Sobre as lutas da classe trabalhadora no Brasil
Rodrigo Lima [1]
O capital e sua agenda de destruição dos direitos trabalhistas
O capitalismo, no século XXI, avançou no processo de reestruturação produtiva, que se expressa na Indústria 4.0, com a incorporação de novas tecnologias baseadas na inteligência artificial, nas fábricas inteligentes, no uso ampliado de dados, na crescente automação e robotização dos processos produtivos. Inovações tecnológicas que expressam o que Marx e Engels haviam identificado no Manifesto Comunista, de 1848: a indústria moderna capitalista necessita revolucionar constantemente os meios de produção. O que cumpre o objetivo de ampliar a acumulação capitalista, aumentando a exploração dos/as trabalhadores/as.
O capitalismo, em sua etapa monopolista de hegemonia financeira, após a crise econômica de 2007/08, aprofundou os ataques contra os direitos da classe trabalhadora em escala global, impondo condições de trabalho análogas às do século XIX, com a expansão das jornadas de trabalho e com a derrubada das conquistas e direitos sociais, que garantiam condições mínimas de trabalho digno a setores da classe trabalhadora. Com o advento da uberização, as formas de gestão do trabalho tornaram-se ainda mais perversas e opressoras aos/às trabalhadores/as.
O que observamos é que a precarização, a informalidade e o desemprego, que sempre atingiram mulheres, imigrantes, jovens, negros, população LGBTQIAPN+ e pessoas com deficiência avançaram para setores da classe trabalhadora que contavam com alguma proteção social.
A agenda neoliberal aprofundou-se nos últimos anos, com a crescente ideologia dominante do empreendedorismo e da inovação, como panaceias para a superação do desemprego estrutural.
No caso brasileiro, o capital avançou com a agenda pós-golpe de 2016 e implementou as reformas trabalhista e previdenciária, nos governos Temer e Bolsonaro, que alteraram profundamente a legislação e a proteção social do trabalho no país.
Os efeitos da reforma trabalhista
A reforma trabalhista que entrou em vigor no dia 11 de novembro de 2017 (Lei n° 13.467/2017), aprovada sob o falso discurso de geração de empregos, teve como efeitos a ampliação da precarização do trabalho e o aumento da informalidade, além de não ter produzido o “boom” de empregos prometido.
A lei que alterou mais de 100 artigos da já combalida Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), assentou-se em três grandes princípios: flexibilização da legislação trabalhista, com a implementação de novas formas de contratação, como o trabalho intermitente e parcial; a prevalência do negociado sobre o legislado, ampliando o poder do capital sobre o trabalho; e a ofensiva contra os sindicatos e o desmonte da justiça do trabalho, fragilizando a organização coletiva da classe trabalhadora e os dispositivos de proteção jurídica do trabalho.
Com a reforma, os/as trabalhadores/as celetistas passaram a conviver com arranjos de contratação ainda mais flexíveis e com a falta de acesso a direitos básicos, situações que já eram predominantes para a maioria da classe trabalhadora brasileira, submetida historicamente ao desemprego e à informalidade.
Uma fotografia da classe trabalhadora brasileira
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua[2], realizada no segundo trimestre deste ano, o Brasil apresenta os seguintes dados sobre o mercado de trabalho:
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Pessoas com idade para trabalhar
174.607 milhões
Pessoas na força de trabalho
107.557 milhões
Pessoas fora da força de trabalho
67.051 milhões
Pessoas ocupadas
98.910 milhões
Pessoas empregadas no setor privado
49.883 milhões
Pessoas empregadas no setor privado com carteira assinada
36.773 milhões
Empregadas no setor público
12.230 milhões
Ocupadas informalmente
38.734 milhões
Pessoas desocupadas
8.647 milhões
Taxa de desocupação
8%
Subutilizadas na força de trabalho ampliada
20.351 milhões
São números que revelam que a ampla maioria dos/as trabalhadores/as brasileiros/as se encontra excluída da força de trabalho, ou em situação de informalidade, desocupada e subutilizada, contingente que corresponde a 134.783 milhões de trabalhadores/as, cerca de 77,19% das pessoas com idade para trabalhar no país. Ou seja, a precarização, o desemprego e a falta de perspectivas são a realidade com a qual convivem a imensa maioria dos/as que vivem do trabalho.
O acesso aos direitos trabalhistas, seja como celetista ou estatutário, no caso dos trabalhadores que atuam no setor público, é disponível para menos de 1/3 da classe trabalhadora (considerando que entre os servidores públicos, 3.1 milhões[3] não possuem carteira assinada, nem são estatutários). O funcionalismo público ve sua realidade se aproximar das condições de trabalho da maioria da população, ao terem seus direitos ameaçados pelo projeto de Reforma Administrativa.
A luta por direitos e sua ampliação para os/as trabalhadores/as se coloca na ordem do dia como um dos temas cruciais na agenda do país. Negligenciar ou menosprezar essa pauta é dar de ombros para milhões de trabalhadores e trabalhadoras que não têm perspectiva de futuro e veem as condições para a sua sobrevivência como um desafio cada vez mais difícil.
A classe se movimenta
Mesmo em um cenário tão adverso, a classe trabalhadora se movimenta. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE)[4], no primeiro semestre de 2023 ocorreram 558 greves no país, que contabilizaram 20 mil horas de paralisação. Contando com o protagonismo dos funcionários públicos, responsáveis por 58% das mobilizações. A defesa de direitos esteve presente em 80% das reivindicações e 55% das greves pautaram o descumprimento de direitos. Questões salariais, ligadas à reivindicação de reajustes e pagamento do piso das categorias, também foram frequentes, correspondendo respectivamente a 42% e 33% das greves.
O gráfico elaborado pelo DIEESE revela que, após a pandemia, a classe vem retomando as mobilizações e paralisações. Mas quando analisada em perspectiva histórica, apresenta-se um cenário de refluxo das greves durante os últimos dez anos. Após o golpe de 2016, verifica-se que a classe trabalhadora foi reduzindo sua capacidade de mobilização, o que revela que o aprofundamento da agenda de ataques e retirada de direitos, assim como os efeitos da pandemia para o mundo do trabalho, tiveram consequências muito negativas na capacidade de mobilização e luta por direitos.
Outro dado muito preocupante diz respeito às taxas de sindicalização. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[5] divulgou no último dia 15 de setembro que o Brasil chegou ao menor patamar de trabalhadores/as sindicalizados/as, com apenas 9,2% da população ocupada com algum vínculo sindical. Em 2012, o número era de 16,1%, o que mostra que esse índice vem sendo reduzido ano a ano, e essa redução ganhou força após a reforma trabalhista de 2017. Vivemos, portanto, uma quadra histórica de enfraquecimento das organizações coletivas dos/as trabalhadores/as, exatamente no cenário em que aumenta o grau de exploração e precarização do trabalho.
Some-se aos ataques do capital contra os direitos trabalhistas, as dificuldades das centrais sindicais e dos sindicatos em articular uma agenda de lutas que represente os anseios e as demandas da classe trabalhadora.
Mesmo em um cenário tão adverso, as reivindicações por reajustes em 2023 apresentaram ganhos reais para os/as trabalhadores/as. Segundo o DIEESE, das 9.829 negociações de reajustes salariais que ocorreram até agosto deste ano, 76,5% apresentaram resultados acima da inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC).
O governo Lula-Alckmin atende os interesses dos/as trabalhadores/as?
Após um período de governos “puro sangue” de direita, que implementaram de forma aberta e acelerada um programa de retirada de direitos dos/as trabalhadores/as, sem concessões ou negociações com as representações sindicais, a vitória de Lula, em 2022, sinalizou para setores significativos do proletariado um cenário de alívio e de possibilidades de retomada de direitos para a classe trabalhadora.
Porém, desde o período eleitoral, a chapa Lula-Alckmin não se comprometeu com a reversão da reforma trabalhista, sinalizando apenas para mitigação de alguns pontos da legislação, mas sem apresentar detalhes sobre quais artigos seriam revogados. Como afirmei em artigo escrito antes da vitória eleitoral da Frente Ampla:
No que diz respeito ao conflito capital e trabalho, a proposta da chapa é de revogar apenas os tópicos regressivos da reforma trabalhista, sem especificar quais são e sem considerar que o conjunto da reforma imposta por Temer a favor do Capital foi maléfico à classe trabalhadora. A reversão das terceirizações sequer é citada no programa de governo. A dubiedade se apresenta no discurso que aponta para o combate à precarização, mas que não ataca as principais bases de sustentação da superexploração dos trabalhadores brasileiros.[6]
O que podemos verificar nos primeiros nove meses de governo Lula é a retomada da política de conciliação de classes, mas em patamares ainda mais rebaixados do que o observado no período 2003-2016. Com a aplicação de uma política que representa pequenos ganhos salariais conjunturais, sem mudanças estruturais que impliquem na ampliação dos direitos trabalhistas.
Na comparação com os governos Temer e Bolsonaro, a atual gestão petista apresenta ações que contemplam algumas demandas da classe trabalhadora e que recolocaram as representações dos/as trabalhadores/as nas mesas de negociação governamentais. Dado o desastre que foram os governos pós-golpe, medidas paliativas acabam sendo superdimensionadas, mas a realidade é que elas estão muito aquém de resolver os problemas que afetam a classe trabalhadora.
Dentre tais ações, podemos citar a retomada da política de aumento anual do salário-mínimo sempre acima da inflação; a atualização da tabela do imposto de renda, desonerando quem ganha até dois salários-mínimos; a aprovação do Piso Salarial Nacional da Enfermagem; o reajuste do Piso Salarial Nacional do Magistério em 15% e o reajuste de 9% para os servidores públicos federais.
Foram medidas adotadas nos primeiros meses do governo Lula, que mitigaram algumas das demandas dos/as trabalhadores/as brasileiros/as. O que, combinado ao controle da inflação, ajuda a explicar as pesquisas que revelam o crescimento do otimismo dos brasileiros em relação à economia e a maior taxa de aprovação popular do governo desde o seu início.[7]
O governo Lula-Alckmin também aposta na constituição de mesas de negociação, reforçando o caráter de um governo de conciliação de classes. Como exemplo, podemos citar a criação do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para elaboração de proposta de reestruturação das relações de trabalho e valorização da negociação coletiva, do grupo de trabalho que debate a regulamentação do trabalho por intermédio de plataformas digitais, do grupo de trabalho que trata da igualdade salarial entre homens e mulheres, e a instituição da Mesa Nacional de Negociação Permanente (MNNP).
Porém, as possibilidades de avanço de tais espaços de negociação são muito limitadas e tendem a se encaminharem para a adoção de medidas superficiais, tendo em vista que não há movimentação do governo para a revogação da reforma trabalhista, nem mesmo de forma parcial.
A reforma da previdência também segue intocada e a política econômica de Lula-Alckmin, expressa no novo arcabouço fiscal e na perseguição do déficit zero, representa a continuidade da implementação de políticas de austeridade fiscal, que implicarão na restrição dos investimentos estatais, atingindo diretamente os/as trabalhadores/as do serviço público, aos quais foi apresentada uma proposta de reajuste de apenas 1% para 2024, e em cortes nos investimentos em áreas sociais, que afetarão o conjunto da classe trabalhadora.
Qual tática?
Diante de tal cenário coloca-se a questão de como os/as comunistas devem agir? Primeiramente, é importante estarmos ao lado da classe trabalhadora em suas lutas imediatas por melhores condições de vida e trabalho. Articulando-se aos movimentos de base das diferentes categorias, procurando fomentar a organização e a formação política, através de um intenso trabalho de base.
Há amplos setores do proletariado que se encontram em situação de precarização e desalento, sem a menor perspectiva de acesso ao trabalho, com os quais os/as comunistas já vêm desenvolvendo articulações importantes. Da mesma forma, é fundamental buscar ampliar a inserção junto aos setores estratégicos da classe trabalhadora, vinculados diretamente à produção e circulação de mercadorias.
Outra ação importante é apontar para os limites do governo de conciliação de classe, apresentando que os ganhos conjunturais, que ainda que possam mitigar os problemas econômicos de amplos setores sociais, não são suficientes. Diante de uma nova crise ou aumento da inflação, os aumentos salariais serão corroídos rapidamente.
É preciso retomar o horizonte das lutas pela revogação total da reforma trabalhista e da reforma da previdência; pela redução da jornada de trabalho, sem redução salarial; pela estabilidade no trabalho; pelo salário-mínimo do DIEESE (R$ 6.388,55); pela reestatização das empresas públicas privatizadas; pela luta contra todas as formas de terceirização; pelo fim do banco de horas; pela valorização dos servidores públicos e ampliação dos concursos; pela defesa de salários iguais para trabalhos iguais; pela eliminação das formas modernas de trabalho escravo, expressa, por exemplo, pelo trabalho no sistema prisional.
Mas tais bandeiras táticas não podem se apresentar dissociadas do horizonte estratégico da revolução socialista. É isso o que diferencia os/as comunistas das forças reformistas que atuam no movimento sindical e junto às massas trabalhadoras.
Devemos pautar que não é possível avançar em direitos trabalhistas e sociais sem a luta pela superação do capitalismo. Numa quadra histórica, na qual avança a superexploração do trabalho, medidas paliativas tendem a ser cada vez mais ineficazes e insuficientes. Temos que saber atuar numa conjuntura desfavorável, de refluxo das lutas e de hegemonia de uma perspectiva reformista no seio da classe trabalhadora. Tomando as palavras de Lênin:
A tática do proletariado deve levar em conta, em cada grau do desenvolvimento, a cada instante, esta dialética objetivamente inevitável da história humana; de um lado, utilizando as épocas de estagnação política, ou da chamada evolução “pacífica”, que marcha a passo de tartaruga, para desenvolver a consciência, a força e a capacidade combativa da classe avançada; de outro, canalizando todo esse trabalho de utilização para a “meta final” do movimento dessa classe, capacitando-a a resolver na prática as grandes tarefas quando chegarem os grandes dias “em que se condensem vinte anos”.[8]
O desafio é atuar de forma paciente e constante nos espaços de vida, trabalho e organização sindical da classe trabalhadora, apontando para a necessidade da retomada da combatividade e das mobilizações como formas de resistência à ofensiva do capital e nas lutas por ampliação de direitos.
Sem menosprezar os ganhos conjunturais, mas apontando que eles estão muito aquém das necessidades do povo trabalhador brasileiro e que o governo de conciliação de classes de Lula-Alckmin não resolverá os graves problemas que enfrenta a classe trabalhadora brasileira.
Em época de crise do capitalismo, os espaços para implementação de políticas reformistas são cada vez menores. O desafio é recolocar a luta política no centro dos debates e formações da classe trabalhadora, pautando a perspectiva revolucionária como saída possível para a emancipação dos/as trabalhadores/as do domínio e da exploração do capital.
1 Rodrigo Lima é professor do IFSC e militante do PCB e da Corrente Sindical Unidade Classista.
2 https://painel.ibge.gov.br/pnadc/
4 https://www.dieese.org.br/balancodasgreves/2023/estPesq108Greves.html
6 Rodrigo Lima, A conciliação de classes como farsa, PCB, 2022. Disponível em: https://pcb.org.br/portal2/29169.
8 Vladimir Lenin, A tática da luta de classe do proletariado, 1914. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/lenin/livros/sindicato/01.htm>