A tentação fascista das elites europeias

Créditos / Bill Kerr Flickr (CC BY-SA 2.0)

José Goulão

ABRIL ABRIL

Os mecanismos que regulam e garantem a gestão política pelas elites a serviço das oligarquias afinam-se, tornam-se mais manipuladores e autoritários em tempos de crise da ordem internacional dominante.

 

O comportamento dos governos dos países europeus, entre eles a esmagadora maioria dos que se extinguiram no interior da OTAN e da União Europeia, em relação à guerra na Ucrânia e ao extermínio da população palestina, em prática há mais de 76 anos pela entidade que materializou o sionismo – Israel –, obriga-nos a refletir seriamente sobre a relação entre a Europa e o fascismo. Para ser mais correto: sobre a incorrigível tentação fascista dos Estados europeus, como se o Terceiro Reich e a Segunda Guerra Mundial tivessem ficado definitivamente para trás depois de supostamente aprendidas todas as lições que nos deixaram.

Se observarmos com objetividade, dispensando as teorias manipuladoras e belicistas que brotam do tentacular aparelho de comunicação/propaganda e dos historiadores regimentais que fazem da mentira instrumento científico, concluiremos, porém, que esta tentação não é surpreendente. Quando muito, manifesta-se de uma forma mais aberta e descarada do que seria de esperar nesta fase em que se realizam esforços intensos para combater o ceticismo crescente nos povos ocidentais quanto à democracia liberal como mãe de todas as felicidades, de todas as justiças; uma espécie de antecâmara do fim da história e desse prometido paraíso na Terra que seria a instauração do globalismo planetário.

Encontramos assim, pela ordem natural das coisas, uma interligação carnal entre a democracia liberal, a ordem internacional baseada em regras através da qual o imperialismo soterrou o direito internacional, e o sistema econômico-financeiro do neoliberalismo, que sem qualquer hesitação poderemos qualificar como fascismo econômico.

No Ocidente, um conceito geoestratégico transcontinental que se define a si próprio como «o mundo civilizado», o fascismo econômico comanda a gestão política, que tenta manter-se nos parâmetros daquilo a que chamam a «democracia liberal», para que a ideia popularmente repudiada de fascismo não pareça presente na vida das pessoas.

Nenhum dirigente que integre as elites políticas europeias admite que se fale do nazifascismo que governa a Ucrânia e tolera que se compare o comportamento sionista em relação aos palestinos e, mesmo aos judeus que não cabem no círculo de raça semítica «pura», às práticas nazistas.

O envolvimento direto, desde 2014, da OTAN e da União Europeia na guerra que o regime racista e de inspiração nazista de Kiev trava contra os povos ucranianos, sejam quais forem as suas origens étnicas, uma vez que as hordas banderistas no governo e nas forças armadas não poupam sequer as vidas dos ucranianos «puros», significa que o atlantismo e o europeísmo federalista tornam a democracia liberal cúmplice e aliada do fascismo.

O esvaziamento dos arsenais europeus de armas e o empobrecimento das populações como consequência das sanções e do esforço de guerra para sustentar Zelensky e os psicopatas que dele se servem – de forma a criar uma imensa plataforma de agressão aos povos da Federação Russa – significam que a democracia liberal está perante uma incômoda encruzilhada: a componente «democrática» começa a ser posta em causa pelas populações, apesar das operações de lavagem cerebral cientificamente praticadas pelo universo midiático corporativo e da pressão das circunstâncias, isto é, a agonia da ordem internacional baseada em regras perante a afirmação cada vez mais sustentada do conceito de uma nova ordem recuperando a vigência do direito internacional, força-a a desvendar as suas tentações fascistas na medida em que os mecanismos tradicionais de liberalidade são inexoravelmente substituídos por um autoritarismo cada vez mais evidente.

Regresso às origens
A democracia liberal está fazendo, desta maneira, o caminho de regresso às origens. De um ponto de vista simplista, mas que respeita o rigor histórico, pode dizer-se que a estruturação da democracia liberal através das últimas cinco décadas nasceu na sequência do golpe fascista dos Chicago Boys no Chile, através do general Pinochet, que representou simultaneamente a vitória do neoliberalismo, o laissez faire, a anarquia capitalista sobre as tendências keynesianas, no quadro das relações de forças no interior do sistema imperialista. Provou-se que o capitalismo com «face social» é uma contradição aberrante. O capitalismo e o neoliberalismo são uma e a mesma coisa, indissociáveis. Também ele regressou às origens.

O fascismo, com a sua indispensável componente militarista, é o regime de sonho da selvageria capitalista, o neoliberalismo, como demonstrou o regime terrorista do Chile engendrado e montado em Washington. A democracia liberal, sucedendo à «democracia ocidental», esta como cobertura do capitalismo keynesiano, é a fachada política do fascismo econômico, como logo explicou Margaret Thatcher, admiradora confessa de Pinochet, num prólogo à avalanche neoliberal que marcou as telúricas transformações mundiais nos anos oitenta e noventa do século passado; e que pode personificar-se nas figuras de Ronald Reagan, Mikhail Gorbatchov e do golpista político polaco Woytila, mais conhecido pelo heterônimo de papa João Paulo II, além da já citada primeira-ministra britânica.

As oligarquias financeiras e econômicas, de âmbito cada vez mais global, tendem a recorrer ao fascismo quando se sentem ameaçadas ou dão vazão às pulsões gananciosas que arrasam direitos sociais, políticos e humanos para garantir lucros sem limites. Nessas condições, sendo a política ocidental uma alavanca do poder oligárquico, a democracia liberal cede gradualmente ao fascismo, ainda que sem admiti-lo.

As forças políticas fascistas avançam em todas as nações europeias, não só na Ucrânia, nos Estados bálticos, na República Checa, na Polônia, na Bulgária, Romênia, Moldávia, Hungria, Espanha, Portugal, França, Alemanha, Reino Unido, Áustria, Finlândia. Na Itália, nos Países Baixos e na Suécia ascenderam ao poder por via eleitoral, tal como Hitler na Alemanha: o nazifascismo, como se prova, não se impõe somente através de golpes militares. No entanto, nenhuma dessas organizações ou partidos, nenhum dos seus dirigentes admitem ser fascistas, são sempre qualquer coisa «democrata», «direita conservadora», «direita liberal» e outras. Como os neoconservadores estadunidenses, pais fundadores do fascismo aplicado às circunstâncias atuais, jamais admitiriam ser o que são: fascistas.

Os membros desta constelação transnacional declaram-se perfeitamente integrados no «quadro democrático», beneficiando-se da complacência dos órgãos de fiscalização das Constituições, mesmo que estas sejam explicitamente antifascistas, como acontece na Itália e em Portugal. Beneficiam-se dos favores do polvo midiático corporativo, que começa por expô-los como fenômenos «curiosos» e rapidamente evoluem para o tratamento sério e politicamente motivado, instilando nas populações indefesas, vítimas da asfixia do pluralismo informativo e de opinião, a ideia de que organizações desse tipo são peças legítimas do «jogo democrático» e estão aptas a governar. A palavra «fascismo», porém, está sempre ausente, e se alguém a denuncia, como ocorre a propósito da Ucrânia, é trucidado na comunicação social; por outro lado, quando alguém se confessa fascista, como aconteceu recentemente em momento de empolgante sinceridade durante o congresso da maior entidade salazarista portuguesa, o episódio é considerado «uma brincadeira».

A democracia liberal, conceito e prática essenciais na formatação da «civilização ocidental» como única admitida no espaço global, e cuja imposição é frequentemente exportada em forma de guerra, é ao mesmo tempo uma perversão da democracia e um caminho para o fascismo.

Numa democracia liberal quem decide o funcionamento da sociedade é uma elite burocrática, de formação tecnocrática e desumanizada, fiel aos poderes oligárquicos sem fronteiras, servida por um aparelho de comunicação/propaganda que recorre frequentemente a métodos de terrorismo mental para censurar a divergência política e a exposição de outras realidades. Ao banir, de fato, a liberdade de opinião e o pluralismo na informação, a democracia liberal pisa já os terrenos do fascismo.

Democracia, numa definição simples, é o sistema em que a vontade do povo livremente expressa se reflete depois no funcionamento dos órgãos de poder. Estes têm a obrigação democrática de governar com o povo e não de governar contra o povo. Para identificar a democracia basta uma palavra, um substantivo. A experiência diz-nos que adjetivá-lo não é um bom augúrio. Se a casta política que sequestrou o poder e faz dele o que muito bem entende – desde que respeite as oligarquias econômico-financeiras – necessitou de acrescentar «liberal» à democracia, como anteriormente recorreu ao adjetivo «ocidental», é porque, querendo afirmá-la como única, civilizada e distinta de outras formas de poder, adotou um modelo – e principalmente um funcionamento – que acaba por falsificar o conceito autêntico de democracia. Como sabemos muito bem, pela experiência de todos os dias, a democracia liberal não ecoa a voz do povo, a contraria, no fundo falta ao respeito ao povo submetendo-o a uma situação de maioria inerte, desprezada e humilhada.

A falsificação eleitoral
Quanto ao pluralismo político, é uma farsa. Os governos e outros órgãos de poder emergem apenas do círculo das classes políticas, cuidadosamente expurgadas de presenças daninhas, repartidas em rótulos partidários que, por muito diferenciados que sejam em matérias programáticas, que não cumprem, convergem ao serviço do essencial – o fascismo econômico, o neoliberalismo. Quando os interesses oligárquicos, de vocação global mas tutelando, de fato, uma minoria planetária de 15% que corresponde ao conceito geoestratégico de Ocidente, se sentem ameaçados, a democracia liberal aceita reciclar-se em fascismo, num ápice ou gradualmente, conforme as circunstâncias e as urgências.

Na democracia liberal o povo tem liberdade de voto, sem dúvida. Mas o seu voto pouco ou nada influencia a governança; os eleitores são induzidos a escolher apenas entre os rótulos da classe política, os partidos com «vocação para governar», isto é, neoliberais, adoradores e serviçais da ditadura do mercado.

Como se constitui um rebanho eleitoral? O aparelho midiático é a ferramenta mais poderosa, rejeitando, silenciando, deturpando e caluniando as organizações e dirigentes dissonantes, adversários do capitalismo, sobretudo do neoliberalismo, em primeiro lugar reduzindo a pó as leis eleitorais que estabelecem tratamentos igualitários dos candidatos e a salvaguarda do pluralismo real.

As campanhas eleitorais são vazias de conteúdos políticos, dominadas por fait-divers transformados em acontecimentos magnos, isentos de ética, explorando as reações mais primárias dos eleitores através da mentira, de calúnias lançadas sobre os verdadeiros adversários e da demagogia. A política transforma-se num espetáculo tacanho propício à alienação e que, de fato, impede a reflexão e o esclarecimento. Regra geral, o formato escolhido para os debates, estruturados como combates de boxe (como caricaturas dos combates de boxe autênticos, que têm ética) são espaços de exibicionismo, narcisismo e fraude, incitando os eleitores a escolher em função de temas acessórios ou mesmo já previamente contaminados por preconceitos, impondo decisões mais ou menos inevitáveis. Mesmo assim, como no caso de Portugal, existem os debates da primeira divisão, que preenchem todo o universo de acesso televisivo, e os de divisões inferiores, só acessíveis em canais de âmbito restrito. Uma violação óbvia do direito eleitoral. A primeira divisão, como se percebe, está reservada apenas aos dirigentes com «vocação para governar», servidores do neoliberalismo, portanto. Só esporadicamente, quando tem do outro lado da mesa os autênticos candidatos a primeiro-ministro, é que uma organização condenada à segunda divisão é autorizada à televisão aberta e de difusão geral.

Estes mecanismos que regulam e garantem a gestão política pelas elites a serviço das oligarquias afinam-se, tornam-se mais manipuladores e autoritários em tempos de crise da ordem internacional dominante; muito mais ainda em fases de risco existencial, como a presente. A ordem internacional baseada em regras, isto é, a base «legal» do imperialismo e do colonialismo habituados à impunidade e ao poder inquestionável da força e dos proclamados desígnios históricos e divinos, agora também globalistas, da «nossa» civilização, vive o desespero de estar sendo posta em causa pelo resto esmagadoramente majoritário do mundo. Povos, culturas e civilizações condenados à submissão colonialista e imperialista durante centenas e centenas de anos estão perdendo o medo, aprendem a desafiar tabus e regras inimigas dos seus interesses, saqueadoras dos seus bens, e começam a rebelar-se contra a velha ordem.

A maioria dos Estados mundiais perceberam que podem desenvencilhar-se da submissão e associar-se como iguais dentro de um imenso espaço onde vigora o direito internacional, além de existirem condições para viverem e progredirem conservando a independência, a liberdade de defender os seus bens e interesses, beneficiando-se ainda de uma cooperação mutuamente vantajosa com os seus pares.

Em desespero, o Ocidente pretende, a todo o custo, impedir esta transcendente mudança recorrendo aos únicos métodos que conhece: o poder da força, a guerra, a tentação fascista e, em última análise, se lhe for permitido, o extermínio da humanidade. Quem pratica genocídios em campos de concentração ou em regiões onde vivem populações indefesas e abandonadas como a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, quem multiplica guerras sem fim para que a sua «ordem» e as suas «regras» arbitrárias e casuais sobrevivam, será capaz da «solução final» extrema, não duvidemos.

O fosso entre os povos ocidentais e as suas elites políticas submissas e corruptas, porém, está se alargando. O desequilíbrio de meios entre os dois campos parece intransponível, mas ainda é possível inverter o jogo, como a história milenar – onde a «civilização ocidental» é apenas mais um episódio entre tantos – nos ensina.

O presente artigo foi originalmente publicado no sítio da Strategic Culture Foundation.