Calabouço fiscal e tributário, contendas políticas e desafios
Brasília (DF) 26/07/2023 – O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresenta o Novo Ciclo de Cooperação Federativa, durante entrevista coletiva no ministério. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Por Milton Pinheiro – membro do Comitê Central do PCB
Vivemos um período conjuntural complexo, com intensa presença das ações encetadas pelo governo federal, mas, também com outras intervenções. Esse cenário, ainda marcado por uma cena política não desvelada, tem um conjunto de variantes que passam pela intervenção das forças da extrema direita com sua bizarria nas redes de contágios; pelo papel do parlamento a partir dos interesses burgueses e reacionários; pelos consensos articulados pelo governo Lula e o presidente da Câmara Federal; por projetos de grande interesse popular que foram operados contra os interesses dos trabalhadores, a exemplo da nova regra do teto de gastos e a reforma tributária (calabouços).
Podemos afirmar que essas duas questões se transformaram no seu contrário do ponto de vista das demandas populares. O que é lamentável é o governo Lula agendar um contingente expressivo de recursos para as emendas parlamentares e acenar com uma minirreforma ministerial, começando pelo ministério do turismo, para obter aprovação em pautas tão rebaixadas do ponto de vista do interesse público e social.
A complexidade da conjuntura avança por questões judiciais que envolvem a inelegibilidade de Bolsonaro e a perspectiva de prisão desse agitador fascista; mas, se manifesta também, através do papel de agência da burguesia rentista que é exercido confortavelmente pelo Banco Central; pelo avanço da fome, mesmo com a melhoria de políticas focalizadas de combate a essa endemia nacional; e pela constante vacilação política do bloco burgo-petista.
Longe do bloco no poder se colocam, ainda sem maior capacidade de intervenção na contradição capital-trabalho, três forças de esquerda que operam lógicas diferentes. Uma que atua em apoio ao governo e termina por ser capturada pelas ações de uma requentada conciliação de classes (PT, PC do B e parte do PSOL); a segunda que entende a importância da eleição de Lula, mas não se integra na lógica da subalternidade ao governo, desenvolvendo suas ações na perspectiva da autonomia política e de classe, chamando atenção para importantes mediações táticas que são submetidas ao seu projeto estratégico (alguns setores do PSOL e especialmente o PCB); e, por fim, uma esquerda confusa, pautada por um radicalismo pequeno-burguês que não compreende a ordem das contradições (PSTU e congêneres).
Reforçando o eixo da análise, o mapa da conjuntura é constituído pelo governo de união nacional que está sendo pautado pela conciliação, parlamento com ação de conteúdo retrógrado, fisiologismo político, questões judiciais em aberto, demandas populares sem respostas, projetos antipopulares aprovados, graves problemas sociais e uma esquerda sem centralidade no horizonte da independência de classe e na unidade de ação, que termina por não contribuir para com a movimentação do bloco proletário e popular.
Esses dois projetos articulados pelo governo Lula no congresso nacional têm vícios de origem. O primeiro, rearticula a lei do teto de gastos (arcabouço fiscal) e modifica quase nada da lógica determinada pelo Centrão da burguesia quando a lei foi articulada no governo golpista de Temer. O segundo, reforma tributária, simplifica tributos mas não ataca o essencial que seria taxar grandes fortunas, tributar lucros e dividendos, constitucionaliza a lei Kandir que isenta de tributação a exportação de produtos primários (agrícolas, mineração, petróleo, etc), favorecendo o agronegócio, as mineradoras e as empresas petrolíferas privadas que operam no Brasil. Vale ressaltar que a reforma tributária ainda não foi aprovada, apesar do esforço do governo e do mercado para que isso ocorra.
O sinal acendeu de forma a nos alertar, o dólar caiu e a bolsa subiu, com certeza o povo perdeu…O mais grave dessa ampla cena conjuntural é que não está sendo extraído ensinamentos de um acontecimento explosivo que ocorreu há dez anos atrás e que marcou indelevelmente a história política recente do Brasil, as jornadas de junho.
Há dez anos as massas populares foram para as ruas por saúde, transporte, educação, etc., suas pautas elementares pouco foram ouvidas pelo governo burgo-petista daquele momento. A esquerda tergiversou nas ruas, não assumiu o protagonismo para dirigir às massas, se perdeu em contendas menores diante de um vidro de banco estourado na Avenida Paulista. As massas populares foram capturadas por uma sinistra articulação subterrânea que já se organizava há tempos para incidir na cena política com forte componente ideológico.
A extrema direita entrou em cena, criou um guarda-chuva para dizer o porquê das demandas populares não estarem sendo atendidas, levou as reivindicações das ruas para a pauta da corrupção, criou seus símbolos (vestiu-se de verde amarelo, etc.), contou com o robusto apoio da mídia corporativa, encontrou mitos (Bolsonaro, Sérgio Moro, etc.), trouxe para seu lado justiça/polícia/ministério público (partido da ordem), operou uma nova forma de fazer política via as redes de contágio que agregaram milhões de pessoas, aprofundou o ressentimento, desenvolveu o ódio à democracia, desvelou o racismo-machismo-lgbtfobia, clamou por deus e desenvolveu o neopetencostalismo de forma abjeta, chamou a família para proteger o Brasil, aprofundou o revisionismo histórico negando o caráter ditatorial do golpe de 1964, reinventou que o Brasil estaria marchando para o comunismo, ganhou a narrativa e avançou…
Esse corpo disforme da extrema direita fascista tornou-se forte diante das massas populares desnorteadas. A esquerda da ordem no governo ou em poderosos instrumentos como a CUT e o PT não tiveram forças, nem convicção para operar qualquer resistência. Afinal, em 13 anos de governo do PT as massas populares nunca tinham sido chamadas para agir diante das ameaças. A esquerda fora da ordem não tinha presença de massas para intervir com protagonismo no processo, e aí se estabeleceu uma longa noite de sete anos com o golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro.
Hoje, seis meses depois da posse de Lula, temos um governo que derrotou Bolsonaro, mas não o bolsonarismo. Sabemos que o bolsonarismo só pode ser derrotado pela ação do bloco proletário e popular nas ruas e nas batalhas das lutas de classes. Contudo, as ações desse governo contam na correlação de forças. Um governo que está abrigando os golpistas de 2016 e aliados de Bolsonaro, que reincide em erros, não ajuda no combate aos fascistas de 2013 e aos golpistas de sempre.
As ruas há dez anos davam seu alerta. Hoje, não permitiremos que o erro seja reconstruído. A classe trabalhadora, que sofreu os danos da conciliação de classe, não faltará ao compromisso com a luta. Afinal, as jornadas de junho são um ato político em aberto.