A Revolução Brasileira como horizonte político concreto
Como assumir o papel histórico-político de vanguarda revolucionária? Esse é um dos grandes problemas de toda estratégia revolucionária.
Por Jones Manoel – membro do Comitê Central do PCB e colunista da Revista Opera
Uma das minhas frases preferidas de Leon Trótski é a que diz que as revoluções “são impossíveis, até que se tornem inevitáveis”. O jogo de palavras do comandante do Exército Vermelho, para além do lirismo, tem precisão teórica. A revolução, no cotidiano da ordem burguesa, aparece como “impossível”, uma não-possibilidade. Mas quando a avenida da revolução é aberta, e sua vitória é alcançada, se torna fácil olhar para cada lance, cada momento da política, como se fosse um passo mais para uma vitória certa do projeto revolucionário.
Desde quando nascemos, aprendemos, já no seio familiar, um princípio de realidade que poderia ser resumido na clássica frase de Hegel: o real é racional. O mundo à nossa volta é naturalizado, mostrado como o único possível. Não aprendemos na família, escola, nas primeiras relações de amizade e nos diversos espaços de socialização que a propriedade privada dos meios de produção deve ser questionada, por exemplo.
Desde sempre somos ensinados de que as relações constitutivas da ordem burguesa são naturais, espontâneas, fruto de uma suposta natureza humana ou então sequer pensamos nisso, vivemos no automático, adaptando-nos ao mundo como ele é, tentando sobreviver. Todo modo de produção cria ideologias que mostram seu mundo como o único possível e todas as possibilidades históricas (ou relações sociais superadas) como anomalias, desvios de rota do que é “certo”. Nesse ponto, o capitalismo não é bem uma novidade. No período feudal na Europa Ocidental, a Igreja católica dizia que a ordem estamental era uma criação de Deus, uma organização social por desígnio divino.
A grande novidade do capitalismo é a centralização e concentração da produção de subjetividades, memória e horizontes políticos. Ainda ficando no exemplo da ordem feudal na Europa Ocidental, a família de então camponesa formava não só o núcleo produtivo, como também era – junto com a Igreja Católica – o principal aparelho de socialização e interiorização das normas sociais da ordem dominante.
O sucesso das histórias de justiceiros das florestas que roubavam dos nobres ou a permanência da memória de revoltas camponesas, mesmo condenadas pela Igreja, davam-se porque a família mantinha um papel central na constituição de subjetividades. A família era, ao mesmo tempo, um aparelho reprodutor da ideologia dominante formulada e difundida pela Igreja Católica, mas também o espaço de uma contra-história que tinha força social para preservar padrões de subjetividade à revelia do interesse das classes dominantes.
Com o capitalismo, o processo de produção de subjetividades é centralizado e ganha uma dimensão de uniformização e uma escala de massas. As televisões, cinema, mercado fonográfico, aparelho escolar, igrejas, mercado literário e afins alcançam diariamente milhões de pessoas, oferecem ideias, organizam pensamentos, cultivam alguns aspectos de memória e apagam outros, direcionam a circulação de afetos, etc. O capitalismo, em contraste com o feudalismo, tem uma rede de socialização e vida social mais rica e complexa, ao passo que a capacidade da classe dominante de controlar a produção das subjetividades é infinitamente maior na ordem burguesa do que em outros modos de produção.
O controle da produção de subjetividades caminha na direção de mostrar como impossível, um ato de loucura, um delírio, a ideia de que seja possível construir uma outra forma de organização social, o comunismo. Em todos os âmbitos da vida – desde o mercado de trabalho, passando pela política eleitoral-partidária até relações de amizade/romance – há uma pressão permanente, uma coerção social, pela adequação à “normalidade”. O normal é uma gaiola fechada, um circuito de ferro, que não pode ser rompido.
Ao mesmo tempo, porém, o capitalismo convive mais ou menos bem com “ilhas de anticapitalismo”. É possível existir, com registro eleitoral, um partido que defenda a revolução, professores marxistas concursados nas universidades públicas, sindicatos e movimentos sociais que dizem defender o socialismo, etc. Enquanto esses debates estiveram isolados da vida das massas e forem absorvidos pelo sistema dominante, sua existência, além de não oferecer riscos, ajuda a legitimar a ordem burguesa, atuando como base real para a ilusão de que é possível construir um “socialismo democrático” – isto é, construir o socialismo ampliando paulatinamente a democracia burguesa no Estado burguês.
A famosa frase, popularizada no Brasil pela obra de Mark Fisher, de que é mais fácil “imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo” é um retrato do período histórico que vivemos, mas também uma dinâmica própria do capitalismo em todas as épocas, tendo maior ou menor força – a depender da famosa luta de classes. Em período passados, como na sequência da Revolução Russa e da vitória soviética na Segunda Guerra Mundial, milhões de seres humanos imaginavam o fim do capitalismo e lutavam por isso. Foi um período histórico em que os mecanismos tradicionais de coerção e consenso da ordem burguesa perderam relativo efeito e vimos transformações radicais nos quatro cantos do mundo.
Eventos como grandes crises econômicas, guerras, revoluções e revoltas generalizadas rompem a normalidade, o cotidiano, e retiram dos indivíduos, famílias, grupos e classes sociais a segurança de saber “como é o mundo”, abrindo possibilidades históricas de transformações ou regressões reacionárias. O capitalismo vive de crises e de ciclos econômicos e políticos. Nunca podemos apontar com precisão a duração do momento histórico de “estabilidade” e “normalidade”, mas é certo, assim como o sol vai nascer no dia seguinte, que esse momento sofrerá uma crise e não será eterno. Gostem ou não, a história nunca acaba e a contradição e a negatividade são inerentes à ordem burguesa.
Isso significa que basta esperar o momento de ruptura do cotidiano, o momento de crise, para colocar em cena uma ampliação do horizonte político, pautando a Revolução Brasileira como agenda central? Evidentemente que não; a resposta é mais complexa que isso. Como disse, é próprio das relações sociais burguesas e de todos os seus aparelhos ideológicos e coercitivos manter a imaginação, a subjetividade, o horizonte político, a memória histórica e a consciência da classe trabalhadora nos limites da ordem burguesa, dizendo que outro mundo não é possível. Sem uma contratendência, sem uma organização ou organizações revolucionárias com certo nível de penetração de massas, com capacidade de pautar setores da sociedade, essa hegemonia burguesa será tão sólida que os momentos de crise e quebra da normalidade vão ser apenas uma oportunidade para reformular em sentido regressivo ou reacionário o sistema político e econômico.
Aliado a isso, a própria crise não será vista como uma crise, mas um “novo normal”. Nesse momento, temos mais de 20 milhões de famílias brasileiras passando fome e metade dos lares brasileiros em insegurança alimentar. Os números são suficientes para afirmarmos que vivemos uma crise humanitária e de fome, mas não vivenciamos o clima de crise por não termos, nesse momento, organizações revolucionárias com suficiente força para elevar essa realidade a um dado de percepção política e subjetividade generalizada.
Outro problema pode ser acrescentado. Nem toda crise econômica e política se transforma em crise revolucionária – ou crise orgânica, como diria Antonio Gramsci. O comunista italiano, inclusive, é um dos grandes responsáveis por mostrar que a crise do sistema pode ser uma oportunidade de criar uma crise revolucionária, mas não necessariamente. A mediação entre a possibilidade e a sua realização é feita pela vanguarda revolucionária que, para Antonio Gramsci, deveria estar organizada na forma de um partido revolucionário.
Nesse ponto, chegamos no elemento central de nossa reflexão. Existe um fator político essencial que deve atuar como contratendência à ordem burguesa: elevar a radicalidade das lutas populares cotidianas, produzir e difundir uma teoria e cultura revolucionária, tensionar ao máximo a ordem burguesa e ser sujeito ativo na geração de uma crise política, criar capacidade mínima para em momentos necessários – como numa revolta de massas – usar táticas de ação pouco comuns (como ações armadas ou conduzir uma greve geral à revelia da repressão), ser fator de desestruturação e paralisia do Estado burguês em momentos decisivos, formar desde já os quadros políticos e organizativos que vão construir o futuro Estado proletário.
Esse fator político é a vanguarda revolucionária organizada em um Partido Revolucionário. Aqui o conceito de vanguarda não é entendido como um pequeno grupo iluminado, detentor da verdade e que, como disse um profeta, traz a “boa nova”. Vanguarda revolucionária é um conceito que indica a organização de uma parte da classe trabalhadora e outros estratos sociais para ação política revolucionária, fator ativo e subjetivo de alargamento do horizonte político, sujeito da criação de uma crise revolucionária e decisivo para vitória do proletariado. Ninguém – nenhum grupo ou organização – pode-se afirmar a vanguarda do proletariado. O papel histórico de vanguarda é provado na prática, no solo concreto da luta de classes, e pode assumir diversas formas organizativas.
Na Revolução Russa, o Partido Bolchevique cumpriu o papel de vanguarda revolucionária atuando para aprofundar e levar até o fim a revolução que começou em fevereiro, tendo papel central na vitória sobre a contrarrevolução (levante de Kornilov e Guerra Civil), oferecendo os principais quadros para manter o poder soviético e dirigindo o conjunto dos explorados e oprimidos.
Na Revolução Coreana, Chinesa e Vietnamita, guardadas todas as suas diferenças, esse papel de vanguarda revolucionária se expressou nas frentes de resistência nacional e anticolonial com hegemonia dos Partidos Comunistas. Nessas três revoluções, a vanguarda revolucionária também teve um papel central como organizadora do dispositivo militar revolucionário. Na Revolução Cubana, como sabemos, a guerrilha liderada por Fidel Castro cumpriu o papel histórico de vanguarda, unificando as lutas, potencializando a radicalidade, acelerando a crise política do regime, colocando em tela a conquista do poder.
Também tivemos experiências históricas onde a ausência de um papel de vanguarda revolucionária – ou a incapacidade política da vanguarda constituída – foram fundamentais para grandes derrotas da classe trabalhadora. O Brasil em 1964 é um belo exemplo da ausência de uma vanguarda revolucionária constituída e atuando como tal e o Chile da Unidade Popular de Salvador Allende é um exemplo da situação onde uma vanguarda revolucionária é constituída na luta, mas falha politicamente no momento decisivo de enfrentar a contrarrevolução.
Nesse ponto, temos outro problema: na prática, a vanguarda revolucionária é construída numa situação não-revolucionária, no cotidiano da ordem burguesa; contudo, o papel de vanguarda revolucionária só é confirmado numa situação revolucionária, no auge do acirramento da luta de classes. Mas dificilmente chegaremos a essa situação sem a atuação daquelas forças políticas – ou força política, no singular – que podem vir a ser a vanguarda revolucionária. Parece uma tautologia ou um jogo de palavras confuso? Pode parecer, mas é um problema real. Nas palavras do historiador Eric Hobsbawm:
“O problema das esquerdas revolucionárias em sociedades estáveis não é que suas oportunidades jamais se apresentaram, mas que as condições normais em que ela deve operar impedem-na de desenvolver movimentos tendentes a aproveitar os raros momentos em que é chamada a agir como revolucionária.”
Como, no cotidiano da ordem burguesa e com todas as suas pressões para manter-se em um horizonte político burguês, ser sujeito ativo na criação de uma crise revolucionária e estar capacitado para aproveitar esse momento histórico que, como mostra a experiência, não acontece sempre ou com regularidade? Em suma, como assumir o papel histórico-político de vanguarda revolucionária? Esse é um dos grandes problemas de toda estratégia revolucionária.
Nesse texto, apresentamos o problema. Na próxima reflexão vamos procurar debatê-lo em traços gerais nas condições brasileiras. A pergunta que fica é: como criar a vanguarda da Revolução Brasileira?