A América Latina no radar do imperialismo

Muniz Ferreira – membro do Comitê Central do PCB

Durante séculos, os países da América Latina pautaram suas relações pela desconfiança recíproca, distanciamentos e rivalidades. Apesar de compartilhar um passado de dominação colonial e um presente de subordinação econômica e política no sistema internacional, quase nenhum passo foi dado em direção à convergência e à cooperação. Pelo contrário, a condição comum de economias periféricas e estados dotados de recursos limitados de poder no sistema internacional concorreu para fazer destes países pouco mais que marionetes nas disputas das potências mundiais pelo controle das riquezas da região.

Num dado momento, as preocupações da superpotência hegemônica com seu programa de reorganização geopolítica do globo conduziram a uma hipertrofia de suas atenções com o Oriente Próximo, provocando, como corolário, um relativo “esquecimento” da América Latina. Tal indiferença foi possibilitada pela reafirmação das relações históricas de subordinação dos países do subcontinente aos EUA e pelo refluxo dos processos revolucionários insurrecionais na América Central: a interrupção da revolução nicaraguense nos anos 90, o aprofundamento do isolamento de Cuba e a adesão quase unânime dos governos do subcontinente ao chamado “Consenso de Washington”.

Em um momento subsequente, tivemos o aprofundamento da crise econômico-social provocada pelo estabelecimento de reformas neoliberais. Tal fato, associado à “ausência” dos EUA da região e sua indiferença com as dificuldades experimentadas pelos países da área (crise argentina), conduziu à corrosão das bases do “Consenso de Washington”. Com isto, processou-se também o esvaziamento da liderança política e diplomática estadunidense, sobretudo na América do Sul, criando as condições para o advento de um ciclo, sob certos aspectos, pós-neoliberal.

Este ciclo teve como principais expoentes governos como os de Hugo Chávez (Venezuela), Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador), caracterizados por um reformismo forte (tentativa de produzir certas reformas nas estruturas econômicas e sociais), como também os governos de Michelle Bachelet (Chile), José Mujica (Uruguai), Fernando e Cristina Kirchner (Argentina), Lula e Dilma Rousseff (Brasil), estes marcados por direções mais contraditórias, nas quais se combinam uma orientação econômica de tipo neoliberal com políticas sociais compensatórias e paternalistas, configurando um reformismo de tipo fraco.

O golpe hondurenho de 2009, associado à reocupação militar do Haiti pelos Estados Unidos na sequência do terremoto de janeiro de 2010 e a escalada da presença militar norte-americana na Colômbia, sinalizaram o recrudescimento dos esforços estadunidenses para reassumir a condição de potência hegemônica e incontestável na América Latina, em franca aliança com as classes dirigentes locais. No decurso da década iniciada em 2010, testemunhou-se a destituição do presidente Lugo do Paraguai em 2012; o impedimento de Dilma Rousseff no Brasil em 2016 e a derrubada do Governo de Evo Morales na Bolívia em 2020. Além disso, ocorreram intentonas golpistas, ações de guerra econômica e operações permanentes de desestabilização contra o governo de Nicolás Maduro na Venezuela.

Contudo, para além do empreendimento até às últimas consequências das operações de regime change via lawfare1 e da versão latino-americana das “revoluções coloridas”2 ─ das quais o caso brasileiro é o mais eloquente ─ a contraofensiva das forças reacionárias e neoliberais também se concretizou por meio dos processos eleitorais tradicionais. Tivemos, destarte, as vitórias de Sebastián Piñera no Chile em 2010 e 2018 e Mauricio Macri na Argentina em 2014 e mais recentemente a do ultrarreacionário Javier Milei (2023). A eleição de Bolsonaro no Brasil possuiu a particularidade distintiva de legitimar eleitoralmente um golpe midiático e institucional, que − em 2016, como já foi dito − combinara os métodos da “revolução colorida” e da lawfare, tendo esta última se estendido até o pleito presidencial de 2018, contribuindo decisivamente para o triunfo do ex-capitão do exército naquela disputa. Outra peculiaridade do caso brasileiro está no fato de que o candidato vencedor nas últimas eleições representou não apenas a ascensão ao comando do estado de correntes políticas comprometidas integralmente com uma agenda econômica e social fortemente regressiva, mas também a consagração pelo voto de sujeitos políticos de extrema direita, abertamente hostis aos mais elementares avanços civilizatórios e, pela primeira vez desde o encerramento do último ciclo de governos militares na região, defensores confessos das autocracias castrenses do passado recente.

Um outro caso pitoresco, embora não inteiramente inusitado, é o “transformismo” de Lenin Moreno no Equador. Vice-presidente do reformista pós-neoliberal Rafael Correa entre 2007 e 2013 e indicado por este como o seu sucessor, ao chegar à presidência em 2016, abandonou as políticas compensatórias de seu antecessor e empreendeu a via das políticas de austeridade de extração neoliberal. Em franco desalinhamento com a orientação econômica social que vinha sendo seguida desde 2007, reintroduziu a política de corte de gastos públicos, abertura comercial, reforma trabalhista “flexibilizadora” (na verdade, destruidora de direitos) e subordinação ao Fundo Monetário Internacional, incluindo ainda uma gestão catastrófica no curso da pandemia do coronavírus. Como resultado, o país voltou a ser cenário de revoltas e sublevações sociais protagonizadas, destacadamente, pelas populações originárias, Confirmando e reafirmando a inflexão liberal-conservadora na governança econômica e social do país, verificou-se a vitória do banqueiro neoliberal Guillermo Lasso nas eleições presidenciais de 2021, cuja administração amplia e aprofunda a orientação de Moreno.

No Chile, as mobilizações populares verificadas, não somente detiveram as políticas econômica e socialmente predatórias de Piñera, mas deram início a uma revisão progressista da devastação ultraliberal legada pela ditadura militar pinochetista. Para cristalizar política e institucionalmente estas realizações, foi convocada uma Assembleia Nacional Constituinte livre, soberana, democrática e com consistente representação popular. Além disto, no pleito presidencial de março de 2022, foi eleito Gabriel Boric, jovem liderança política egressa do movimento estudantil, que, desde 2006, vinha se batendo contra a completa privatização do ensino e consequente elitização do acesso à educação naquele país, derrotando o direitista José Antônio Kast, neoliberal e nostálgico do pinochetismo. Seu gabinete ministerial apresenta uma fisionomia de centro-esquerda com forte presença feminina e três ministros comunistas.

Na Bolívia, a resistência popular contra o golpe que derrubou Evo Morales em 2019 provocou o fracasso do projeto golpista, culminando com a recondução do Movimento Al Socialismo (MAS) ao governo pela via eleitoral, em novembro de 2021. Ao assumir o mandato, o novo presidente Luiz Arce, eleito no primeiro turno com 55% dos votos, teve diante de si o desafio imediato de reverter os efeitos da devastação econômica e social gerada pelos dois anos de administração golpista. No médio prazo, tratava-se de restaurar os programas de diminuição da pobreza e retomar o crescimento econômico a partir do chamado “Modelo Econômico Social, Comunitário e Produtivo da Economia”. Porém, a estagnação econômica, combinada com a crise interna do MAS (resultante dos conflitos entre os grupos liderados respectivamente por Evo Morales e Luis Arce) abriu espaço para uma tentativa de golpe militar comandado pelo comandante do exército Juan José Zúñiga. Conquanto fracassada pela mobilização de setores populares e a firme reação do chefe de estado, a intentona expôs as instabilidades e fragilidades internas do governo boliviano do MAS.

No Peru, o professor e sindicalista Pedro Castillo, à frente da agremiação de centro-esquerda Peru Livre, derrotou, com estreita margem de votos, a direitista Keiko Fujimori nas eleições presidenciais de 2021. A contestação do resultado pela candidata derrotada contribuiu para a instauração, desde o início, de uma atmosfera de desconfiança, alentadora de posições desestabilizantes e perspectivas golpistas por parte da direita peruana. Como resultado, já nos primeiros oito meses de mandato (jul. 2021-mar. 2022), Castillo precisou derrotar duas tentativas de impeachment. Emparedado pela ação da oposição, sem contar com uma ampla legitimidade popular e na ausência de significativas mobilizações proletárias e populares de repercussão nacional, Castillo tenta dissolver o Congresso e aplicar um golpe de Estado em dezembro de 1922. Sem apoio das massas, fracassa miseravelmente, sendo destituído e preso.

Dentro do repertório de novas situações políticas vivenciadas na América latina, adquire particular destaque o processo colombiano. Bastião, durante décadas, do predomínio oligárquico sobre o estado e do paramilitarismo, base privilegiada de operações de forças militares e serviços de inteligência estadunidenses e israelenses na América Meridional, o país se vê, pela primeira vez em sua história, diante da possibilidade de eleição de um governo protagonizado por forças de esquerda. Grande vencedor das eleições parlamentares colombianas de março/2022, o Pacto Histórico disputou e venceu as eleições presidenciais de maio de 2022, com uma chapa composta por um ex-guerrilheiro (Gustavo Pedro) e uma mulher negra formada na luta antirracista (Francia Márquez). Se este fato, por si só, nos apresenta uma Colômbia varrida pelos ventos do desejo de renovação, a sobrevivência política dos partidos Liberal e Conservador, responsáveis conjuntos pela maioria esmagadora dos assentos nas duas casas parlamentares colombianas, as fortes conexões das forças armadas com o dispositivo militar estadunidense na região e o enraizamento do paramilitarismo nas estruturas profundas do estado constituem contrapontos extremamente importantes.

 

EUA E GUIANA CONTRA VENEZUELA

O conflito que envolve Estados Unidos, Guiana e Venezuela, hoje sob litígio internacional, tem como fator determinante a exploração, por uma companhia estadunidense, de reservas de petróleo localizadas na região de Essequibo, disputada pelos estados nacionais da Guiana e da Venezuela. Guiana e Venezuela reivindicam a soberania sobre o território em questão. A decisão do governo da Guiana de permitir a exploração do óleo na área, a partir de 2015 foi respondida pelo governo venezuelano com um plebiscito que decidiu pela incorporação daquela região ao território do país. Os EEUU, por sua vez, reagiram enviando efetivos militares para a região e reforçando suas conexões com o governo de Georgetown. Desde então, vem aumentado a tensão na região, com riscos de confrontação militar no local.

Para os EUA, o controle e exploração das reservas de petróleo de Esequibo constituem uma alternativa viável e barata às “dificuldades” criadas pelo processo bolivariano na Venezuela. Sua presença militar na fronteira com a Venezuela constitui mais um fator de pressão contra este país. É também um contraponto à presença chinesa na exploração do petróleo brasileiro na região do pré-sal e um movimento que tenta restaurar a condição da América Latina como reserva geopolítica e geoeconômica do poderio global dos EUA.

Em tais condições, as pressões atuais por parte do governo dos Estados Unidos, juntamente com seus aliados tradicionais ou de última hora, no sentido de deslegitimar os resultados das últimas eleições Venezuelanas e preparar o caminho para uma intervenção militar direta naquele país constituem apenas o mais recente episódio desse drama histórico. As vacilações da liderança venezuelana, os equívocos e desmandos praticados por Maduro e seus consortes, em detrimento do protagonismo das massas trabalhadoras e dos setores revolucionários, fragilizam o processo bolivariano e levam água ao moinho da reação local e continental. Neste contexto, a defesa intransigente da soberania nacional do povo venezuelano, a retomada do protagonismo das massas e a correção dos desvios na condução da chamada “revolução bolivariana” convergem com os interesses dos trabalhadores e dos setores populares de toda a nossa região.

 

1 Em português: guerra jurídica. Emprego de manobras jurídico-legais visando alcançar objetivos nas disputas políticas.

2 Mobilização de forças políticas de oposição, voltadas para a derrubada de governos considerados antiestadunidenses e sua substituição por governos favoráveis aos EUA e/ou seus aliados.