Povo negro sofrerá mais com novo Teto de Gastos
Paula Ana, artista e licenciada em História,
Militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira – Bahia e do PCB – Bahia
PARTE 1
Austeridade é um termo meio pomposo que diz respeito à retirada ou diminuição da obrigação do Estado em garantir o básico do básico para a sobrevivência do povo trabalhador, assegurando o lucro dos capitalistas que abocanham parte do que é produzido por nós, quando, através do pagamento de títulos da dívida pública, o Estado desvia nossa grana pra eles.
Em 2016, estive junto de milhares de camaradas e lutadores traçando planos e realizando ações para impedir a aprovação da PEC do fim do mundo (EC 95), aquela que, à revelia da vontade do povo, foi aprovada e implementada, congelando os investimentos em saúde e educação por 20 anos. Realizamos estudos coletivos, panfletagens agitativas, atos de rua, os estudantes ocuparam as escolas e universidades, levamos gás, bomba e cavalaria no ato em Brasília, fomos firmes na busca de convencer companheiros da necessidade de uma Greve Geral.
Bom, de lá até aqui, muitas águas rolaram, crises se aprofundaram, contradições ardem como quem joga sal em feridas abertas, nosso povo adoece, mais de 700 mil mortos pela COVID-19, e mais uma pá morrendo diariamente por má alimentação, estresse, violência e falta de assistência, de qualidade de vida e saúde integral, que resultam em diabetes, infartos, tumores, depressão e muito mais. Então, se desde muito tempo nossas vidas já não importam tanto – já que o que vale em nós é o trabalho que nos exploram – o abraço forte do Estado brasileiro com o neoliberalismo agudiza nossa descartabilidade, como corpos escuros à serviço da riqueza deles.
Nossa intenção em evitar a PEC do fim do mundo era o medo de chegarmos ao ponto em que estamos. Sabe-se que 2 entre 3 pessoas no Brasil dependem do Sistema Único de Saúde, que mais de 80% dos usuários do SUS se autodeclaram negros, e inúmeras pesquisas mostram que a população negra é a que mais sofre no Brasil com doenças evitáveis, com hipertensão e diabetes tipo 2, além de também liderarmos rankings de violência obstétrica; a que mais sofre as consequências da criminalização do aborto, sem falar que, durante a pandemia, negros tinham 1,5 vezes mais chances de morrer de COVID.
Aqui, fico apenas com o exemplo de mais uma arma de genocídio, que é o sucateamento da saúde pública. Nem parece que vivemos em 2023, no século da tecnologia, quando olhamos os problemas do lado de cá da ponte. A verdade é que nossos mais velhos e mais novos estão morrendo de forma banal, por problemas já superados ou melhor cuidados do lado de lá há muito tempo. Vejamos: com a EC 95/2016, no período de 2018 a 2022, foram retirados cerca de R$ 37 bilhões do SUS. O tanto de coisa que daria pra fazer com essa grana, hein? Tanta gente morrendo esperando na regulação…
Enfim, essa longa introdução focando na saúde é só uma amostra do racismo brasileiro, toda essa contenção em investimentos públicos é a assinatura da nossa sentença. Como afirma Silvio de Almeida: antirracismo não combina com austeridade, nosso povo continua sem acessar coisas básicas. E a coisa piora: a política de “saúde fiscal” (um nome bonito para saúde do bolso dos super ricos) também impera no Governo Lula, vide a nova proposta de Teto de Gastos apresentada por Haddad e, agora, em pauta no Congresso. O que ela é?
Eles dizem que essa proposta é “menos pior” do que a PEC do fim do mundo. Jones Manoel ironizou em um dos seus vídeos perguntando se realmente as pessoas estão comemorando algo que se diz menos pior do que o fim do mundo. E é verdade… tem uma parte da esquerda que troca até o paraíso cristão por qualquer coisa com o selo “menos pior”.
O que Haddad apresentou já preocupou: segundo sua proposta, com a vigência do Novo Teto de Gastos (ou Arcabouço Fiscal), o investimento público poderá crescer no máximo 2,5% e no mínimo 0,6%, mantendo-se abaixo da arrecadação de impostos. E além disso, caso um setor – como educação, por exemplo – tiver maior necessidade de recursos, será retirado de outro setor para compensar, lesando, por exemplo, os recursos para a assistência social.
Claudio Cajado (PP), relator do tema na Câmara dos Deputados, incrementou a desgraça incluindo no arcabouço os recursos do pagamento do piso das enfermeiras e do FUNDEB (conquistas recentes dos movimentos sociais da saúde e educação), e inventou um rolê chamado “gatilhos”, que nada mais é do que punição ao Executivo caso este descumpra a meta imposta (gastos do governo terão que ser menores que no ano anterior); nas ideias de punição, temos a proibição da criação de auxílios e da realização de concursos.
O que mais me pegou ao ler algumas coisas sobre essa proposta foi justamente ter a noção do migué que eles soltam dizendo que, para conter o que chamam de rombo nas contas públicas, é imprescindível encurralar o povo, tirar recursos daquilo que é mais essencial para a sobrevivência da maioria; quando na real nem se discute o “orçamento dos 1%”, que é justamente aquele orçamento utilizado para pagamento da dívida pública (leiam-se rentistas super ricos), sob a forma de juros. E essa grana nem passa pelo crivo público, já que quem manda nisso é o Banco Central.
O presidente do Banco Central já deixou seu elogio ao “regime fiscal sustentável” enquanto reiterou que nos juros ninguém mexe. Ele não garante a queda dos juros no país com a maior taxa de juros do mundo, onde quem ganha muito, paga pouco (ou nem paga!) e quem ganha quase nada… enfim, aquela velha história. A cada aumento de 1 ponto percentual na taxa, o Estado arca com cerca de 70 bilhões a mais de juros. Isso sai do nosso bolso, viu. Não sou economista e odeio fazer contas, mas essa com certeza não bate!
É como diz o povo aqui, eles só querem o “venha a nós”, e o “vosso reino”, nada. Querem a panela de pirão toda, raspar as colheres, e olha que a farinha nem está pouca! É uma pouca vergonha o que fazem com a riqueza que nós produzimos. Até quando convivemos com isso?
David Deccache, que é economista, publicou uma simulação de que, se a ideia de bosta do Haddad estivesse valendo, nos últimos 20 anos, o Brasil teria perdido 8,8 TRILHÕES em investimento público. Consegue imaginar a situação das escolas, do SUS, das cidades, se a gente perdesse esse tanto de dinheiro? No texto “Onde Haddad errou”, Antonio Martins afirma que a falta de investimento público mantém as cidades segregadas, a ponto de as periferias estarem se transformando em versões contemporâneas das senzalas. Vale ressaltar que a própria ideia de considerar investimento público como “gasto” é uma falácia liberal.
E claro que, há mais de 100 dias do Governo Lula, não houve nenhum debate sobre isso com o povo, com os movimentos, com a classe trabalhadora. Só reuniões chiques, num clima bem agradável e por vezes com um cheiro fétido de sangue batendo na janela, mas que não é capaz de atormentar os donos de bancos decidindo nossas vidas a portas fechadas.
PARTE 2
Lá em 2016 a gente ocupou, mobilizou e saiu dizendo que o tal neoliberalismo estava atrás das nossas almas. Foram movimentações importantes, mas não podemos dizer que funcionaram. O odioso governo Temer conseguiu deixar um dos piores saldos para nós. Foi direito perdido pra tudo quanto é lado. A gente se vê agoniada tendo que ver a CLT indo pro ralo, e muitas de nós tiveram que abrir um ponto na quebrada pra levantar uma grana. Aí veio Bolsonaro, carestia, desemprego, pandemia, fome, tudo de ruim batendo recorde.
E em 2022 a gente até respirou mais aliviado, entretanto, sabendo que a água ainda batia na bunda. Com esse clima bem quisto pelo Governo de eterno pós-festa, a gente não vê mobilização em torno dessa opção política pela austeridade, e mesmo se tivesse, nós teríamos que organizar muito bem uma tática que fosse capaz de fazer o que não conseguimos lá em 2016.
É claro, são outros tempos, outra conjuntura e atores diferentes. O próprio Lula disse que é pra ser cobrado, e chegou a hora de a gente entrar em cena como protagonistas, e cobrar sua promessa de campanha de priorizar os investimentos públicos. Não é hora de receitas prontas, visto que o forno nem acendeu. Então é a hora de nos lançarmos no desafio coletivo de formular o que fazer e agir. Não podemos nos apequenar por não sermos tão numerosos ou por não termos a estrutura que eles têm. Nossa história é forjada em Palmares, em Canudos, em territórios indígenas, entre nossa solidariedade nas quebradas e em nossa criatividade. Precisamos assumir o rumo das organizações de esquerda no Brasil.
Começo sugerindo pensar o quanto a população negra foi a primeira a ser impactada pelo avanço do neoliberalismo no Brasil, e sim, enquanto vanguarda da revolução brasileira, a classe trabalhadora não está dormente, está adoecida, lutando hora a hora para sobreviver. Então não é fácil. Não é só alastrar sentimentos de insatisfação, gritar aos 4 cantos “neoliberalismo é mau”, “austeridade mata”, que iremos acalorar e mobilizar os corações de quem está acordando 4, dormindo 23, vivendo 14 horas para o trabalho e o que sobra de tempo é pra tentar sorrir ou sofrer menos num bar ou numa igreja.
E, apesar do exemplo comum, temos que pensar também que essas pessoas somos nós. E que nossa militância está exausta de, além de tudo isso, ter que manter-se firme para olhar profundamente para a conjuntura, estudar, formular, tocar tarefa e se manter sã. Portanto, considerar quem somos e como estamos é fundamental para construir qualquer tática de enfrentamento e dar vazão ao ódio que estamos acumulando através do sofrimento diário. Parece paradoxal, mas é a própria dialética. Tentar parar de sangrar no momento em que mais nosso sangue jorra.
E como o machado de dois gumes, aquele erguido por Xangô, precisamos agir pressionando os de cima, mas sem esquecer de que precisamos mobilizar os nossos. Só nos proclamando revolucionários não convence ninguém, qual real crítica e autocrítica estamos fazendo na prática sobre os rumos do Movimento Comunista Internacional? E sim, isso exige de nós cuidado, ternura e um forte combate ideológico contra o individualismo. No livro “Por Terra e Território” da Teia dos Povos, Mestre Joelson e Erasto dizem que
“[…] se a organização, o movimento, o povo ou o território não constrói espaços de cuidado com a militância; se, ao contrário, possui valores, comportamentos e sinais de autoviolência na sua atuação, então as pessoas – em sofrimento ou não – não permanecerão muito tempo. Se permanecem, a intensidade ou a qualidade de suas colaborações diminuem. Por essa razão, não podemos mais pensar em uma organicidade que não dê espaço ao cuidado, ao cultivo de bons valores e à superação de dores por parte da militância.”
Queremos e teremos que travar mais de uma luta ao mesmo tempo, seja ela impedir algum retrocesso ou seja para avançar propositivamente na construção do Poder Popular, seja ela mais geral, conjuntural, ou mais interna em nossas organizações; teremos que ter disciplina, avidez, combater o trabalho artesanal em nossas fileiras, impedir que as opressões afastem nossos lutadores e retomar o vigor pelo estudo. Ser um jovem e manter a sua juventude, sabendo servir ao povo e obtendo confiança de que estamos do lado certo, e assim, venceremos.
O Novo Teto de Gastos será discutido pelos Deputados dia 24, próxima quarta-feira. Que tenhamos fôlego para as lutas que virão, e que Iansã sopre ventos que sacudam e tirem a nossa poeira acumulada. Nosso povo não merece sofrer mais.