O compromisso do governo com o capital financeiro

“Novo” arcabouço é o velho Teto de Gastos

Por André Dainez, militante do PCB Piracicaba

Numa economia capitalista, a acumulação de capital dita o crescimento econômico, isto é, o crescimento da produção nacional. Ao contrário do que os economistas liberais argumentam, são os fatores do lado da demanda que, ao permitir a realização da produção – isto é, que a produção seja de fato vendida –, determinam o crescimento econômico. Assim, dentro dos marcos do modo de produção capitalista, são os gastos em consumo, investimento, os gastos públicos e as exportações que permitem que a produção doméstica encontre mercados e seja, de fato, vendida. Por outro lado, é a expectativa sobre a evolução da demanda agregada que leva à ampliação do investimento privado – cada capitalista individual apenas investe se espera que sua produção seja vendida de forma a valorizar seu capital a uma taxa maior do que as outras alternativas de valorização fictícia (títulos públicos, especulação com terrenos etc).

Partindo de tal constatação sobre o crescimento econômico, fica evidente que a comparação de uma economia nacional com as finanças pessoais ou domésticas é uma comparação descabida. Por trás da aparente simplicidade do argumento dos economistas vulgares, ligados a grandes bancos, corretoras e ao mercado financeiro em geral e dos oportunistas da direita e da extrema-direita de que “não se pode gastar mais do que se recebe” se oculta um grande cinismo. Enquanto as trabalhadoras e os trabalhadores não podem, de fato, gastar mais do que o salário que recebem, a lógica é muito diferente para o Estado. Isto se dá porquet, quando se considera a economia como um todo, os gastos de um agente econômico são renda para outro. Além disso, as receitas do Estado são atreladas ao desempenho da economia – isto é, supondo-se uma carga tributária constante, quanto maior for o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), maior será a arrecadação do Estado.

Dentre os determinantes do crescimento econômico – os gastos que compõem a demanda agregada – temos o consumo, o investimento, os gastos públicos e as exportações.

O consumo, de forma geral, tem muita pouca capacidade de se ampliar de forma autônoma – este é dependente da renda recebida durante o processo de produção. As exportações, por sua vez – ainda que possam ser estimuladas por uma desvalorização cambial, teoricamente -, dependem muito mais das condições da demanda externa pelos bens que o país exporta. Ainda, sobre a possibilidade de induzir um aumento das exportações pela desvalorização cambial, é oportuno lembrar do grande grau de abertura ao setor externo da economia brasileira: a economia brasileira é muito dependente do consumo de bens e insumos importados. Mesmo a produção nacional depende em grande medida de matérias-primas e insumos importados, de forma que uma significativa desvalorização cambial (que implica em aumentar o preço das moedas estrangeiras) tende a gerar impactos sobre a inflação, inibir o consumo (e o acesso da classe trabalhadora a diversos bens) e reduzir o investimento privado (dado o encarecimento dos custos de produção em diversos setores, causado pelo encarecimento das matérias-primas e insumos).

O investimento privado, por sua vez, repousa sobre bases bastante instáveis: a expectativa sobre o lucro futuro, que deriva da expectativa sobre a demanda futura, e a comparação com as diversas outras formas de valorização do capital, em especial na esfera fictícia ou financeira. A capacidade do investimento privado de crescer de forma autônoma, sem ser induzido por uma política econômica que determine o crescimento da economia ou por um plano de investimentos mais amplo, é, assim, bastante reduzida e pouco tem a ver com as expectativas sobre a inflação ou sobre a sustentabilidade das finanças públicas, como repetem os economistas liberais.

Por essa breve análise, fica demonstrado que o único componente da demanda agregada que tem capacidade de crescer de forma autônoma, anticíclica e induzir o crescimento econômico, mesmo em momentos de crise, é o gasto público. O gasto público, além de poder ser determinado com relativa autonomia frente à lógica do lucro (ou seja, pode se expandir durante um período de crise), conta com mecanismos de financiamento privilegiados. O Estado tem capacidade de determinar sua arrecadação e oferece os títulos mais seguros do mercado financeiro – os títulos públicos. Os títulos públicos – mecanismo pelo qual o Estado toma dinheiro emprestado e emite uma promessa de pagamento futura de acordo com uma taxa de juros – são considerados os mais seguros do mercado, posto que são emitidos por um ente (o Estado) que tem capacidade de definir suas receitas e, mais que isso, que produz (“imprime”) a moeda nacional.

A dívida pública é e deveria ser usada como um expediente de investimento na economia – assim como o setor privado toma um empréstimo para investir em um negócio e busca pagar os juros, no futuro, com o lucro que será auferido pelo investimento, o Estado pode (e deve!) contrair um empréstimo (pelo mecanismo da dívida pública) para investir na economia e, futuramente, poderá pagar os juros da dívida pública com o aumento da arrecadação que decorrerá do crescimento econômico. O Estado realiza tal mecanismo justamente quando financia por dívida pública (ou por emissão de moeda) o déficit público.

Fica evidente, assim, que o Estado arrecadar mais do que gasta, obtendo um superávit, significa desviar fundos da demanda agregada (é como se o Estado “retirasse” dinheiro da circulação e não o “devolvesse” à economia, levando a uma contração da demanda agregada). A política de austeridade pressupõe que, para se manter o nível do PIB, ou as exportações ou o investimento privado cresçam pelo menos no mesmo nível que a redução do gasto público. E pressupõe tal crescimento do investimento privado em uma situação que este investimento privado não é induzido!

A dívida pública brasileira e dos países periféricos de forma geral foi apropriada pela especulação financeira com as moedas domésticas. No sistema monetário internacional, que tem o dólar como padrão de reserva de valor, todas as outras moedas (em especial a dos países periféricos) são vistas como “ativos de risco”. Os investimentos financeiros (ou seja, que não são produtivos) que se direcionam a moedas que não o dólar buscam lucrar especulando com a moeda nacional (no caso do Brasil, o real) – isto é, comprando moeda doméstica (reais), aplicando em títulos públicos e depois comprando uma quantidade maior de dólar no mercado cambial doméstico de forma a “resgatar” seu investimento inicial acrescido dos juros.

Na ausência de qualquer controle sobre a entrada e saída dos investimentos especulativos de curtíssimo prazo das economias nacionais e em uma conjuntura econômica internacional na qual o volume dos fluxos financeiros é muito maior do que daqueles que têm como contrapartida a exportação e importação de mercadorias, os países periféricos (assim como o Brasil) são obrigados a oferecer altas remunerações aos títulos da dívida pública, na forma de altas taxas de juros, de forma a atrair estes investimentos especulativos e garantir que não ocorram saídas em massa de capitais (em dólar e moedas estrangeiras) de suas economias, o que levaria a uma grande desvalorização da taxa de câmbio e mesmo a crises cambiais (onde o país não é capaz de cobrir suas obrigações em moeda estrangeira).

É por meio deste mecanismo que as taxas de juros são mantidas altas no Brasil e nos países da periferia do sistema capitalista. E as regras do orçamento público “equilibrado” – o superávit primário, o teto de gastos e o “novo” arcabouço fiscal – não são mais do que imposições do capital internacional aos países emissores da dívida (no caso, o Brasil), de forma a garantir que estes últimos estejam dispostos a sacrificar o crescimento econômico e o financiamento dos sistemas de educação, saúde e seguridade social doméstico para garantir o pagamento dos juros. Não é à toa que estas “regras fiscais” sempre consideram o orçamento público em sua dimensão primária (que exclui juros e correção monetária) e não a dimensão nominal (que inclui juros e correção monetária).

A preocupação com a redução da relação dívida/PIB também não pode ser utilizada como um argumento válido para defender as políticas de austeridade fiscal. Em primeiro lugar, a relação dívida/PIB do Brasil se encontra muito aquém daquela dos países do centro do sistema capitalista (EUA e boa parte da Europa), havendo um bom espaço para crescimento desta relação sem que isto cause maiores problemas ao país (como uma corrida especulativa contra o Real, por exemplo). Em segundo lugar, o ajuste da relação dívida/PIB não pode apenas atuar sobre um dos componentes da relação. As políticas de austeridade, com sua contrapartida negativa sobre o crescimento do PIB, tendem a elevar a relação dívida/PIB, ao contrário do que se prega na vulgata da economia mainstream. O caráter anticíclico do gasto público deve aqui, mais uma vez, ser utilizado como artifício para estabilizar ou reduzir a relação dívida/PIB pelo aumento de seu denominador, isto é, pelo crescimento do PIB. Tal tipo de ajuste, evidentemente, tem ainda a vantagem de não se dar às custas da contração do emprego e da renda dos trabalhadores brasileiros.

O “novo” arcabouço fiscal de Haddad se inclui nestas “regras fiscais” que prometem lograr uma redução das taxas de juros nacionais por garantir uma maior “confiança” do sistema financeiro no orçamento do Estado brasileiro. Tal queda dos juros advinda da melhoria das expectativas sobre o orçamento público brasileiro seria conseguida, todavia, por meio de um grande sacrifício do crescimento econômico doméstico e dos gastos sociais e não pode ter mais que um efeito marginal em uma economia em que a taxa de juros é determinada por mecanismos exógenos (isto é, a taxa de juros da moeda reserva, o dólar, somada a um diferencial de juros que reflete a propensão a risco dos especuladores internacionais) e onde o Banco Central é comandado por um vassalo do capital nacional e internacional, que não hesitará em manter a maior taxa real de juros às custas do desemprego e da fome da classe trabalhadora brasileira.

O “novo” arcabouço fiscal ainda esconde uma perversidade: ao determinar que o crescimento da despesa pública primária cresça em 70% do crescimento da arrecadação tributária, determina que o crescimento do gasto público esteja sempre abaixo do crescimento do PIB (a não ser em uma situação em que se aumente a arrecadação tributária, algo que é inviável de ser feito de forma periódica e também causa impactos negativos sobre a demanda agregada). Tal situação se dá porque a arrecadação tributária no Brasil cresce, em média, de forma proporcional ao crescimento do PIB (BASTOS, 2023, p. 6). Caso a arrecadação cresça mais de 3,57% ao ano, o “novo” arcabouço fiscal estipula o “teto” de 2,5% a.a. para o crescimento das despesas primárias. Assim, como notou Pedro Paulo Zahluth Bastos (2023), numa conjuntura de crescimento econômico, o gasto público passaria a atuar de forma “anticíclica” – isto é, como um “freio” ao crescimento econômico.

O “novo” arcabouço fiscal prevê um “piso” de 0,6% a.a. para o crescimento da despesa pública primária. É alegado que este “piso” atuaria de forma “anticíclica”, ou seja, de forma a estimular a expansão da demanda agregada no caso de uma crise econômica pelo aumento do gasto público em 0,6% a.a. Tal caráter “anticíclico” já pode ser descartado pela própria grandeza do crescimento da despesa pública primária de 0,6%, um valor aquém do necessário para uma política econômica que efetivamente seja capaz de combater uma crise econômica. Mais que isso, antes de se acionar o “piso”, a despesa pública primária atuaria de forma a reforçar a desaceleração da economia. Isto é, quando a taxa de crescimento do PIB estiver reduzindo, apontando para uma recessão, o gasto público contraíria de forma proporcional, justamente em uma situação que as expectativas sobre o lucro levarão a uma redução do investimento privado. Assim, o “piso” do “novo” arcabouço fiscal atua de forma a acelerar os mecanismos de contração da renda e da demanda agregada até que se atinja o “piso” que, de acordo com Bastos (2023, p. 13) e supondo estabilidade da carga tributária, ocorreria quando o PIB crescesse a menos de 0,86% a.a. Neste momento, se acionaria o “piso” que, em meio a contração do investimento privado, do emprego e da renda (e portanto, do consumo) não seria capaz de exercer um efeito “anticíclico” significativo.

O “novo” arcabouço fiscal, desta forma, em sua própria concepção, caracteriza-se como um programa de austeridade fiscal que busca garantir o pagamento dos juros aos credores da dívida pública (em sua maior parte, grandes massas de capitais internacionais geridas por fundos de investimento) em detrimento do crescimento econômico, do nível de emprego e da limitação ou redução dos gastos sociais. É, assim, mais um mecanismo jurídico-institucional típico de um país que é dominado por uma burguesia doméstica antinacional e antipovo, que visa garantir a lucratividade do capital às custas do desemprego, da fome e da exclusão da classe trabalhadora do acesso aos serviços públicos. O “novo” arcabouço fiscal, assim, por si só é um mecanismo jurídico-político perverso e que tende a se agravar com as alterações no âmbito da discussão no legislativo – dentre elas, cabe destacar a inclusão do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) dentro da regra de crescimento das despesas públicas.

Cabe destacar, também, que o “novo” arcabouço fiscal limitará em grande parte a capacidade do governo Lula de materializar grande parte de suas propostas de campanha. Neste cenário, a insatisfação com os limites do reformismo petista e a possível corrosão da popularidade do governo pode abrir espaço para mais uma onda de crescimento da extrema direita brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASTOS, Pedro Paulo Zahluth. Quatro Tetos e um Funeral: o novo arcabouço/regra fiscal e o projeto social-liberal do ministro Haddad. Nota do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) do Instituto de Economia da Unicamp, Campinas, v. 1, n. 21, p. 1-2, abr. 2023. Disponível em: https://www.eco.unicamp.br/noticias/quatro-tetos-e-um-funeral-o-novo-arcaboucoregra-fiscal-e-o-projeto-social-liberal-do-ministro-haddad. Acesso em: 22 maio 2023.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil