50 anos do assassinato de Amílcar Cabral

Sofia Lisboa

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Um dos fundadores do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), em 1956, Amílcar Cabral estudava muitos anos antes os problemas respeitantes ao colonialismo português e participou em diversas atividades na defesa da emancipação dos povos coloniais.

Da necessidade de se criar o PAIGC, diz-nos Amílcar Cabral: «Na África não houve tais fenômenos que engendrassem partidos. Podemos pois dizer que trouxemos qualquer coisa de estranho introduzindo na nossa terra um partido, mas isto era necessário, assim como é necessária a charrua que não existe na nossa terra ou o trator que não resultou do desenvolvimento econômico do nosso país.»1

Amílcar Cabral e Aristides Pereira foram apresentados por Sofia Pomba Guerra, farmacêutica e militante do PCP que cumpria degredo em Bissau.2 Era em sua casa que estes dois e muitos outros cabo-verdianos se encontravam para ouvir as emissões em português do serviço da Rádio Moscou, ou ainda para ler romances e jornais proibidos, como o Avante!, órgão central do PCP.3 E nestes encontros desenvolveram paulatinamente o seu método de conspiração: formavam pequenos grupos para discutir diversos assuntos culturais, e iam destacando os elementos considerados mais conscientes para com eles desenvolver posteriormente um trabalho político mais arriscado.

Amílcar Cabral, nascido na Guiné-Bissau em 12 de setembro de 1924, de pais cabo-verdianos, tinha passado a infância em São Vicente e viria a prosseguir os seus estudos no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, onde chegou em 1945. Na altura em que se iniciou a Guerra Colonial, Cabral tinha um conhecimento sobre a geografia, a economia e a sociologia dos povos do seu país comparativamente superior ao de muitos nacionalistas em fases similares noutras regiões. Uma das razões foi o fato de ter realizado o primeiro recenseamento agrícola do território. Este trabalho lhe daria a oportunidade de conhecer a estrutura agrária da Guiné profunda, pondo-o em contato direto com as pessoas mais influentes dos vários grupos étnicos.4

É na sequência desse conhecimento que o PAIGC fixaria como objetivos políticos do partido a liquidação da dominação colonial portuguesa, a criação das bases indispensáveis para a construção de uma vida nova para o povo da Guiné e Cabo Verde, a construção da paz, do bem-estar e do progresso contínuo. Definiu-se como partido democrático, progressista, anticolonialista e anti-imperialista. Estas posições são reveladoras, indiscutivelmente, do caráter antifascista do PAIGC e do movimento de emancipação que este dirigia. Num apelo aos portugueses feito num artigo na revista Partisans em 1962, Amílcar Cabral explicava como encaravam o regime fascista português: «É preciso reafirmar claramente que, embora sendo contra toda a espécie de fascismo, os nossos povos não lutam especificamente contra o fascismo português: nós lutamos contra o colonialismo português. A destruição do fascismo em Portugal deverá ser obra do próprio povo português, a destruição do colonialismo português será obra dos nossos próprios povos.»5 A realidade de outras guerras coloniais, nomeadamente a guerra na Argélia, não podia fazê-lo chegar a outra conclusão. Os regimes democráticos das potências ocidentais estavam longe de garantir por princípio a independência das respectivas colônias.

Tendo como prioridade política a libertação do território do domínio colonial português, Cabral deixaria pistas em vários momentos sobre o tipo de sociedade que deveria ser construída quando alcançado esse objetivo, que refletiam a sua proximidade a convicções socialistas: «Na base da vida do nosso Partido, queremos destruir toda a possibilidade de aqueles que libertam a terra ou outros, que venham abusar do nosso povo amanhã. [sic] O nosso objetivo não pode ser o de ir tomar conta do palácio do governador para fazer na nossa terra o que aquele governador queria fazer.»6 Basil Davidson, citando Cabral, dá-nos mais um elemento sobre a posição deste em relação ao caminho a seguir: [construir uma nova sociedade], «nestas circunstâncias será necessariamente por meios socialistas, pois só existem dois caminhos abertos para uma nação se tornar independente agora: voltar à dominação imperialista (via neocolonialismo, capitalismo, capitalismo de Estado) ou mover-se rumo ao socialismo.»7

A partir de 1961, o partido decidiu instalar o seu secretariado-geral em Conacri, capital da República da Guiné. Entre outras ações, praticou uma política de estreitas relações internacionais com a Argélia e com a República Árabe Unida, inscrevendo-se num movimento mais amplo do que apenas o da luta contra o colonialismo português.

Também a aliança com os países socialistas era estreita e a contribuição em meios técnicos, humanos e em apoio para a formação nos seus países foi significativa. O discurso em relação ao sistema socialista era claro: «Como toda a gente sabe, os países socialistas têm uma clara posição anticolonialista e anti-imperialista. Tal não acontece por acaso. Os partidos políticos que dirigiram a conquista do poder pelo povo nos países que hoje são socialistas eram partidos comunistas, cuja ideologia consistia na defesa intransigente dos interesses das massas exploradas – operários, camponeses e outros trabalhadores explorados – e que preconizavam a luta política, através da organização dessas massas exploradas, para acabar definitivamente com a sociedade capitalista e, em consequência, com a exploração do homem pelo homem.»8 Mas a política de não-alinhamento era considerada fundamental para alargar ao máximo uma base de apoio internacional que contribuísse para a conquista da independência: «É esta política que é a mais conveniente aos interesses dos nossos povos na etapa atual da nossa história. Estamos convencidos disso. Mas, para nós, não-alinhamento não quer dizer voltar as costas aos problemas fundamentais da humanidade, à justiça. Não-alinhamento para nós é não se comprometer com blocos, não nos alinharmos pelas decisões dos outros.»9

A escolha pela luta armada em grande medida dependeria dessa rede de solidariedade internacional, e a decisão só seria tomada quando se considerassem esgotadas as tentativas de ação legal dos grupos nacionalistas, que se chocavam sempre com a barreira levantada pelas autoridades colonialistas portuguesas. É só após o massacre dos marinheiros do cais de Pidjiguiti, que exigiam direitos laborais, em 3 de agosto de 1959, que o partido declararia a luta armada como única via possível para a independência. Os acontecimentos convenceram Cabral da impossibilidade de desenvolver uma contestação baseada em métodos pacíficos.

Numa ação de formação de quadros em 1965, Cabral apresentou a luta armada como o prolongamento da luta política, como último recurso: «O povo em armas. Essa deve ser a característica fundamental de uma resistência armada, de um povo que luta pela sua liberdade. (…) Nunca é demais repetirmos que o objetivo fundamental da nossa resistência armada é realizar aquilo que não conseguimos só com política.»10

Mas não podemos desvalorizar o peso e a eficácia da ação diplomática levada a cabo por Amílcar Cabral durante os anos da Guerra Colonial, que seriam também os últimos anos da sua vida. O seu tempo era passado entre Conacri e as múltiplas viagens onde dinamizava conferências de imprensa, dava entrevistas sobre a situação da Guiné e realizava reuniões para motivar o apoio de outros países e instituições.

Em junho de 1962, Cabral representou pela primeira vez o PAIGC perante a ONU, através de um documento intitulado «O povo da Guiné perante as Nações Unidas».

Em janeiro de 1966, foi em Havana, no decorrer da Tricontinental – Organização de Solidariedade dos Povos da Ásia, África e América Latina, que fez a intervenção considerada como uma contribuição teórica original no plano histórico-filosófico, desenvolvendo a análise da marcha da luta dos movimentos de libertação nacional.

«Se é verdade que uma revolução pode falhar mesmo alimentada por teorias perfeitamente concebidas, ainda ninguém realizou uma revolução vitoriosa sem teoria revolucionária. Os que afirmam – e com razão – que a força motora da história é a luta de classes estariam certamente de acordo para rever esta afirmação, a fim de a precisar e de lhe dar um campo de aplicação ainda mais vasto, se conhecessem mais profundamente as características essenciais de certos povos colonizados, quer dizer dominados pelo imperialismo. Com efeito, na evolução geral da humanidade e de cada um dos povos que a compõem, as classes não aparecem nem como fenômeno generalizado e simultâneo na totalidade desses grupos, nem como um todo acabado, perfeito, uniforme e espontâneo. A definição de classes, no seio de um ou vários grupos humanos, é uma consequência fundamental do desenvolvimento progressivo das forças produtivas e das características da distribuição das riquezas produzidas por este grupo ou confiscadas a outros grupos. (…) Tudo isto permite levantar a seguinte questão: será que a história só começa a partir do momento em que se desenvolve o fenômeno «classe» e por consequência a luta de classes?

Responder afirmativamente seria situar fora da história todo o período de vida dos grupos humanos que vai da descoberta da caça, e posteriormente da agricultura nômade e sedentária, até a criação dos rebanhos e a apropriação privada da terra. Seria então também – o que nos recusamos a aceitar – considerar que muitos grupos humanos da África, da Ásia e da América Latina, viviam sem história, no momento em que foram submetidos ao jugo do imperialismo. (…) Admitimos sem custo que este fator da história de cada grupo humano é o modo de produção – o nível das forças produtivas e o regime de propriedade – que caracteriza esse agrupamento. Mais ainda, como se viu, a definição de classe e a luta de classes são elas próprias o efeito do desenvolvimento das forças produtivas conjugadas com o regime de propriedade dos meios de produção.

Parece-nos pois correto concluir que o nível das forças produtivas, elemento determinante essencial do conteúdo e da fórmula da luta de classes, é a verdadeira e permanente força motora da história. Se aceitarmos esta conclusão, desfazem-se as dúvidas que perturbaram o nosso espírito. Porque, se de um lado verificamos que está garantida a existência da história antes da luta de classes e evitamos assim reduzir alguns grupos humanos dos nossos países – e talvez do nosso continente – à triste condição de povo sem história; por outro lado, pomos a claro a continuidade da história, mesmo após o desaparecimento da luta de classes ou das próprias classes. (…) A eternidade não é deste mundo, mas o homem sobreviverá às classes e continuará a produzir e a fazer a história, já que não se pode libertar do fardo das suas necessidades, das suas mãos e do seu cérebro, que estão na base do desenvolvimento das forças produtivas».11

Em fevereiro de 1972, deslocou-se a Addis Abeba para prestar depoimento perante a 163.ª Sessão do Conselho de Segurança. No final da sua intervenção, Cabral convidou o organismo a enviar uma comissão ao interior da Guiné para confirmar a existência das zonas já libertadas pelo PAIGC. A visita teve lugar de 18 de março a 9 de abril de 1972. Por razões de segurança, os observadores foram forçados a ficar mais tempo no terreno, o que constituiria uma importante vitória política.

Este esforço diplomático foi, desta forma, acompanhado da criação de uma organização econômica e política nas zonas libertadas. Toda a orientação econômica do PAIGC tinha por preocupação a gradual melhoria do nível de vida das populações destas zonas. Aumentaram-se as produções e diversificaram-se as culturas, criaram-se os Armazéns do Povo para fornecer à população artigos de primeira necessidade. O governo das regiões libertadas efetuou-se através de vários órgãos, desde o Congresso, ao Conselho Superior da Luta, o Comitê Executivo da Luta, o Comitê Nacional das regiões libertadas. O trabalho político continuou intimamente ligado à ação militar, já que correspondia às condições de clandestinidade a que o partido era forçado.

O reconhecimento internacional da independência da Guiné deveria seguir o processo de eleição da primeira Assembleia Nacional Popular nas zonas libertadas, que se realizaria por sufrágio direto e universal, dando prova do controle de território em certas zonas do país: o PAIGC mostrava uma máquina administrativa capaz de realizar um processo eleitoral em tempo de guerra, num território delimitado e com uma população específica. A independência foi proclamada unilateralmente em 24 de setembro de 1973 e consagrada em 10 de setembro de 1974, após a revolução de 25 de abril em Portugal. Amílcar Cabral já não assistiria ao desfecho da luta à qual tinha dedicado a sua vida, tendo sido assassinado em 20 de janeiro de 1973.

Estas são algumas notas de um percurso singular e que, por si só, impõe respeito. Pela inteligência com que articulou politicamente as posições de um povo em luta pela sua libertação, sem abrir mão de princípios, mas sem multiplicar trincheiras que poderiam ser contraproducentes, Amílcar Cabral foi capaz de propor, junto das reivindicações de uma luta anticolonial, um projeto de país que se transformaria para muito além da independência formal.

1. s.a., Manual Político, p. 10
2. PEREIRA, Aristides, Uma Luta, um Partido, dois Países, Guiné-Bissau e Cabo Verde, p.85
3. TOMÁS, António, O Fazedor de Utopias, uma biografia de Amílcar Cabral, p. 88
4. SOUSA, Julião Soares, Os movimentos unitários anti-colonialistas (1954-1960), o contributo de Amílcar Cabral in Estudos do século XX, p.336
5. CABRAL, Amílcar, Textos políticos de Amílcar Cabral, p. 64 «Se a queda do fascismo em Portugal poderia não conduzir ao fim do colonialismo – hipótese aliás admitida por alguns dos líderes da oposição portuguesa – nós estamos certos de que a liquidação do colonialismo português arrastará a destruição do fascismo em Portugal. Através da nossa luta de libertação, nós contribuímos eficazmente para a queda do fascismo português e damos ao povo de Portugal a melhor prova da nossa solidariedade.»
6. CABRAL, Amílcar, Análise dos tipos de resistência: resistência política, pp. 3-4
7. DAVIDSON, Basil, The Liberation of Guiné, aspects of an African Revolution, p.78
8. s.a., Manual Político, pp. 65-66.
9. idem, p. 96 (intervenção na 2.ª Conferência da C.O.N.C.P. em 1965).
10. CABRAL, Amílcar, Análise dos tipos de resistência: resistência armada, pp. 16, 23.
11. CABRAL, Amílcar, Textos políticos de Amílcar Cabral, pp. 35-39