Desafios organizativos do trabalho em saúde

Por Rômulo Caires – militante do PCB na Bahia

Jornal O MOMENTO – PCB da Bahia

Após a vitória de Lula no pleito eleitoral de 2022 e a efetivação de sua equipe ministerial, há naturalmente um incremento nos ânimos populares e otimismo quanto ao futuro do país. Com a nova ministra da saúde, Nísia Trindade, por exemplo, há promessas de uma virada completa nas políticas de saúde anteriores, saindo do chamado “negacionismo” em direção a propostas afins à Reforma Sanitária. Sem avançar na análise de um ministério que mal começou, gostaríamos de trazer ao debate um ponto que parece escapar àqueles que não enxergam a luta para além da ocupação institucional: os desafios organizativos das trabalhadoras e trabalhadores da saúde na atual conjuntura.

Colocar a centralidade da análise nos desafios organizativos da classe trabalhadora na saúde requer breve preâmbulo: como pudemos desenvolver em outro texto, o complexo da saúde contemporâneo integra em si o conjunto das demandas sociais que devem ser amparadas pelo Estado e/ou oferecidas pelo mercado, e o mundo do trabalho que garante que tais demandas sejam atendidas. Apesar da vigência do SUS, no Brasil há coexistência entre sistemas de saúde público e privado, com crescente predominância do segundo sobre o primeiro.

A continuidade do capitalismo e suas formas de exploração subordinam o bem-estar social ao lucro privado. Nesse sentido, além do trabalho em saúde se concentrar cada vez mais no setor privado, aumentam também os modelos precarizados de contratação. Mesmo a categoria médica, que representa os maiores salários no setor saúde, vem sofrendo com o processo de terceirização e aumento das taxas de exploração. A categoria da enfermagem, que possui os maiores contingentes da força de trabalho no setor saúde, além dos baixos salários, também sofre como a maior vítima da pandemia por covid-19.

Diante do avanço do capital e seus processos crescentes de crise e destruição, diante do esgarçamento dos limites integrativos do capitalismo brasileiro, seria necessária a radicalização da esquerda no geral e da classe trabalhadora da saúde em particular. A pandemia gerou enorme desgaste na força de trabalho sem quase nenhuma contrapartida do governo anterior, o que poderia desencadear o aumento das insatisfações e contestações ao atual ordenamento. Tal insatisfação de fato esteve presente, com seu auge na luta das enfermeiras pela efetivação do piso salarial. Por que então não assistimos a uma continuidade dessas lutas, por que ela não se transformou em grande movimento de massas?

Para ensaiar uma resposta a esta complexa questão, devemos voltar nossa atenção à direção hegemônica das lutas na saúde nas últimas décadas. A Reforma Sanitária brasileira foi um importante movimento que aglutinou múltiplas forças, desde movimentos comunitários, usuários de saúde, até trabalhadores da saúde sindicalizados e trabalhadores independentes, contando também com a presença de importantes setores da intelectualidade. O fio condutor que unificava tais forças era a proposta de democratização da sociedade brasileira a partir principalmente da ocupação de posições dentro do Estado e da ampliação de reformas que reestruturassem o sistema de saúde no país.

Foi justamente no setor saúde que se evidenciou, com maior intensidade, a proposta de via eleitoral ao socialismo, com todo o conjunto tático-estratégico que tal via impõe na vida política brasileira. A Reforma Sanitária solidificou o imaginário sobre a possibilidade de uma progressiva ampliação do direito à saúde a partir da pressão exercida de baixo para cima e do incremento da “participação” política das massas a partir de conselhos e instrumentos regulatórios do Estado. Há, por essa via, uma predominância do entendimento do setor saúde pela via “distributiva” ou, para parafrasear Engels, há uma predominância da concepção de mundo jurídica.

Isso quer dizer que o foco das lutas não estava nos conflitos de classe existentes no mundo da produção, mas no incremento da “participação popular” nas decisões governamentais. Essa perspectiva, ao fim e ao cabo, desarmou a classe trabalhadora, diminuiu seus ímpetos de luta e deu livre passe para que as políticas neoliberais se implementassem com toda a sua força. O resultado de décadas de conciliação de classes e reformismo pode ser percebido na desestruturação crescente do trabalho em saúde, que foi um dos primeiros setores a sofrer os efeitos da reforma trabalhista e das terceirizações.

Nesse sentido, urge a estruturação de uma crítica ao conjunto de concepções e práticas econômico-políticas presentes na Reforma Sanitária, não como uma via de recusar seus avanços, mas na perspectiva de entender o seu esgotamento estratégico. Reconectar as lutas no setor saúde ao âmbito da luta de classes e na perspectiva da totalidade deverá passar por ao menos três momentos fundamentais: atualização de uma política sindical classista de acordo com os novos marcos do capitalismo mundial; formulação de uma práxis no campo comunitário que não se limite à ocupação de posições dentro do Estado burguês; reestruturação radical das lutas antimanicomiais. Nas próximas edições, abordaremos cada um desses momentos de forma mais detalhada.