neste país demonstrou que o apego à legalidade por um dos lados em luta não impediu que as forças mais reacionárias pudessem se utilizar da violência bruta para impor a rearticulação radical da ordem econômico-política. Apesar das diferenças em relação ao processo brasileiro do pré-64, a experiência chilena do pré-73 possui uma similitude que pode ser generalizada aos países dependentes: a ausência de um amplo processo de consolidação democrática e de nacionalização da sociedade não pode ser resolvido a partir da recusa dos mecanismos de ruptura institucional, ou seja, da perspectiva revolucionária. Ruy Mauro Marini corretamente aponta como esse tipo de visão tem como conteúdo o horizonte de classe da pequena burguesia, aferrada à legalidade e quase sempre amedrontada diante dos setores mais radicais do proletariado. Tal política pequeno-burguesa não só foi ineficaz no avanço das conquistas populares como também deu origem aos próprios movimentos reacionários que subverteram a ordem no Brasil e no Chile.
Tais experiências aparentemente não foram suficientes para que as organizações advindas da rearticulação das lutas operárias e populares no fim dos anos 70 no Brasil recuassem diante de mais uma tentativa de propor uma estratégia gradualista. Mesmo partindo de uma crítica à estratégia nacional-democrática do PCB, o movimento que deu origem ao PT e à CUT e que hegemonizou a esquerda brasileiro nas décadas seguintes novamente insistiu em uma etapa “democrática” como via de acumulação de forças e superação dos resquícios “autoritários” da sociedade brasileira. A chegada ao governo somente ampliou o apego à ordem institucional em prol da secundarização da construção do poder popular. Qualquer horizonte crítico ao capitalismo foi suprimido em prol da “construção do Estado Democrático de Direito” e socialização de alguma participação política sem qualquer perspectiva real de socialização do poder. Como uma espécie de reencenação dos erros do pré-64, a centralidade da política pequeno-burguesa de unidade nacional desarmou o movimento operário e insuflou a contrarrevolução preventiva em nosso país. De alguma forma amplos setores sempre objetivaram “pressionar Lula” durante o seu governo e a guinada à esquerda constituía esperança sempre reatualizada.
Como foi desenvolvido em outro texto, a origem do bolsonarismo não pode ser tomada como uma mera “regressão” na conjuntura brasileira ou uma “anomalia”, como tem sido constantemente afirmado por Lula. A progressão do desenvolvimento capitalista no país e a impossibilidade de manutenção da conciliação de amplos setores da realidade nacional deu sustentação às perspectivas de agudização dos conflitos sociais propostos pela extrema-direita. Nessa direção, enquanto as forças conservadoras não se importam com a legalidade e operacionalizam a estrutura de violência do Estado burguês em prol de seus interesses, a esquerda hegemônica insiste, como se nota por seus diagnósticos, em se referenciarem na ordem institucional como via de saída da crise.
Nesse sentido, cabe a seguinte pergunta: se o bolsonarismo é efeito da crise do capitalismo e do sistema de dominação no Brasil, se as perspectivas de acumulação gradual de forças têm impacto na gênese e fortalecimento da extrema-direita brasileira, como podem setores da esquerda conclamarem que a saída para nossa grave situação está em um apoio acrítico no retorno de Lula a presidência da república? Mesmo que na palavra de ordem “pressionar Lula” possa ressoar um conteúdo crítico, os setores que a movimentam se fundamentam quase sempre numa perspectiva de “mal menor” e de pânico moral, que joga a responsabilidade pelo fortalecimento da extrema-direita justamente nas forças que não aceitam a passividade legalista como arma de luta. São estes mesmos setores que se utilizaram amplamente da retomada das ruas em maio de 2021 como palanque eleitoral de um futuro pleito que se quer terá ocorrência garantida, enfraquecendo assim as demandas de saída imediata de Bolsonaro e seus asseclas.
A ruptura com a estratégia democrático-popular de “via eleitoral contra o bolsonarismo” não é equivalente a recusar qualquer aliança tática com tais setores dentro da esquerda. A ruptura aqui é com o conteúdo de classe que tal estratégia insiste em materializar e que historicamente dá combustível para a reação se rearticular em ofensiva contra a classe trabalhadora a partir das brechas geradas pelas crises contínuas na sociabilidade capitalista. Uma esquerda combativa não pode esconder o seu programa e nem renunciar a rupturas para se afirmar enquanto alternativa de poder. A insistência em políticas focais, a política de alianças com setores golpistas, a incompreensão radical da função das Forças Armadas, a incapacidade de diagnosticar o atual momento da sociedade capitalista mundial pode gerar vitórias eleitorais, mas seguramente não serão suficientes para pôr freio às reatualizações da autocracia burguesa no Brasil.
Se furtar até da apresentação de um programa político radical no primeiro turno das eleições de 2022 levará apenas a confusão ideológica e impossibilidade de se diferenciar dos setores anti-populares da direita brasileira. A tal comentada suposta aliança entre Lula-Alckmin não pode ser vista apenas como um jogo pragmático de cálculo eleitoral, mas indica o estreitamento da capacidade do capitalismo brasileiro de manter um sistema político que não esteja rigorosamente limitado em seus anseios. Olhemos para o Peru: a aposta em um presidente referenciado pelos setores mais combativos da sociedade peruana garantiu a vitória contra a candidata de extrema-direita, mas a partir da política conciliatória de Castilho e sua incapacidade de enfrentar a ordem econômica do capital sua popularidade tem despencado, abrindo flancos para a possibilidade de impeachment. No caso brasileiro, podemos até ter algum respiro a partir de uma vitória de Lula, mas o pacto social-liberal não terá a mesma condição de se efetivar e pode rapidamente desmanchar a popularidade do governo. Nesse sentido, não cabe ilusões com a política pequeno-burguesa de acumulação de forças dentro da ordem. A esquerda latino-americana não pode se furtar em questionar radicalmente a legalidade burguesa em direção a construção de autênticos organismos de poder da classe trabalhadora. As eleições podem ter uma função tática neste processo, mas não pode ser jamais tomada como objetivo em si.