Alcântara-MA pertence ao Brasil ? E os quilombolas de lá….

Comissão Nacional das Lutas Antirracistas e dos Povos Indígenas

Partido Comunista Brasileiro (PCB)

A história nos diz, embora existam algumas divergências em relação a datas e períodos, que o Maranhão, onde situada a cidade / município de Alcântara, durante alguns séculos não integrava o Estado do Brasil. A divisão colonial portuguesa, em síntese, criara, no que hoje é o território brasileiro, o Estado do Grão – Pará e Maranhão ao Norte e Oeste e o Estado do Brasil, situado a Leste e Sul, resumidamente. Parece haver consenso de que a integração política do que hoje é a Amazônia – em uma compreensão extensiva – somente de fato ocorreu já no Brasil imperial e pós 1822.

A pergunta que intitula esse texto parece fazer tanto sentido hoje como fazia há cerca de dois séculos. A matéria constante do link https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2024/01/29/quilombolas-rompem-com-governo-lula-em-negociacao-sobre-base-de-alcantara.htm?cmpid=copiaecola nos dá pistas concretas para uma resposta, talvez mais de uma !

O conflito em questão remonta há cerca de 40 anos, quando instalada em Alcântara a Base Espacial de Alcântara – Centro Espacial de Alcântara ( CLA ), âncora do Programa Espacial Brasileiro, ocupando uma área de 8,7 mil/ha. Por ocasião da instalação do CLA, mais de 300 famílias de quilombolas foram deslocadas de mais de 30 povoados onde viviam mais que secularmente para 7 agrovilas ( sic ! ) com promessas de assistência rural, educacional, saúde, transporte etc etc, mas a realidade em pouco tempo se mostrou outra, cruelmente outra. Literalmente impedidos de exercer as atividades de subsistência e para a existência que então desempenhavam – parte óbvia da sociabilidade específica de uma população tradicional –, tais como pesca, coleta de mariscos, pequenas e médias lavouras, essas famílias foram definhando, muita gente foi se acabrunhando, ensimesmando, adoecendo, literalmente. Centenas rumaram para S. Luís, capital do estado, um êxodo que alcançou sobretudo a juventude e as e os de média idade, parcela considerável foi viver nas periferias daquela cidade, sujeitando-se à toda sorte de empregos de baixíssima qualidade, ao subemprego e até formas não lícitas que sobrevivência física reclamava.

Do texto da matéria acima, vale destacar para melhor compreensão do que se passa:

“ Entidades quilombolas rompem com o governo brasileiro e deixam, pelo menos de forma provisória, os mecanismos criados para tentar chegar a um acordo sobre o uso da Base Espacial de Alcântara (MA) e a garantia de direitos das comunidades locais. Em abril de 2023, foi criado um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), com o objetivo de apresentar propostas para a titulação territorial das Comunidades Remanescentes de Quilombos de Alcântara. O grupo teria de compatibilizar os interesses das Comunidades e do Centro Espacial de Alcântara. O desafio era grande: permitir o desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro, mas sem que a agência crie obstáculos para a garantia dos direitos das comunidades locais. ”

Essa iniciativa, a criação pelo Estado brasileiro desse grupo de trabalho interministerial, decorreu de atitude do governo brasileiro ante a decisão Corte Interamericana de Direitos Humanos ( CIDH ) havida há pouco tempo e que de modo peremptório reconheceu a extremada violação dos direitos dessa população tradicional pelo Estado do Brasil e a óbvia necessidade de reparação devida à comunidade quilombola de Alcântara. Porém, aquilo que parecia algo sério e de plena atenção à decisão da CIDH, tem se revelado um enorme engodo.

A “ Nota pública das entidades representativas das comunidades quilombolas de Alcântara sobre a retirada do grupo de trabalho interministerial ( GTI / Alcântara ) “ das organizações quilombolas merece ser transcrita na íntegra, não só pelo resumo histórico que contém, mas também por se tratar de altivo documento de um povo que rejeita a conciliação de classes promovida por esse governo e subalternização dos seus direitos em razão dos interesses do capital nacional e internacional, como se vê abaixo :

As entidades representativas das comunidades quilombolas de Alcântara/MA, participantes do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) instituído pelo Decreto n. 11.502, de 25 de abril de 2023, manifestam nesta Nota suas considerações e posicionamento a respeito do trabalho desenvolvido pelo Grupo até o presente momento.

O grupo interministerial, instituído em abril de 2023, efetivamente iniciou seus trabalhos no mês de setembro do mesmo ano. Desde o início das reuniões, as entidades representativas vêm ocupando as quatro vagas destinadas à representação quilombola. Ao longo das 05 reuniões até agora realizadas, ficou evidenciado que o propósito do mesmo é encontrar uma forma de conciliação entre os interesses dos militares da Força Aérea Brasileira e os direitos ancestrais ao território tradicional, aos recursos naturais e à propriedade coletiva. O Programa Espacial Brasileiro, que arroga para si a prerrogativa de desenvolvimento do Centro de Lançamentos para fins comerciais, porém, nunca apresentou estudos técnicos que justificassem a necessidade de expansão da área atualmente ocupada pelo Centro de Lançamento – de 8,7 mil/ha para 21,3 mil/ha – sobre o território quilombola; tampouco, apresentou qualquer estudo de viabilidade econômica que permita saber ou estimar quais as reais vantagens econômicas geradas pela aludida política de privatização espacial a ser desenvolvida a partir de Alcântara e que, segundo o governo, demandaria a expansão da Base espacial.

Tais informações, segundo o Documento Base do Protocolo de Consulta e Consentimento Prévio das comunidades, constituem primeira etapa necessária para o avanço da consulta prévia, pois possibilitariam o consentimento informado quanto às justificativas, características, viabilidade e impactos da expansão do empreendimento que atingirá, ao menos, 27 comunidades quilombolas do litoral (cerca de 2 mil pessoas). A conduta do Estado, ao negar acesso ao mínimo de informações sobre a sugerida expansão do CLA, atinge por completo a noção de uma Consulta informada.

O GTI, contudo, não tem buscado solucionar a dívida histórica do Estado brasileiro de titular as terras quilombolas. Ao invés disso, o Governo Federal “busca alternativas para a titulação territorial” com o mero intuito de reiniciar processo de conciliação dos interesses estatais com os direitos das comunidades no que concerne à utilização de área de 12,645 ha., pertencente ao território quilombola, localizada no litoral. A tentativa conciliatória, prevista no Art. 11 do Decreto 4.887/2003 que regulamenta a titulação das terras ocupadas por remanescentes de quilombos, já ocorreu e se estendeu por longos cinco anos, tendo sido iniciada em maio de 2008 e encerrada pelo Diretor da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF) em janeiro de 2013. O encerramento do processo, sem atingir os objetivos conciliatórios, decorreu da falta de providências dos próprios organismos estatais interessados.

Ademais, segundo a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2002, a conciliação entre projetos dessa natureza, por envolver direitos de povos e comunidades tradicionais, deve se dar, necessariamente, mediante procedimento de consulta e consentimento prévios, livres, informados e de boa-fé.

Conforme o Decreto 11.502/2023, a composição do GTI conta com 13 representações ministeriais e apenas 4 representações quilombolas, o que revela um drástico desequilíbrio de poder na representatividade dos participantes.

Ressalte-se que nenhuma representação quilombola de Alcântara ou de instituição que lhes assessore foi consultada para a edição do Decreto, recebido com grande surpresa quando anunciado na audiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em abril de 2023.

Desde o início dos trabalhos, as entidades quilombolas alertaram para o desequilíbrio na sua representatividade e suas possíveis consequências. Os pedidos de equiparação de representação não foram atendidos. Igualmente não foi respeitada a solicitação de que, pelo menos, pudessem se somar ao grupo outras entidades, públicas e privadas, com conhecimento técnico sobre o caso, que há décadas atuam em parceria com os quilombolas. Decisões como essas evidenciam que o GTI não tem o compromisso de estabelecer diálogo que, efetivamente, respeite o equilíbrio de forças e as formas de auto-organização das comunidades. De igual modo, reproduz a postura autoritária com a qual o Estado brasileiro trata o caso Alcântara há mais de quarenta anos.

Essa situação também vai de encontro ao que consta no Documento Base do Protocolo Comunitário sobre Consulta e Consentimento Prévio Livre e Informado

(CCPLI) das Comunidades Quilombolas do Território Étnico de Alcântara, publicado e encaminhado formalmente ao Governo Federal, em agosto de 2019. Ali está estabelecido pelos quilombolas o caminho para a efetivação de sua Consulta. Essa escolha faz parte do direito à autodeterminação dos povos tribais, protegido pela OIT.

Por essa razão, as representações quilombolas participantes do GTI acreditaram que o Governo Federal respeitaria o referido Documento Base, cumprindo as diferentes etapas ali previstas. Isso nunca ocorreu! Ao contrário, conforme consta no artigo 2º, II, do referido Decreto n. 11.502, o governo pretende “formular proposta de ato normativo que regulamenta o Protocolo de Consultas

Prévias, Livres e Informadas às Comunidades Remanescentes de Quilombos de Alcântara” em clara afronta ao princípio da autodeterminação dos povos, presente na Convenção n. 169 da OIT. Essa proposta tem sido reiteradamente rechaçada pelas representações quilombolas no GTI, por entender que ela ofende a referida Convenção.

As representantes também apontam como quebra da boa-fé a realização de reunião trabalho entre consultorias jurídicas ocorrida ainda no mês de dezembro de 2023 sem a presença das assessorias jurídicas das representações quilombolas para tratar de propostas e instrumentos ou cenários jurídicos hipotéticos de eventual acordo de compatibilização dos interesses em questão. Fato que demonstra desprezo em oportunizar efetivamente às comunidades participação nos espaços de decisão e debate, reduzindo as entidades representativas a mera participação alegórica com vistas a legitimar ou anuir a decisões tomadas no âmbito dos órgãos governamentais.

Diante deste contexto, as entidades representativas das comunidades quilombolas de Alcântara comunicam publicamente sua retirada provisória do Grupo de Trabalho Interministerial. A permanência das representações quilombolas em tal fórum, como aqui justificado, não resultará na titulação das terras aos quilombolas, na sua inteireza e plenitude, conforme historicamente reivindicando. Ao contrário, transmite uma falsa noção de consulta realizada às comunidades quilombolas, legitimando propostas que desconsideram as normas internacionais de direitos humanos e as decisões judiciais já proferidas pelo Poder Judiciário.

Ressaltamos que o ingresso das entidades representativas das comunidades de Alcântara no GTI se deu como ato de boa-fé, movido pela crença de que o atual Governo iria, concretamente, mudar o rumo histórico até aqui dado ao caso de Alcântara. A retirada dessas entidades da participação do grupo interministerial dá-se de forma coerente com a luta histórica pela garantia incondicional da titulação do território, que requer um diálogo intercultural visando o consentimento informado das comunidades com base nos princípios de Direitos Humanos, e Convenção n. 169 da OIT.

As entidades representativas não descartam a possibilidade de reconsideração do gesto de retirada do GTI, mas é preciso que governo brasileiro ofereça as condições justas e equilibradas para o debate e, principalmente, disponibilize estudos técnicos e científicos que permitam às comunidades formar opinião e tomar decisões, a partir de dados reais e concretos, bem como apresente o planejamento das ações pretendidas. Consideramos extremamente grave que o Estado não possua, em 40 anos, estudos técnicos e científicos sobre seu projeto aeroespacial, e menos ainda, sobre a pretendida expansão do CLA.

Não é admissível, nem jurídica, legal ou eticamente aceitável que se pretenda expulsar comunidades tradicionais de suas terras ancestrais em nome de uma expectativa de projeto, dada a completa ausência de estudos e dados reais sobre a proposta. Mais inadmissível ainda que o Estado brasileiro venha há mais de três décadas negando o direito de propriedade coletiva das comunidades quilombolas de Alcântara em prol de uma expectativa de mercado – aeroespacial – sustentada pelos militares, porém, sem qualquer base técnica e parâmetros/estudos econômicos públicos, conforme demonstrado nas reuniões do GTI. Não resta alternativa ao governo brasileiro, senão a imediata titulação do território, este sim, fundamentado e reconhecido em peças técnicas, acadêmicas e jurídicas amplamente conhecidas por órgãos governamentais.

Em uma eventual reconsideração e retorno ao GTI, consideramos importante que seja precedido de uma audiência com o Presidente Lula para que se possa debater o dever constitucional de titulação do território, na sua totalidade; conforme reiteradamente afirmado no GTI, a imediata titulação do território é condição primeira para o avanço de qualquer debate e negociação com o Estado brasileiro.

Nenhum povo planeja seu futuro e decide sobre seu destino sem o título de propriedade em mãos.

Por fim, reafirmamos nosso compromisso de continuar mobilizando, assim como de informar nossas comunidades sobre os trabalhos e propostas produzidas até a presente data no âmbito do GTI. Reafirmamos ainda: direito constitucional não se negocia, se aplica! Exigimos que o governo federal cumpra com seu dever constitucional de titular o território quilombola de Alcântara nos termos do laudo antropológico, produzido no âmbito do Inquérito Civil Público nº08.109.000324/99-28 do Ministério Público Federal.

Alcântara/MA, 26 de janeiro de 2024.

Associação do Território Étnico Quilombola de Alcântara – ATEQUILA

Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara – MABE

Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Alcântara – MOMTRA

Sindicato dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares de Alcântara – STTR/Alcântara

A Constituição Federal reconhece os direitos das comunidades remanescentes dos quilombos aos seus territórios. A Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, organismo ao qual o Brasil está jungido quanto ao cumprimento das suas decisões ante o Pacto de São José da Costa Rica, expediu sentença indelével quanto aos direitos dos quilombolas de Alcântara. Porém, como visto, o Estado do Brasil age como se não se lhes fossem aplicáveis esses direitos, como se ainda fizessem parte de um outro Estado ( o do Grão Pará e Maranhã ), não alcançado pelas normas constitucionais do Estado do Brasil e das decisões da CIDH, apesar de toda a pompa e circunstância que dedicou à sessão de CIDH em Santiago do Chile. O Estado brasileiro, por esse e outros governos que o antecederam ao longo de décadas, segue em profundo menosprezo quanto aos direitos dos aquilombados de Alcântara, assim como o faz em relação a imensa maioria de quilombos e quilombolas país afora, com uma política de faz de conta, distribuindo migalhas assistenciais e muito palavratório. A resolução da “ questão quilombola “, que é o reconhecimento, a plena e efetiva titulação dos territórios “ pois nenhum povo planeja seu futuro e decide sobre seu destino sem o título de propriedade em mãos “, permanece sendo tratada como um direito de segunda ou terceira classe, afrontando tratados e convenções internacionais e a própria Constituição da República, que, como dissemos, parece não alcançar pelas lentes de anteriores e desse governo os quilombolas de Alcântara.

Por isso reafirmamos em alto em bom som :

– Todo apoio à luta quilombola de Alcântara, respeito e titulação plena já !

– Todo apoio à luta de quilombos e quilombolas de todo o país, que se cumpram tratados e convenções internacionais e a Constituição da República !