O Haiti precisa de médicos e engenheiros e não de soldados

Mário Maestri – A pobreza extrema do Haiti é uma construção histórica bicentenária, produto da incessante intervenção colonialista e imperialista, em boa parte devido precisamente a ter sido o Haiti, a ex-colônia francesa Saint-Domingues, a pérola da produção escravista açucareira, a primeira e única nação negreira onde os trabalhadores escravizados insurrecionados obtiveram a liberdade, em 1804. Isso, após derrotar expedições militares francesa, inglesa e espanhola. Ao se transformar no segundo Estado americano a obter a independência, após os Estados Unidos, e o primeiro a abolir a escravidão, o Haiti passou a ser temido, como exemplo para os cativos americanos. Apesar do cordão sanitário em que se envolveu a ilha, repercussões da revolução fizeram-se sentir no Brasil escravista. O Haiti foi objeto de bloqueio quase total, nos seus primeiros anos, pelas nações metropolitanas, e até mesmo americanas independentes, que chegaram a apoiar, na luta pela autonomia. Já em 1825, foi obrigado a pagar, sob pena de agressão militar, pesadíssima indenização à França, estimada em atuais 21 bilhões de dólares! Conheceu, no século 20, intervenções militares dos EUA, que, mesmo após a desocupação, em 1934, transformaram o país em semicolônia, sobretudo através das sinistras ditaduras dos Duvalier, Papa-Doc e seu filho Baby Doc.

P – É enorme a população haitiana vivendo em Porto Príncipe em favelas. Esse foi um dos fatores determinantes do alto número de vítimas do terremoto. Por que essa forte migração do campo para a cidade?

R – O regime histórico da propriedade da terra no Haiti foi a plantagem escravista. Com a revolução de 1804, houve importante divisão de latifúndios em lotes unifamiliares, que retomaram as tradições camponesas negro-africanas, ensejando independência alimentar. Isto não produzia excedentes mercantilizáveis, capazes de serem apropriados pelo neo-colonialismo, e exigidos para o pagamento da dívida da Independência. As intervenções imperialistas, com a colaboração das frágeis e corruptas elites negras e mulatas, desdobraram-se para metamorfosear a agricultura familiar-camponesa em mercantil.

Importantes levantes camponeses foram duramente reprimidos para reconstituir a grande propriedade. A expropriação da terra e reversão para produtos comerciais ensejou enorme migração urbana, nascida também da depredação do meio ambiente, com o desmatamento selvagem para produção de carvão vegetal, com o aumento do combustível doméstico, impostos pelo imperialismo e organismos internacionais, para a recuperação da economia. As enormes massas de miseráveis urbanos são vistas como mão de obra extremamente barata às indústrias maquiadoras que se estabeleceram no Haiti. As forças brasileiras e da ONU têm reprimido duramente as manifestações pelo aumento do ínfimo salário mínimo.

P – Seis anos após o golpe contra Aristide e a chegada da Minustah, a situação não melhorou? Por quê?

R – A intervenção militar franco-estadunidense, orquestrada pelo governo Bush, afastou o presidente constitucional Jean-Baptiste Aristides, em 29 de fevereiro de 2004. Ainda que ele tivesse rompido com suas antigas raízes populares e de esquerda, quando deposto, seu governo lutava por autonomia relativa e despertava a mobilização social. O que era inaceitável, em uma região próxima de Cuba e fundamental aos EUA. Devido ao envolvimento no Iraque, Bush 2º convocou o presidente Lula da Silva para capitanear a ocupação militar [e pagar seus custos, é claro], participando da organização do governo títere pró-imperialista. Essa ocupação deveria reorganizar a ilha segundo os interesses políticos do grande capital, sobretudo franco-estadunidense, com algumas migalhas para os brasileiros. O governo Lula da Silva aceitou o convite envenenado para fortalecer seu objetivo de ingressar, inferiorizado, sem direito, como membro do Conselho de Segurança Permanente da ONU. O grande sonho da diplomacia tupiniquim.

Foi também concessão à alta oficialidade das forças armadas brasileiras, com interesses econômicos, políticos e ideológicos na operação. Serviria também para treinar tropas na repressão urbana, em região socialmente parecida, social e etnicamente, a das favelas, sobretudo do Rio de Janeiro. Nos últimos seis anos, as tropas brasileiras comandaram a repressão, praticamente sem qualquer oposição por parte da imensa maioria dos partidos, sindicatos, organizações etc. ditos populares e de esquerda do Brasil. Destaque-se o silêncio do movimento negro organizado, atrelado ao governismo. A prova dos nove dessa intervenção se deu durante e, sobretudo, após essa terrível catástrofe, com a total ausência de Estado e de instituição haitianas autônomas, que jamais se pretendeu criar. Apenas o presidente René Preval funciona como testa de ferro ao despudorado intervencionismo internacional em nome da solidariedade que acaba de se concluir com a literal ocupação militar maciça dos EUA no país, que ignorou olimpicamente a ONU e o seu preposto brasileiro, que já não sabe mais onde se meter e o que fazer. Hillary acaba de propor que o parlamento e o presidente deem carta branca aos Estados Unidos nas operações!

P – Fala-se em “desconcentrar” a capital, incentivando o retorno da população aos povoados de origem. Seria isso uma boa ideia? Quais as possíveis consequências?

R – A operação humanitária tem se dado no contexto de enorme desprezo imperialista, prenhe de um imenso racismo cada vez menos implícito. Realidade que se registra na proposta de enviar parte da população urbana ao campo sem qualquer consulta à mesma! Destaque-se o claro corte polpotiano da proposta, e que parte dessa população não tem mais raízes agrárias. Não podemos esquecer, também, que não há campo em condições mínimas para incorporar os que aceitassem a solução – acesso à terra; recursos contra a erosão, falta de água; financiamento; ajuda durante os primeiros tempos; preços mínimos etc. Eram miseráveis urbanos, aos olhos do mundo seriam miseráveis rurais, mais discretamente. Após a terrível passagem do furacão Jeanne, em 2004, a única contribuição real da chamada comunidade internacional foi a reorganização da polícia, para reprimir os seguidores de Aristides, o que fizeram com enorme capacidade e muita dor e sangue.

P – Qual sua avaliação sobre a atuação que a comunidade internacional vem tendo em relação ao terremoto no Haiti, como, por exemplo, o anúncio da liberação de centenas de milhões de dólares?

R – O que vemos, até agora, passada uma semana do desastre, é desassistência, indiscutivelmente responsável por dezenas de milhares de mortos. A imensa maioria da população continua na total desassistência. Dizer que não era possível chegar aos necessitados por razões logísticas é piada. Se fosse insurreição popular desarmada, em dois dias haveria um soldado imperialista em cada esquina! No frigir dos ovos, muito se falou e pouco se fez. Até porque o objetivo era esse. Por além dos bem intencionados, há uma enorme indústria internacional, ligada estreitamente, ideológica, política e economicamente, ao imperialismo, de milhares de pequenas, médias e grandes ONGs, especializadas na assistência às catástrofes, que necessitam e se locupletam com tais sucessos para financiar seus enormes aparatos administrativos. Aparatos que mitigam o desemprego do Primeiro Mundo. Boa parte dos fundos postos à disposição do Haiti pelos organismos internacionais, como o FMI, o Banco Mundial etc. são empréstimos, que deverão ser pagos, sempre com o sangue e suor da população. E outra parte das doações midiatizadas serve para pagar as operações das respectivas nações…

P – Ao mesmo tempo, o Haiti possui uma dívida externa de mais de 1 bilhão de dólares. Não é contraditório?

R – Não, não é contraditório. É necessário, para manter a dependência. Veremos que, no final de tudo, essa dívida será ainda maior! Temos que lembrar que a catástrofe haitiana mantinha-se nos últimos anos, com parte da população do país comendo literalmente bolos de terra, sem que nada fosse realmente feito, a não ser controlar militarmente o país e reprimir a organização e a mobilização popular, sob o comando do Brasil. Víamos sempre belos soldados, belos tanques, belos fuzis, funcionários internacionais bem falantes, e melhor pagos, é claro, e uma enorme e profunda miséria popular. Se as grandes nações, e seus governos tão humanos, quiserem ajudar, que se anule, imediatamente, a dívida do país, que se encontra quase totalmente nas mãos do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, hoje em quase dois bilhões de dólares, e se conceda a autonomia que o país clama. Até agora, os Estados Unidos e a ONU não permitem o regresso do presidente constitucional deposto Jean-Baptiste Aristides.

P – Mesmo no Brasil e França criticam o controle excessivo dos EUA na ajuda humanitária, organizada pelo Pentágono e pela USAID. Denuncia-se que os estadunidenses priorizam o pouso de seus aviões, sobretudo militares, no aeroporto de Porto Príncipe, que controlam. Obama enviou 10 mil marines, o que causou preocupação sobre eventual ocupação militar.

R – Aristides, deposto em 1991 pelo governo estadunidense republicano, voltou ao governo, em 1994, devido à intervenção patrocinada pelos democratas, de novo no poder. A intervenção no Haiti, em 2002, foi novamente uma ação republicana, sob a presidência de Bush 2º, que contou com a oposição dos democratas, sobretudo da burguesia e intelectualidade negra desse partido, muito forte. Atualmente, no governo dos EUA encontram-se democratas negros. Se associamos isto à tradição imperialista, compreenderemos o enorme ativismo dos EUA em um viés notadamente militarista. Cuba manda médicos e remédios. Os EUA, porta-aviões e marines de fuzis embalados!

Não é certo ainda o que os democratas e Obama pretendem para o Haiti. Talvez sequer eles saibam precisamente o que fazer com o sofrido país, nos seus detalhes, devido ao caráter inesperado da crise. Há, porém, elementos claros. A ocupação militar do país, com tropas infinitamente maiores às da ONU, deixa claro que, nessa região, é o imperialismo dos EUA que manda. Um movimento que se associa ao retorno dos EUA à América Central e do Sul, expresso no golpe de Estado em Honduras, nas bases militares na Colômbia etc.. O governo Obama teme igualmente imigração maciça clandestina de haitianos para os EUA. Ficaria muito feio, sobretudo para um presidente negro, com raízes paternas africanas, prender em campos de concentração a população negra haitiana! É melhor que fiquem no país, morrendo de fome! Hoje, na região, para os EUA, o grande problema a ser resolvido é a Venezuela. Certamente teremos novas bases militares dos EUA no Haiti, região estratégica, e muito barata! Os EUA chegaram no Haiti para ficar, por muito tempo, no mínimo.

P – Já se começam a ouvir algumas vozes falando em reconstrução do Haiti. Quais os riscos que trazem as reconstruções depois de tragédias naturais, e o que o senhor acha que pode ocorrer no Haiti?

R – A grande imprensa do Brasil, com destaque para a Globo, retoma a proposta internacional sobre o Haiti como Estado falido. Ou seja, nação incapaz de se organizar e reger por si só, tendo que ser monitorada, para seu bem. Como está ocorrendo agora! Uma volta aos tempos dos protetorados. A reconstrução pode constituir balão de ensaio para gestão não nacional de territórios, por órgãos internacionais, não-estatais etc. Para tal, seria importante por fim à capital, na sua dimensão metropolitana, centro de expressão e pressão popular.

Não podemos esquecer que as grandes catástrofes são os melhores momentos para o grande capital realizar reorganizações estruturais de populações e recursos, devido à fragilidade das populações e enfraquecimento das suas organizações. Nuvens terríveis cobrem os horizontes do povo haitiano. Os trabalhadores e todos os homens e mulheres de bem do país devem se mobilizar contra isso. A primeira exigência deve ser a imediata e incondicional saída das tropas militares de ocupação brasileira do Haiti, substituídas por médicos, enfermeiros, engenheiros e agrônomos. Que a bandeira brasileira não siga servindo de mortalha a esse povo! Temos que ajudar a plantar a vida, não a morte, nesse país glorioso. Se o Nélson Jobim quiser voltar fantasiado ao país sofrido, que seja de médico!

24/1/2010

Fonte: ViaPolítica/Brasil De Fato/Mário Maestri

Mário Maestri, 61, colaborador permanente de ViaPolítica, é historiador da escravidão colonial e professor do PPGH da Universidade Passo Fundo (UPF).

E-mail: maestri@via-rs.net

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