OTAN: 75 anos de guerra contra a humanidade (II)

Créditos / OTAN


José Goulão – AbrilAbril

A OTAN como berço da União Europeia

(continuação)

Quatro dos considerados «pais fundadores» do processo de integração que conduziu à União Europeia foram subscritores do Pacto do Atlântico, uma significativa geminação essencial para concretizar a satelitização da Europa como uma estratégia de fundo do poder imperial dos Estados Unidos da América.

Paul-Henri Spaak, ministro dos Negócios Estrangeiros da Bélgica, depois primeiro-ministro, ficou conhecido como «senhor Europa» pelo seu envolvimento persistente na criação de instituições para a integração europeia, designadamente o Tratado de Roma de 1957, e pelo apego à fundação da OTAN, de que acabou por ser secretário-geral de 1957 a 1961. A sobreposição da evolução da OTAN e do processo de integração europeia está sempre presente na atuação deste dirigente socialista belga, que foi igualmente o primeiro presidente da Assembleia Geral da ONU.

Em Washington, Spaak deixou a mensagem canônica sobre as necessidades «defensivas» da inocente civilização ocidental: «o novo pacto não é contra ninguém, não ameaça ninguém a não ser, naturalmente, qualquer pessoa ou pessoas que possam fomentar a ideia criminosa de recorrer à guerra».

Robert Schuman, designado «pai da Europa» a par do seu compatriota Jean Monet, ambos defendendo a criação de uns Estados Unidos da Europa, fazendo uso abusivo e descontextualizado da ideia expressada um século antes por Victor Hugo, foi o representante da França em Washington. Proferiu uma declaração piedosa de que «a salvação das nações não pode basear-se num nacionalismo egoísta mas deve apoiar-se na aplicação progressiva da solidariedade humana». Ou seja, tudo quanto a OTAN e a União Europeia são hoje, dissolvendo a soberania das nações em vez de as «salvar», armando e militarizando a «solidariedade humana». O seu discurso de 9 de maio de 1950, conhecido como a «Declaração Schuman», é considerado pela autarquia de Bruxelas como o acto de fundação da União Europeia.

Dirk U. Stikker, banqueiro e industrial em funções de ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda, subscreveu a fundação da OTAN enaltecendo que «finalmente prevalece a verdade de que o Atlântico Norte é uma auto-estrada que une, não uma barreira que divide. Regozijemo-nos», acrescentou, «com o pensamento de que os norte-americanos e os europeus ocidentais se encontraram num edifício comum dedicado à paz». Considerado demasiado pró-EUA, mesmo pelos padrões da OTAN, este dedicado defensor da atuação conjunta da aliança com a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, um embrião da União Europeia, falhou a primeira tentativa para ser nomeado secretário-geral atlantista, cargo que acabou por desempenhar entre 1961 e 1964.

Joseph Bech, que como refugiado político durante a Segunda Guerra Mundial escolheu o Portugal de Salazar como seu primeiro lugar de exílio, foi o representante do Luxemburgo em Washington. É considerado um dos «pais fundadores» da integração europeia, depois de ter patrocinado a constituição do Benelux – Bélgica, Holanda e Luxemburgo. Segundo o então ministro dos Negócios Estrangeiros luxemburguês, «os Estados signatários do Pacto do Atlântico constituem ao mesmo tempo a mais formidável e mais sinceramente pacífica coligação de forças materiais e morais que já foi criada pelas nações para garantir a sua segurança e poupar o mundo aos horrores da guerra». Perdeu-se um meritório escritor de ficção.

O conde Carlo Sforza, por Itália, qualificou a assinatura do pacto como «um dos acontecimentos mais nobres e generosos da humanidade». Halvard Lange, representante norueguês e um dos «três sábios» que apresentaram um relatório sobre a «cooperação não-militar» no interior da OTAN, qualificou a aliança como «um pacto de paz» que se «dirige unicamente contra a própria agressão».

O representante do Canadá foi o futuro primeiro-ministro Lester Pearson. O chefe da diplomacia dinamarquesa, Gustav Rasmussen, compareceu contrariado em Washington, obedecendo a ordens do primeiro-ministro Hans Hedoft, e declarou-se «um signatário apreensivo». Já o representante islandês, Bjorn Benediktsson, futuro primeiro-ministro de um país que nem sequer tem exército (mas está ocupado por bases militares estadunidenses), partiu para Washington entre protestos massivos e violentamente reprimidos da população contra a integração na OTAN, nos quais se exigia a convocação de um referendo sobre o assunto. Um simples ato democrático que até hoje não foi realizado em qualquer dos 32 países que integram a aliança. Nestas matérias da guerra e de a OTAN, por exemplo, ser responsável por 70% dos gastos militares em todo o mundo, o povo não é quem mais ordena.
O atlantismo salazarista

Representando o fascismo português esteve em Washington, para subscrever a fundação da OTAN, o ministro dos Negócios Estrangeiros, José Caeiro da Matta. O enviado do ditador, que começou por ser um truculento deputado do Partido Regenerador durante a monarquia, envolvendo-se em duelos armados com alguns adversários políticos, foi depois ministro da Educação de Salazar no período que se seguiu à imposição da Constituição de 1933, cabendo-lhe a tarefa de «adaptar» o sistema educativo nacional ao espírito e letra do Estado Novo. Foi igualmente o autor de uma proposta de integração de Cabo Verde no quadro das ilhas adjacentes de Portugal.

«Portugal quer afirmar que vê no Pacto do Atlântico Norte não só um instrumento de defesa e cooperação internacional mas também, pelas razões objectivas que o regem, um instrumento precioso para a paz», declarou Caeiro da Matta. «Mais do que nunca», acrescentou o porta-voz salazarista, «é necessário defender os princípios e posições segundo os quais estes povos são os depositários dos ideais que a civilização ocidental ocupa no mundo».

Sejamos justos: até aqui, o discurso pronunciado pelo enviado de Salazar poderia ser proferido por qualquer dos ministros dos Negócios Estrangeiros de qualquer dos governos da dinastia novembrista, incluindo o de hoje. Caeiro da Matta, porém, agia de acordo com o edifício legal de então; os discursos e o comportamento dos atuais dirigentes portugueses relacionados com a OTAN são ostensivamente contra a Constituição da República.

Onde poderia existir alguma diferença, mais na forma do que no conteúdo dos discursos de 1949 e de hoje, é na passagem na qual o ministro fascista afirma que «a Europa (…) luta contra a mais perigosa epidemia mental de todos os tempos, que ameaça destruir a flor da nossa cultura», pelo que está «ansiosamente à procura de uma fórmula para a paz». Se relermos algumas das considerações de ministros como Santos Silva e Cravinho em relação à «ameaça russa», as diferenças, afinal, não são assim tão substanciais. Atlantismo, acima de tudo, tanto nos tempos salazarentos como nesta espécie de democracia a que chamam «liberal».

Era o tempo em que os comunistas comiam criancinhas na União Soviética e sabe-se lá mais onde, mas também dos grande ímpetos democráticos do pós-guerra, valendo então ao regime de Salazar a integração na OTAN que, de acordo com o site da organização, «injetou um grau de estabilidade na frente doméstica». De fato, assim foi: os tempos da integração na OTAN, incluindo os da grande cúpula de cinco dias realizada em 1952 em Lisboa, e que proclamou a entrada das ditaduras grega e turca na aliança, ficaram marcados por violentas e massivas vagas de repressão contra quaisquer movimentações democráticas.

Em 1952, Portugal foi agraciado com a visita da «Caravana para a Paz», um ônibus carregado de modernices tecnológicas de encher o olho que explicava com filmes, brindes e cartazes, a um povo analfabeto, as vantagens e o orgulho de ser da OTAN; uma espécie de «Europa conosco» com 30 anos de antecipação. A «Caravana para a Paz» regressou na década de sessenta – e com toda a coerência, porque viviam-se os tempos da guerra colonial – para «levar a OTAN» a lugares mais ermos, «onde a OTAN era desconhecida». A OTAN conseguiu a enorme proeza de chegar a esses locais muito antes da luz elétrica, da água potável e de existirem estradas decentes.
De Heusinger e Taubert a Zelenski

A OTAN nasceu sem horror político ao fascismo, como ficou provado pela presença do Portugal de Salazar entre os fundadores e a adesão das ditaduras grega e turca três anos depois da fundação.

Nasceu também sem horror militar ao nazismo, uma afirmação que pode ser chocante, mas a realidade confirma. Vários oficiais da Wehrmacht e da Luftwaffe hitlerianas altamente condecorados pelo Reich foram contemplados com a falsificação dos seus passados de extermínio e depois transplantados para elevados cargos da OTAN devido às suas competências na luta anticomunista e contra a União Soviética.

O general Adolf Heusinger foi o chefe de gabinete de Hitler e participou na planificação das invasões da Polônia, Noruega, Dinamarca e França. Em 1940 desempenhou funções de chefe de operações no exército nazista. No final da guerra não foi julgado em Nuremberg, assumiu a criação do novo exército da República Federal da Alemanha e em 1961 passou a desempenhar a função de presidente do Comitê Militar da OTAN, espécie de chefe de Estado Maior da organização, até 1964. Heusinger recebeu de Hitler a mais elevada condecoração do Reich.

O sturmführer (elevada patente paramilitar do Partido Nazista e também das SA) Eberhard Taubert, que trabalhou diretamente com Goebbels na propaganda nazista e foi mesmo o autor do distintivo amarelo para identificação e humilhação dos judeus, foi adotado pela OTAN devido à sua experiência na propaganda anticomunista, naturalmente sem passar pelos julgamentos em Nuremberga.

Konrad Adenauer, o político ultraconservador que os ocupantes ocidentais colocaram à cabeça do seu setor alemão, depois a República Federal da Alemanha, anistiou 800 mil criminosos de guerra nazistas.

É natural, portanto, que a experiência de muitos deles na máquina de extermínio do Reich pudesse suprir eventuais carências da OTAN na guerra anticomunista e também na prestação de serviços às oligarquias que ficaram órfãs de Hitler.

Hans Speidel, chefe de gabinete do marechal de campo Erwin Rommel, foi nomeado chefe das forças da OTAN na Europa Central em 1957 e exerceu o cargo até 1963. Na época foi difundida a versão de que teria participado numa conspiração contra Hitler – na esteira da intenção atribuída a Rommel de negociar com os aliados ocidentais, mas foi julgado ainda pelo próprio regime e absolvido.

O cargo de chefe militar da OTAN na Europa Central foi sucessivamente desempenhado por antigos oficiais nazistas, regra geral condecorados pelo regime como recompensa pelos serviços prestados: Johann von Kielmansegg, membro do alto comando da Wehrmacht, esteve naquele posto da OTAN entre 1966 e 1968; o antigo tenente-coronel das tropas nazistas Ernst Ferber desempenhou o cargo entre 1973 e 1975; Karl Schnell, antigo primeiro general da 76.ª divisão Panzer, foi encarregado das mesmas funções entre 1975 e 1977; Franz Joseph Schultz, tenente sênior da Luftwaffe, sucedeu-lhe entre 1977 a 1979, deixando então o cargo, até 1983, a Ferdinand von Senger und Etterlin, anterior ajudante do Alto Comando nazista.

Johannes Steinhoff, um piloto da Luftwaffe que ficou famoso pelos seus feitos e proezas contra os aliados, desempenhou as funções de presidente do Comitê Militar da OTAN entre 1971 e 1974.

Além de integrar estes e outros operacionais nazistas no seu aparelho militar e de espionagem, está profusamente documentada a utilização da rede terrorista clandestina da OTAN stay behind, conhecida como Gladio, na conspiração anticomunista e mesmo antidemocrática em muitos países da Europa Ocidental, incluindo Portugal. O caso da estratégia de terror na Itália nos anos setenta e oitenta, caracterizada pelos bárbaros atentados de Milão e Bolonha, o assassinato do primeiro-ministro Aldo Moro, e a liquidação de juízes incorruptíveis em colaboração com a Mafia, tornou-se emblemático na história desta organização terrorista que, de acordo com numerosos investigadores, foi reciclada e continua a atuar.

A tragédia da ex-Iugoslávia, os bombardeios de Belgrado em 1999, o apoio aos terroristas do Kosovo, os crimes de guerra na Líbia, na Síria, no Iraque e no Afeganistão, a disseminação de grupos de terror no Sahel em África, as ameaças cada vez mais virulentas contra a China, a expansão hegemônica e provocatória até às fronteiras da Rússia, transformada em nova «ameaça» depois de extinta a União Soviética, são episódios marcantes de 75 anos de vida da OTAN dedicados ao domínio imperial e colonial, ao expansionismo, ao terrorismo, ao globalismo neoliberal, ao controle de opinião e à mentira. Como se percebe desde os discursos proferidos durante o ato fundador, a OTAN cultiva a propaganda para tornar o terror aceitável e desejado, desde que seja ao serviço da cruzada permanente em que está empenhada «a nossa civilização».

De modo que o apoio incondicional, dispendioso e criminoso a um regime de inspiração nazista, chefiado por um indivíduo desqualificado e irresponsável como Volodymyr Zelenski, que continua a sacrificar o seu povo e o seu país, a Ucrânia, apenas seria surpreendente no caso de ignorarmos a história desde os primeiros passos de uma organização como a OTAN, nefasta e ameaçadora para a existência da própria humanidade. E que já deve várias décadas à cova, pois deveria ter sido extinta quando se dissolveu o Tratado de Varsóvia, em 1991.