Cotas docentes, ensino e pesquisa

Em defesa da diversidade e da ciência popular

Apontamentos sobre a Lei 12.990 de 2014, a administração pública e a luta por uma universidade verdadeiramente popular.

Por João Marcelo e Ghabriel Ibrahim, militantes da UJC, estudante de Direito e mestrando em Letras, respectivamente

Qualquer pessoa que já tenha frequentado uma universidade pública no Brasil sabe que são os professores brancos – em sua maioria, homens – que dominam as salas de aula. Na Faculdade de Direito da UERJ, é possível notar uma desigualdade espantosa: entre os 121 professores da instituição, 119 são brancos – sendo 91 homens e não havendo nenhuma mulher negra. Em porcentagem, 98.3% do corpo docente da faculdade é branco. Essa realidade se torna ainda mais grave quando analisamos a presença de indígenas ou pessoas com deficiência (PcDs) nos cargos docentes, que é inexistente na grande maioria dos cursos. Esses dados, apesar de gritantes, são reflexo de mais de uma década de omissão da administração pública federal e estadual frente às conquistas do movimento negro e dos indígenas.

Instituída em 2014, a Lei 12.990 reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. (Fonte: Agência Senado). No caso do Estado do Rio de Janeiro, uma lei semelhante a essa já existe desde 2011: trata-se da Lei 6.067, que foi prorrogada e, atualmente, deu lugar à Lei 9.852 de 2022, garantindo pelo menos 20% das vagas aos negros e também aos indígenas.

Nos concursos públicos federais, regulados pela Lei 8.112/90, há a reserva de até 20% das vagas para pessoas com deficiência. Já os concursos realizados pelos demais entes federativos podem determinar suas próprias ofertas, desde que sempre acima de 5%, conforme o Decreto nº 9.508/18. Em suma, todos os concursos públicos para preenchimento de vagas no corpo docente das universidade de todo Brasil deveriam, em seu edital, constar a reserva de vagas de, ao menos, 20% para negros (e indígenas, no caso do Rio de Janeiro) e, no mínimo, 5% para PcDs.

A pergunta que fica é: mas então como temos essa tamanha desigualdade racial e a quase inexistência de PcDs nos corpos docentes de nossas universidades?

12 anos de omissão da administração pública

Desde a promulgação da lei, a aplicação da reserva de vagas não tem sido efetiva para os concursos de professores universitários por conta de uma característica da seleção para docentes tanto na UERJ quanto em outras universidades de todo o Brasil: a realização dos processos de forma descentralizada. A legislação estabelece que, a cada três vagas, uma deve ser reservada para pessoas negras. No entanto, raramente ocorrem concursos com três vagas para um mesmo departamento ou uma mesma área de conhecimento, o que vem dificultando a aplicação dos percentuais previstos pela legislação.

Desta forma, ainda que exista um déficit de, por exemplo, dez docentes dentro de um mesmo instituto ou faculdade – ou seja; abrindo, em tese, a possibilidade para a aplicação da reserva de vagas -, os processos seletivos são organizados separadamente por cada departamento. Então, se essas dez vagas representam um déficit de, no máximo, dois docentes por departamento, a reserva de vagas não será aplicada pois, apesar de até poderem ocorrer simultaneamente, os concursos serão realizados de maneira descentralizada do instituto ou faculdade, com cada departamento fazendo sua própria seleção.

Fazendo uma rápida pesquisa no site da Faculdade de Direito da UERJ, (http://www.direito.uerj.br/) podemos acessar, sem muitos obstáculos, os editais abertos nos últimos anos. Neles, verificamos que os departamentos da faculdade, ao abrirem edital para concurso de forma descentralizada ofertam somente uma vaga regular – além de nenhuma para o cadastro de reserva -, impossibilitando a aplicação da Lei de Cotas (no caso da UERJ, a Lei 9.852 de 2022 – anteriormente, Lei 6.067 de 2011). Assim, nenhuma das leis de reserva de vagas – para negros e indígenas (Lei 9.852/2022) e para PcDs (Decreto nº 9.508/18) – estão sendo aplicadas na prática nos concursos da FDir/UERJ.

Na prática, o que vem acontecendo nos últimos 9 anos – no caso do Rio de Janeiro, 12 anos – é uma completa omissão por parte da administração pública – neste caso, das reitorias e demais instâncias das instituições de ensino superior – frente à necessidade de elaborar uma nova metodologia de concursos que atenda às exigências da Lei 12.990. Estamos falando de uma lei que representa uma significativa conquista do movimento negro, dos indígenas e dos PcDs que está sendo ignorada por mais de uma década e, ainda sim, não observamos nenhuma movimentação política a respeito dessa pauta. Persistir na atual metodologia de aplicação de concurso é se omitir perante uma conquista histórica dessas minorias sociais. É dever das entidades acadêmicas garantir o cumprimento desta lei.

Essa omissão, importante destacar, não se dá apenas pelas instâncias dos institutos de ensino superior, mas também pelo Ministério Público e Assembleias Legislativas que falharam com seus deveres de fiscalizar e garantir o cumprimento de uma lei promulgada. O Ministério Público possui, de acordo com a Constituição Federal, o dever de “velar pela observância da Constituição e das leis, e promover-lhes a execução”. Já os deputados estaduais eleitos para as Assembleias Legislativas possuem o dever de fiscalizar o Poder Executivo e seus órgãos de administração direta e indireta.

Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF), mediante uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), proferiu uma decisão que garantiu a constitucionalidade da Lei 12.990/2014. Observa-se que, além de declarar a constitucionalidade da lei em vigência, o STF determinou alguns parâmetros a serem seguidos pela administração pública, são eles: “(i) os percentuais de reserva de vaga devem valer para todas as fases dos concursos; (ii) a reserva deve ser aplicada em todas as vagas oferecidas no concurso público (não apenas no edital de abertura); (iii) os concursos não podem fracionar as vagas de acordo com a especialização exigida para burlar a política de ação afirmativa, que só se aplica em concursos com mais de duas vagas; e (iv) a ordem classificatória obtida a partir da aplicação dos critérios de alternância e proporcionalidade na nomeação dos candidatos aprovados deve produzir efeitos durante toda a carreira funcional do beneficiário da reserva de vagas”. Após a decisão do STF, ainda assim a imensa maioria das universidades no Brasil continuou ignorando completamente a lei.

Reflexos no ensino e na produção científica

Embora obviamente a questão social seja importante quando realizamos a defesa de cotas docentes, e muito provavelmente este tenha sido o fator determinante para a proposição e aprovação da Lei – isto é, compreendemos que certos grupos sociais são historicamente excluídos de forma consciente ou inconsciente de espaços de poder, logo temos que atuar para reparar essa questão visto que ela foi produzida pela própria constituição do Estado – há uma questão epistemológica relevante para empreendermos um esforço pela ocupação de vagas por pesquisadores diversos. Como marxistas, nos afastamos de certas leituras pós-estruturalistas, sobretudo de origem anglo-germânica, que levam à suspeição para com a ideia de Verdade às últimas consequências. Não nos afiliamos a um universalismo abstrato de cunho positivista como o que coloca o homem branco europeu como medida de todas as coisas, mas entendemos que há sim uma dimensão objetiva no discurso da ciência e que, sobretudo, há validade universal no cerne da crítica da economia política marxista.

É exatamente por isso que precisamos reforçar a importância de que sujeitos sobre os quais a luta de classes se impõe de forma mais violenta se engajem na produção de ciência: se há algo objetivo no discurso científico (e há), trata-se das respostas a que se chega quando se conforma o método adequado ao seu objeto. As perguntas, porém, são tão ou mais importantes que as respostas – e elas estão intrinsecamente ligadas a quem produz ciência.

Os mais diversos campos das ciências se beneficiariam com a maior diversidade entre seus pesquisadores. Na verdade, em artigo de 2020 que já se tornou basilar para o tema, HOFSRA et al (2020) apontam que “estudantes de grupos demográficos sub-representados inovam mais que os estudantes de maiorias, mas suas contribuições inovadoras são desacreditadas e eles possuem menos chance de atingir posições acadêmicas de prestígio”. A pesquisa foi feita com 1.2 milhões dos doutorandos de diversas áreas entre 1977 e 2015 nos EUA.

Especificamente na UERJ, universidade que se orgulha de ser pioneira no sistema de cotas raciais e sociais, há mobilização recente por parte dos alunos para que a lei que propõe cotas em concursos para os docentes seja respeitada. Novamente chama atenção em especial a constituição do corpo docente da Faculdade de Direito: em um país em que a violência racista é tão presente, com tantos casos de violência contra a mulher, é razoável ter tão poucos negros e tão poucas mulheres estudando, produzindo e lecionando sobre o direito burguês, ferramenta que muitas vezes serve para legitimar essas mesmas violências? É evidente que não cabe sugerir que todo pesquisador pertencente a uma minoria social pesquisará a partir de uma perspectiva revolucionária – ou mesmo progressista – acerca de sua condição como objeto de estudo, tampouco que pesquisadores brancos não são capazes de um olhar atento para com as injustiças sociais. Mas é interessante notar que uma academia que historicamente marginaliza e afasta minorias sociais do espaço de pesquisa também tende a negligenciá-las como objeto de estudo, numa demonstração de autocentramento que afeta negativamente a todos. Na medicina, não são raros os casos de estudos que não levam em conta diferenças étnicas e de gênero, produzindo efeitos colaterais nocivos ou reduzindo a efetividade geral de certos medicamentos.

No âmbito da pedagogia, é importante pensar, a partir de uma perspectiva histórico-crítica, o que queremos do ensino e, consequentemente, do professor. Saviani (2020) nos aponta uma direção importante: precisamos de um ensino guiado pela “radical historicidade do homem”, que dê conta de “produzir, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 2003, apud SAVIANI, 2020). Que melhor maneira de fazê-lo que com um corpo docente diverso inclusive em termos de constituição de subjetividade? A experiência histórica de um indígena, de um PCD, de uma pessoa trans no Brasil de 2023 é constituída de certas particularidades que dialogam com a história desses grupos, que por sua vez é parte da história geral da opressão do capitalismo num país dependente como o Brasil. Por seu turno, essa história se desdobra na história do próprio capitalismo como sistema global de dominação em sua fase imperialista.

Novos rumos e perspectivas para a luta em defesa das “cotas docentes”

Em território nacional, a esmagadora maioria das universidades públicas, sejam estaduais ou federais, não garantiram esforços para pensar uma nova metodologia de organização de concursos que abarcasse o sistema de cotas, isto é, fazer a lei ser cumprida. No Rio de Janeiro, é possível identificar o mesmo problema encontrado na UERJ em outras universidades públicas, como UFF e UFRJ. Na UFF, fazendo uma breve pesquisa nos últimos editais lançados, nota-se o mesmo método descentralizado. Já na UFRJ, apesar de a organização de editais ser centralizada, tudo indica que a seleção acaba por, mesmo assim, não aplicar a reserva de vagas.

Algumas poucas universidades, entretanto, fugiram à regra e revisaram sua política de aplicação de concursos, dentre elas a UFOP e a UFMG. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) deu início, em 2022, através de uma comissão especializada, a uma metodologia desenvolvida por uma comissão especial instituída pela universidade que aprimora o cumprimento da legislação que prevê ingresso de pessoas negras no magistério superior. Essa metodologia se dá a partir de uma política centralizada de reserva de vagas nos concursos públicos.

Professores da UFMG explicam que a primeira ação da comissão “foi vincular a reserva de vagas ao conjunto de vagas colocadas em concurso pela UFMG a cada alocação, ou seja, em vez de a aplicação da reserva ser feita nos departamentos específicos, agora essa reserva passará a ser aplicada no montante das vagas disponíveis para provimento. A segunda ação foi definir um critério para estabelecer os departamentos que receberão as vagas reservadas. Para isso, a opção da comissão foi criar indicadores de disparidade, como elementos para minimizar as desigualdades em cada uma das unidades acadêmicas da UFMG”. Esses indicadores são de Disparidade Racial (IDR) e de Exclusão de Pessoas com Deficiência (IEPCD), e ambos foram “construídos com base no número de pessoas negras e com deficiência que compõem a população e na representatividade desses grupos entre os professores efetivos da Universidade, com detalhamento por departamento”, explica o professor. Com a nova metodologia, os processos seletivos que tiverem, pelo menos, 3 (para pessoas negras) ou 5 (para PcD) vagas já estarão em capacidade de aplicar o sistema de reserva de vagas.

Recentemente, na USP, foi aprovada, no Conselho Universitário, uma resolução que regulamenta as políticas afirmativas para os concursos e processos seletivos de docentes e servidores técnico-administrativos destinados ao público de pessoas pretas, pardas ou indígenas. Os processos seletivos recentemente suspensos na universidade para o preenchimento de 79 vagas para os cargos de analista administrativo, médico veterinário e procurador serão retificados e um novo edital será publicado com a incorporação das ações afirmativas.

COM AS COTAS, PARA ALÉM DAS COTAS

O processo formativo de qualquer estudante se beneficiaria com um aumento da diversidade docente. De todo modo, a defesa dessa diversidade não pode ser vista como um fim em si nem como a solução para os problemas da universidade sob o capitalismo: a construção de uma Universidade Popular, por e para o povo, não pode prescindir em nenhum momento da luta pelo fim do capitalismo e das opressões que esse sistema sustenta em nome do lucro. Defendemos a manutenção e a expansão da política de cotas discentes, mas também defendemos, no horizonte, o fim do vestibular. Da mesma forma, defendemos o respeito à lei de cotas docentes, mas sobretudo a expansão do ensino superior PÚBLICO, o controle popular das universidades, o tripé universitário em detrimento da pauperização da experiência de ensino presente em inúmeros institutos privados que só servem para enriquecer a grande burguesia da educação privada (como os acionistas da COGNA e da YDUQS) e, principalmente, produção de ciência socialmente referenciada voltada para a sofisticação produtiva e para o bem estar do povo trabalhador. Lutar, criar, Universidade Popular!

Bibliografia:

HOFSTRA, B. et al. The Diversity–Innovation Paradox in Science. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 117, n. 17, p. 9284–9291, 28 abr. 2020. Disponível em: https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.1915378117. Acesso em: 16.jun 23.

SAVIANI, Dermeval. A pedagogia no Brasil [livro eletrônico]: história e teoria. Campinas, SP: Autores Associados, 2020

https://ufmg.br/comunicacao/noticias/politica-centralizada-garante-efetiva-aplicacao-da-reserva-de-vagas-em-concursos-docentes

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12990.htm

http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=144&URL=L3NjcHJvMTkyMy5uc2YvMGM1YmY1Y2RlOTU2MDFmOTAzMjU2Y2FhMDAyMzEzMWIvOGVkZGQ0NDQ4OTFjOGNiYzAzMjU4OGNhMDA1MGIxOWM/T3BlbkRvY3VtZW50JkhpZ2hsaWdodD0wLDIwMjIwMzA2NDAy&amp

https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13375729

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/d9508.htm

https://jornal.usp.br/institucional/usp-adota-cotas-para-concursos-e-processos-seletivos-de-docentes-e-servidores-tecnico-administrativos/