Terapia não basta: saúde mental e capitalismo

Por Ágatha Luz

Jornal O MOMENTO – PCB da Bahia

Categorizar e solucionar o adoecimento psíquico do ser humano é insuficiente e perigoso sem pautar a própria estrutura que motiva nosso sofrimento coletivo.

Em nosso cotidiano, seja no ambiente de trabalho, no conteúdo transmitido pelas redes sociais ou até certos setores acadêmicos de pesquisa, existe um reducionismo perigoso em nossa interpretação do que significa estar adoecido mentalmente: os termos e descrições adotados corriqueiramente em nossos diálogos sobre saúde mental refletem fenômenos psíquicos como a exaustão, frustração ou desânimo profundos como simples processos de má-gestão individual das dificuldades diárias. É necessário, no entanto, superar tal ponto de vista individualista e enxergar transtornos e sintomas dessa natureza como intimamente proporcionados e aprofundados pela estrutura econômica em que somos obrigados a existir.

A grande problemática de desconsiderar as contradições pavorosas do sistema capitalista em nossa compreensão sobre adoecimento mental em massa não é sempre explícita. Acontece que a própria forma com a qual discutimos saúde mental é programada de forma súbita para descartar essas implicações sociais da nossa consciência.

Em Neoliberalismo com gestor do sofrimento psíquico (2021), o filósofo Vladimir Safatle defende que o modo de produção que forja o terreno em que nossa cultura e sociedade tomam forma não apenas é responsável por gerar sistematicamente certas formas de profundo sofrimento humano, como também de as manter vivas através da manipulação do próprio debate sobre o tema. Em suas palavras: “controlar a gramática do sofrimento é um dos eixos fundamentais do poder”.

Safatle ilustra essa tese com a forma em que a categorização tradicional de transtornos mentais que adotamos há décadas, notadamente difundidas pelas extremamente bem-sucedidas edições do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (ou DSM, editadas pela Associação Americana de Psiquiatria), ditam desde o princípio a linguagem que utilizamos como ponto de partida em nossas formulações habituais sobre o que é ou não “normal” e “saudável” dentro da psicologia sem nem percebermos.

Essa linguagem patologiza e busca corrigir o indivíduo “anormal”, além de não levar em conta as condições sociais que influenciam ou acarretam certos comportamentos adversos à normalidade. Inclusive, esse léxico individualista, correcional e acrítico serve como a gramática adotada em grande parte do conteúdo produzido e amplamente circulado atualmente dentro das redes sociais, que repopularizaram, por exemplo, conceitos como a “síndrome de burnout” em nosso imaginário.

Assentar nossas conversas sobre saúde mental sob de categorias (sintomas e diagnósticos) pré-estabelecidos, sem questionar em que se fundamentam essas categorias e onde se equivocam, tem o poder nefasto de legitimar, como inerente à condição humana, o sofrimento psíquico de propensão socioeconômica.

A própria síndrome de burnout é um ótimo exemplo. Também chamada de estresse ocupacional, a expressão já tem uma certa idade em seu emprego acadêmico, porém, obteve enorme ressonância desde o início da pandemia de Covid-19, quando a exaustão dos profissionais de saúde frente à crise sanitária virou uma grande pauta midiática. Desde fóruns anônimos a artigos médicos divulgados em portais oficiais de medicina e psicologia, o mais propagandeado como tratamento para essa condição de exaustão é uma mudança de estilo de vida. Isso significa aprender a gerenciar melhor a rotina, investir mais em exercício físico e ser assistido por um terapeuta, além de adotar práticas relaxantes como a atenção plena e o yoga.

Basicamente, a orientação geral mais aceita e propagada – a mais legitimada – é a de se conscientizar sobre seus hábitos pessoais diários e transformá-los. Seriam então essas escolhas individuais, e somente elas que acarretam ou evitam toda a indisposição, tristeza e cansaço relacionados à ocupação profissional do sujeito. Nunca fatores externos.

Existem também, não menos contraditórios, aqueles completamente avessos à digitalização do mundo moderno, e que culpam a própria modernização como fator primário e único do adoecimento psíquico global.

Muito mais raro é encontrar discussões sobre os próprios padrões de trabalho impostos à classe trabalhadora que ocasionam esse adoecimento e, além do mais, dificultam em si a possibilidade de mudanças benéficas de hábito: para uma grande parte de nós, um melhor aproveitamento do tempo e maior dedicação ao próprio bem-estar é simplesmente, muitas vezes, inviável.

Enquanto existem duras críticas a serem feitas sobre a responsabilidade relativa que conservamos em relação a nossa qualidade de vida, como também sobre a dinâmica problemática que a tecnologia assume em nossa realidade – inclusive em relação a superexploração da classe trabalhadora – ambas análises são supérfluas porque falham em reconhecer o básico. Trabalhar mais, com maior precariedade e menor segurança, em troca de um menor acesso à remuneração digna e menor garantia a direitos trabalhistas, são causadores e catalizadores fundamentais das particularidades que o sofrimento humano incorpora atualmente. Isso sem contar com as diversas formas de opressão que orientam nossas interações com o mundo em que vivemos.

Por isso, lutas a favor da diminuição da jornada de trabalho para trinta horas semanais ou contra a terceirização devem ser, também, básicas quando se discute saúde mental. Inclusive, é necessário que a própria linguagem de categorização que adotamos seja profundamente revisada, a fim de compreender a classe trabalhadora de forma realista, coletivizada, e produzir tratamentos e soluções reais ao invés de medidas superficiais e individualizadoras.