A conciliação de classes como farsa

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[Foto: Andressa Anholete/Reuters]

Uma análise crítica sobre o programa de governo da Coligação “Brasil da Esperança”

Por Rodrigo Lima (Professor de Sociologia do IFSC e militante do PCB em Santa Catarina)

A candidatura de Lula à Presidência da República, sustentada pela coligação “Brasil da Esperança” composta pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Partido Verde (PV), Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Rede Sustentabilidade (REDE) Solidariedade (SOL), Avante (AVT), Agir (AGR) e Partido Republicano da Ordem Social (PROS), registrou no Tribunal Superior Eleitoral (TRE) o programa de governo intitulado “Diretrizes para o programa de reconstrução e transformação do Brasil – Lula Alckmin 2023-2026”.

O programa expressa o que foi consensuado entre as direções dos partidos, consistindo em 121 pontos programáticos que são divididos em 3 grandes eixos: a) desenvolvimento social e garantia de direitos; b) desenvolvimento econômico e c) sustentabilidade socioambiental e climática; defesa da democracia e reconstrução do Estado e da soberania.

Em linhas gerais as diretrizes sinalizam para uma perspectiva de restauração dos acordos institucionais e do modelo de desenvolvimento socioeconômico que vigorou até o Golpe de 2016, mas apontando para uma perspectiva muito rebaixada de reversão das contrarreformas neoliberais implementadas nos governos Temer e Bolsonaro, que retiraram direitos da classe trabalhadora, aprofundaram a precarização dos serviços públicos e produziram o aumento da miséria e da fome no país.

A coligação “Brasil da Esperança” reflete uma política de frente ampla, que tem por objetivo dar sustentação à candidatura de Lula, a partir da aliança das forças políticas que apoiaram os governos petistas, com segmentos da direita, que tem como maior expressão o acordo com Geraldo Alckmin, candidato à vice presidência pela chapa, que trocou o tucano do PSDB pela pomba do PSB, passando do papel de ferrenho opositor do PT a um aliado central.

A recomposição lulista agrega em sua base de sustentação apoiadores do golpe de 2016, como é o caso de Paulinho da Força (SOL) e do próprio PSB, que votou em peso pelo impeachment de Dilma. Mas a constituição da frente perpassa as fronteiras da coligação e se revela na aproximação e acordos com figuras como Renan Calheiros (MDB), Eunício Oliveira (MDB) e a família Sarney, dentre outros golpistas e direitistas.

Para além das movimentações das figuras e partidos que permeia a cena política, revelando a busca de novas bases para o projeto de conciliação de classes, se apresenta um programa que sinaliza para a aproximação de projeto lulista com o capital financeiro da Faria Lima, com empresários e banqueiros, com setores do Agronegócio e da burguesia de serviços e industrial, procurando costurar alianças com partes integrantes do bloco no poder.

A chapa Lula-Alckmin, em sua tática de frente ampla elaborada pelo PT, tem basicamente dois grandes objetivos. O primeiro é derrotar o Presidente Jair Bolsonaro (PR) nas urnas e o segundo é reconstituir as bases da Nova República, numa perspectiva de retomar o projeto interrompido com o Golpe de 2016 e a ascensão da extrema-direita ao Poder Executivo Federal. Como sinaliza o documento em sua introdução “O sentido dessa união não é de apenas trabalhar pela vitória eleitoral, mas, sobretudo, por um projeto que reconstrua o país no presente e o transforme para o futuro.”

A partir da análise crítica sobre as Diretrizes e o que o programa da coligação liderada por Lula e Alckmin representa é importante situar em que contexto se apresenta a candidatura de Lula.

Após o Golpe de 2016 e a implementação da agenda ultraliberal e conservadora orientada pelo programa “Uma ponte para o Futuro”, criada para sustentar o Governo ilegítimo de Michel Temer, e em grande medida mantida pelo Governo Bolsonaro, o Brasil passa por uma transição política e econômica significativa, com o aprofundamento das políticas neoliberais e a redução dos direitos para a classe trabalhadora.

A combinação do teto de gastos, da Reforma da Previdência, da Reforma Trabalhista, das Privatizações do patrimônio público, o congelamento de salários, com a perda de renda dos trabalhadores, associados aos cortes em áreas fundamentais como saúde e educação resultaram em uma nova etapa de acumulação capitalista que se expressa em lucros exorbitantes para setores do empresariado, principalmente ligados ao agronegócio, ao varejo e ao sistema financeiro, e no aumento da miséria e das desigualdades sociais no país.

Após o Golpe de 2016 intensificou-se uma agenda de perseguição política contra Lula, que resultou na sua prisão por 580 dias, e teve um novo momento de inflexão com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, consequências diretas das ações políticas da Operação Lava Jato, que sob a bandeira de “combate à corrupção”, conformou-se em um verdadeiro partido político, liderado por Sérgio Moro, que possibilitou a instabilidade necessária para o avanço de uma agenda anti-popular e o crescimento da extrema-direita no país.

Portanto, seria de se esperar que um programa de governo de Lula confrontasse diretamente as políticas implementadas nos últimos 6 anos. Mas não é o que se verifica. Chama atenção que as Diretrizes não mencionam a palavra Golpe em suas linhas. O que expressa a movimentação do PT e de seus aliados na tentativa de recompor e ampliar o leque de alianças com a direita, procurando retomar as bases que sustentaram os governos de conciliação de classes entre 2003 e 2016.

Acordos e aproximações com figuras que protagonizaram o Golpe vem sendo realizadas por Lula desde sua saída da prisão. Políticos como Renan Calheiros, Eunício de Oliveira, Gilberto Kassab e Dário Berger são apenas algumas personalidades da cena política que revelam essa acomodação com os golpistas de 2016. Mas é Geraldo Alckmin, ex-líder tucano e um dos principais opositores dos governos petistas, que teve grande protagonismo no Golpe de 2016, a figura mais emblemática nesse processo. A composição com Alckmin não é o mero resultado da constituição de uma frente ampla que tem como grande objetivo derrotar Bolsonaro, ela revela muito mais. Demonstra o compromisso de Lula e do PT em pactuar com alguns princípios da agenda implementada após 2016. A aliança com Alckmin pode ser entendida como uma nova versão da “carta aos brasileiros” de 2002. Sinalizando aos setores dominantes que em um novo governo petista não haverá uma “guinada à esquerda”, nada de rupturas, apenas restauração.

Ao analisar os eixos políticos do documento duas ausências chamam a atenção. A primeira diz respeito à falta de diretrizes que apontem para a ruptura com o domínio do capital financeiro sobre o Estado brasileiro. Nenhuma linha com propostas que se contraponham ao tripé macroeconômico que sustenta as políticas neoliberais (e que não foram rompidas nos governos petistas). O programa não aponta para nenhuma perspectiva de embate contra a fração financeira e não toca no tema da dívida pública.

Outro ponto ausente relaciona-se ao combate ao fascismo e a fascistização que avança na sociedade brasileira, termos que não aparecem nas diretrizes. A formação da frente ampla em torno de Lula, que teve como uma de suas justificativas a necessidade histórica de derrotar o governo neofascista de Bolsonaro, é usado pela coligação como retórica eleitoral, para justificar a conformação de uma aliança ainda mais à direita e que busca convencer os trabalhadores de que a derrota do bolsonarismo nas urnas será suficiente. Tampouco há um plano para a desfascistização da sociedade brasileira, desconsiderando, que no caso de derrota do presidente genocida, o fascismo seguirá presente e mobilizado em oposição ao governo Lula-Alckmin.

O objetivo principal do programa é a restauração dos marcos republicanos firmados em 1988. Reconstruir, resgatar, restaurar, reinserir, retomar, recuperar são verbos presentes em toda a concepção do programa lulista, numa perspectiva que leva a uma idealização do período pré-2016, numa clara mitificação das gestões petistas no governo federal.

O pacto Lula-Alckmin prevê uma nova retomada do Estado como articulador do crescimento econômico, numa aliança que contemple os interesses das classes dominantes, sem contraposição ao domínio do capital financeiro e com a retomada de políticas distributivas e de implementação de pequenas reformas que amenizem os problemas sociais, sem incidir em mudanças significativas para a classe trabalhadora.

Lula e Alckmin projetam um desenvolvimento econômico sustentável com estabilidade, com o poder público como grande estimulador da economia, sinalizando para uma economia verde inclusiva (muito próxima dos ideais do Green New Deal formulado pelo Partido Democrata nos EUA), com o objetivo de restaurar as condições de vida da imensa maioria da população.

A perspectiva do desenvolvimento do capitalismo brasileiro de forma sustentável não prevê avanços em direitos e transformações sociais significativas, o horizonte é o passado, como se as políticas compensatórias dos governos petistas tivesse resolvido os graves problemas sociais brasileiros. O projeto ainda prevê políticas focalizadas para mulheres, negros, indígenas, quilombolas e LGBTQIA+, juventudes, pessoas com deficiencia, idosos, famílias e animais, mas que se não forem acompanhadas da superação da política econômica neoliberal e da mobilização social serão irrealizáveis na prática.

Lula e Alckmin defendem colocar o povo no orçamento e sinalizam para a revogação do teto de gastos (que na prática já foi rasgado pelo governo Bolsonaro), mas não apontam como avançarão nessa proposta sem contrapor aos interesses do capital financeiro, grande beneficiário da atual política fiscal no país. As reformas sinalizadas no documento, como o caso da reforma urbana, apresentam-se numa perspectiva de financeirização da vida, tendo em vista que a proposta de acesso à moradia consiste na criação de “novos financiamentos adequados para cada tipo de público”.

No que diz respeito ao conflito capital e trabalho, a proposta da chapa é de revogar apenas os tópicos regressivos da reforma trabalhista, sem especificar quais são e sem considerar que o conjunto da reforma imposta por Temer a favor do Capital foi maléfico à classe trabalhadora. A reversão das terceirizações sequer é citada no documento. A dubiedade se apresenta no discurso que aponta para o combate à precarização, mas que não ataca as principais bases de sustentação da superexploração dos trabalhadores brasileiros.

Sobre a reforma da previdência a proposta é de reconstrução dos direitos previdenciários e de seguridade social, por meio da superação das medidas regressivas e do desmonte promovido pelo atual governo. Mas medidas regressivas adotadas pelos governos tucanos e petistas contra os direitos previdenciários ficam de fora da proposta de “recomposição”.

Sobre a educação, para além de sinalizar para o fortalecimento e investimento na área, as diretrizes não apontam para a política de recurso público apenas para educação pública, como base de reversão do desmonte. As diretrizes tampouco versam sobre o papel estratégico das universidades e dos institutos federais no desenvolvimento de ciência e tecnologia no país.

Para o SUS a proposta é recriar programas extintos durante o governo Bolsonaro, mas sem apresentar propostas de reversão do quadro de terceirização do Sistema Único de Saúde para barrar e reverter o avanço das organizações sociais e da rede privada na saúde.

Com relação a segurança pública há a proposta de políticas públicas de prevenção à violência a serem direcionadas para públicos específicos, através do aumento dos investimentos em tecnologia. Não há propostas para uma ampla reforma das polícias militares e das forças policiais. A nova política de drogas sinaliza apenas para o combate a facções criminosas e milícias, sem propor a legalização e descriminalização das drogas e o fim da guerra às drogas.

Para as Forças Armadas, uma das principais instituições desestabilizadoras da República, não é proposta sequer uma reforma, apenas o desejo de que elas cumpram estritamente o que está definido na Constituição Federal.

No eixo sobre Desenvolvimento econômico e sustentabilidade socioambiental e climática, Lula e Alckmin querem estabelecer um cenário de confiança e investimentos e falam em superar o neoliberalismo, mas sem estabelecer os marcos para combater o capital financeiro. Apostam nas medidas do primeiro ciclo lulista, de fomentar o crescimento econômico através do consumo interno, ampliando a oferta e reduzindo o custo de crédito. O programa também propõe medidas para a criação de um novo regime fiscal, com a proposta de tributar os super-ricos fazendo com que eles paguem imposto de renda.

A coligação apresenta a sugestão de uma nova política de preços dos combustíveis e do gás, opondo-se à privatização da Petrobras e da Eletrobras, mas não sinaliza para a reestatização total das mesmas e de nenhuma reversão das privatizações realizadas durante o governo Bolsonaro. Fica implícito no programa a retomada da política dos “campeões nacionais”, a partir do incentivo às empresas privadas nacionais, da mesma forma que aposta no investimento privado como parte da reconstrução: através de créditos, concessões e parcerias.

Lula mantém o agronegócio como central em sua política ao sinalizar para o incentivo a uma agroindústria de primeira linha, competitiva internacionalmente, e promete fomentar o desenvolvimento do complexo agroindustrial.

Por fim, no eixo sobre a defesa da democracia e reconstrução do estado e da soberania, a Coligação propõe recuperar uma política externa ativa e altiva que recoloque o Brasil na condição de protagonista global. As bases do projeto visam a reconstrução da cooperação internacional Sul-Sul, com América Latina e África, priorizando a integração com a América do Sul, a América Latina e o Caribe. Espaços como o Mercosul, a Unasul, a Celac e os Brics serão retomados. O programa se posiciona em contraposição a política unilateral e subordinada aos EUA adotada pelo governo Bolsonaro. Lula também defende a ampliação da participação do Brasil nos assentos dos organismos multilaterais.

Sobre a reforma política há uma proposta vaga de mudança que “fortaleça as instituições da democracia representativa e, ao mesmo tempo, amplie os instrumentos da democracia participativa.” Mas não há maiores sinalizações de fomento a participação popular para além do aumento da representatividade entre mulheres e negros nas instituções. Não há sequer uma proposta de reforma do poder judiciário, apenas o desejo de diálogo permanente e respeito a independência entre os poderes. É desconsiderado o papel central que o judiciário jogou na desestabilização do país e que tem sido um Poder legitimados das contrarreformas neoliberais em curso.

As Diretrizes sinalizam para uma recomposição do Brasil pré-2016, numa política de conciliação de classes renovada. Se em 2002, José Alencar representava o empresário industrial, em 2010, Temer foi escolhido por seu papel de articulador político no legislativo para garantir a “estabilidade” dos governos Dilma, agora entra em cena Alckmin, o político conservador paulista, um dos fiadores do golpe de 2016 para selar o acordo em torno de uma agenda que pretende retomar as políticas sociais e o papel do estado no desenvolvimento econômico, mas garantindo que não haverá mudanças substanciais em relação às políticas implementadas com base na agenda do programa “Uma ponte para o futuro”.

Lula se movimenta junto aos setores da burguesia para apresentar a viabilidade de seu programa político em consonância aos interesses do Capital. A questão é que após o Golpe de 2016 as condições para o pacto pretendido pelo lulismo esvaziaram-se muito. A burguesia avançou sobre os direitos dos trabalhadores, acelerou as privatizações, desmontou boa parte do Estado brasileiro e das políticas públicas, além de ter apostado na crescente fascistização da sociedade.

Lula, mesmo orientado por programa rebaixado de conciliação de classes, não terá margem para implementar medidas que atendam as demandas mais urgentes do povo trabalhador sem confrontar os interesses da burguesia. E não há nenhum sinal em suas Diretrizes e na aliança que está construindo de que esteja disposto a enfrentar tais contradições. Pelo contrário, suas movimentações indicam que um futuro governo terá uma inclinação ainda mais à direita que nos ciclos anteriores.

Agradeço ao camarada Ivan Pinheiro pelas importantes críticas e contribuições enviadas sobre o artigo.

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