O rio transbordado da hipocrisia burguesa

Imagem: Prefeitura POA / Divulgação

Sobre as enchentes e as mortes no Vale dos Sinos

Nota Política do PCB Vale dos Sinos (RS)

Quando estávamos redigindo essa nota, já havia a confirmação de 14 mortos em todo o estado do RS e uma pessoa seguia desaparecida. A Defesa Civil afirmava que 2,1 milhões de pessoas no estado foram afetadas pela passagem do ciclone extratropical, que atingiu com força o litoral gaúcho e provocou uma série de danos em diversas regiões, principalmente na região metropolitana de Porto Alegre, Litoral Norte, Parte da Serra Gaúcha e nos vales dos rios Taquari e dos Sinos, sendo este último nosso foco de análise aqui.

Em nossa região, morreram dois moradores de São Leopoldo, uma de Esteio e um de Novo Hamburgo. Nossos militantes testemunharam e sofreram na pele a catástrofe ambiental. De fato, mesmo com um ideal sistema de drenagem urbano adequado às necessidades da população e ao clima local, seria difícil suportar o enorme volume de água registrado em São Leopoldo (cerca de 246 ml) entre a noite de quinta (15) e sexta-feira (16). No entanto, tragédias como esta são potencializadas pela precariedade na prestação dos serviços públicos de saneamento e abastecimento, pelas poucas políticas de prevenção e resgate e pela precariedade das habitações nas zonas de risco. Logo, são os pobres os maiores atingidos.

Bairros inteiros continuam debaixo d’água, móveis e veículos foram arrastados e perdidos, milhares estão desabrigados, vidas foram ceifadas e continuam as buscas pelos desaparecidos, nesse que foi um fim de semana triste em nossa região. Gostaríamos, antes de prosseguir com esta nota, saudar a enorme solidariedade da população do Vale dos Sinos no socorro aos desabrigados pelas enchentes, que foram buscar abrigo em ginásios de esportes e eventos, residências de parentes, espaços comunitários, galpões de CTGs e igrejas. A solidariedade vem muito dos setores mais pobres e precarizados de nossa região, demonstrando que a solidariedade de classe é muito forte ainda em nosso estado. Convocamos nossos militantes, amigos e simpatizantes a se somarem na solidariedade aos moradores e contribuir com o que for possível neste momento.

Não podemos deixar de dizer aqui que vidas poderiam ter sido preservadas e a destruição provocada pelas chuvas poderia ser muito, mas muito diminuída, se não fosse uma série de problemas visíveis desde antes de a tragédia acontecer. A começar pelo atraso da Defesa Civil do RS em executar uma política de prevenção e se antecipar ao resgate dos moradores residentes das zonas de risco. Há dias era anunciado que um ciclone extratropical passaria com enorme intensidade na costa e traria intensas chuvas e ventos para a região. A resposta foi lenta e muito aquém do necessário para salvar vidas e evitar a maior parte da destruição do pouco patrimônio restante dessa população.

Em entrevista coletiva concedida na Prefeitura de São Leopoldo no sábado, dia 17, o Ministro da Integração Nacional, Waldez Góes, informa que o reduzido quadro de funcionários da Defesa Civil nos três entes federativos – Federal, Estadual e Municipal – prejudica bastante a qualidade da resposta e a deixa bastante dependente do envolvimento de outras forças, como os bombeiros e o Exército, para realizar operações de resgate e prevenção, havendo ainda a dificuldade de coordenação conjunta dessas operações. Podemos desde já afirmar que há a precarização do serviço público prestado pela Defesa Civil, que sofre com um reduzido quadro de funcionários e com um orçamento abaixo do necessário para cumprir suas funções e lidar com uma tragédia dessas. A comitiva enviada pelo Presidente Lula, o governador do estado Eduardo Leite (PSDB) e o Prefeito de São Leopoldo Ary Vanazzi (PT) usavam coletes da Defesa Civil durante a coletiva de imprensa, o que, embora simbólico e com boas intenções, não apaga o fato de a política institucional não garantir o pleno funcionamento de órgãos como a Defesa Civil. De boas intenções o caminho das enchentes continua pavimentado e bem alagado.

Outro ponto é a sobrecarga das casas de bomba operadas pela SEMAE em São Leopoldo e pela Corsan Vale Dos Sinos: além de não possuírem independência energética, não contam com geradores e equipamentos que garantam seu funcionamento em caso de falta de energia. As cidades do Vale dos Sinos são atendidas pela companhia privatizada de energia RGE, que recentemente promoveu um aumento na cobrança das tarifas de luz. Essa briga para garantir uma melhor estrutura para a casa das bombas (reivindicação antiga, diga-se de passagem), envolve desde a proposital precarização dos serviços públicos (os trabalhadores da Corsan estão numa encarniçada luta contra a privatização) até a indisposição de empresas privatizadas de realizar investimentos em infraestrutura de qualidade, o que gera somente o benefício direto para a população da região, e não agrada seus acionistas, interessados em lucros cada vez maiores e aos políticos sedentos por obras a serem apadrinhadas somente por eles e que lhes garantam o cargo nas próximas eleições. Logo, é a velha mesquinhez de nossa classe política que muito bem defende os interesses dos empresários e que deixa moradores de Sapucaia do Sul, Esteio e Canoas, por exemplo, debaixo d’água, que condena a UPA de Sapiranga a ficar alagada e retirar às pressas pacientes em leitos e mesmo lugares não alagados a ficarem sem abastecimento de água, por falta do retorno da energia necessária para colocar as casas de bomba em funcionamento. São as companhias privadas fugindo de sua responsabilidade em entregar um serviço de qualidade para a população, atingindo muito mais a nossa classe trabalhadora e oprimida.

Chegamos à questão da moradia. As zonas mais afetadas são encostas de morros, arroios e áreas ao redor do Rio Dos Sinos, inundadas, destruídas pela enxurrada ou por deslizamentos de terra. Todos os arroios de Novo Hamburgo e São Leopoldo transbordaram. Muitos bairros têm partes alagadas que só ameaçam crescer em razão de as águas ainda aumentarem de nível no Rio dos Sinos e terem sido anunciadas mais chuvas para essa semana. O fato de a maioria dos trabalhadores residirem nestes bairros afastados dos centros é resultante das ocupações e lotes concedidos por gestões antigas dentro do leito do rio com a justificativa de serem muitas vezes próximos aos seus postos de trabalho fabril. Recebem pouco investimento público, demoram a ser asfaltados, saneamento básico é um mito e a construção de determinadas residências, por mais bem feita que possam ser, ficam reféns de obras de contenção de enchentes como diques, que sempre voltam em promessas de campanha eleitoral, mas nunca cumpridas por sua execução exceder o tempo de mandatos dos políticos e, portanto, difícil de ser explorada como vitrine eleitoral. Assim, mesmo políticas de regulação de ocupações para as converter em casas e apartamentos populares, de melhor construção e segurança territorial estão também no campo das promessas e nas declarações quando tragédias como esta ocorrem e destroem casas.

Há um elemento perverso no final que nos ajuda a entender um pouco a dimensão da tragédia. É bem sabido que, por mais que os governantes, no bom senso que a situação impunha, pedissem para que a população não saísse de suas casas (e tal anúncio era feito desde o final da noite de quinta, dia 15), muitos trabalhadores ainda eram pressionados a atravessar arroios transbordados, avenidas alagadas, árvores despencadas e fios energizados caídos nas ruas em contato com a água; a esperar horas debaixo de chuva, vento e frio por ônibus, que além da redução de frota, também ficavam ilhados em enchentes. É que a fé de seus patrões no lucro parece mais forte que as forças da natureza, coagindo milhares de trabalhadores a sair de suas residências sem saber se vão conseguir de fato chegar aos postos de trabalho e se seus dependentes vulneráveis, casas e bens materiais estarão ali quando retornarem. Agora que os patrões percebem a dimensão da tragédia, somente após ela afetar até os locais de trabalho e sua produção, correm para limpar a própria imagem em filantropia barata e postagens de solidariedade como jogada de marketing.

A força da solidariedade organizada de nossa classe em momentos como este coloca em evidência a necessidade de fortalecer a organização direta e permanente dos trabalhadores do Vale do Rio Dos Sinos, que não podem ficar dependentes do governo de ocasião para utilizar seus espaços de organização e convívio a serviço de nossos irmãos de classe. Associações de bairros, movimentos populares de habitação, coletivos sociais e vários lutadores sociais prestam, cada um ao seu modo e dentro de suas competências, uma anônima e abnegada contribuição. Uma empatia enorme para com nossa classe se soma às ações de solidariedade, socorrendo quem mais precisa e apontando as limitações do estado capitalista em garantir que tragédias como essas não retirem mais a vida de nossos irmãos de classe. Podem ter certeza que há camaradas do PCB do Vale dos Sinos nestas ações. “Nós por nós” nunca fez tanto sentido como agora, quando o frio se intensifica e mais chuvas são anunciadas.

A tarefa é árdua, exige paciência, formação e convicção, mas necessária. A nossa classe depende disso. Estas são as tarefas colocadas aos comunistas.

São Leopoldo, 19 de Junho de 2023