Vânia Bambirra: um breve convite à sua obra

Fernando Correa Prado

A editora Expressão Popular acaba de publicar A revolução cubana: uma reinterpretação, de Vânia Bambirra (1940-2015). Tal publicação é a deixa para este breve convite a conhecer a – ou a se aprofundar na – obra de uma das mais brilhantes marxistas brasileiras que a luta de classes na América Latina e Caribe produziu. Apresentaremos aqui algumas referências gerais e características de sua obra que podem ajudar nesta tarefa.

A começar pelo importante trabalho realizado pelo Memorial-Arquivo Vânia Bambirra1, que reúne, preserva e difunde sua obra. Esta página disponibiliza grande parte do acervo de Vânia Bambirra, entre os quais, para o objetivo de apresentação geral, destacaria uma primeira referência: o Memorial escrito pela própria Bambirra em 19912, ao ser reintegrada no quadro docente da Universidade de Brasília (UnB), onde havia sido professora entre 1962 até o golpe empresarial-militar de 1964.

Com uma forma a só tempo objetiva e poética, seu Memorial conta, por suas próprias mãos, a trajetória de uma mulher que foi militante da Organização Revolucionária Marxista-Política Operária (Polop) e que também fazia trabalho militante junto às Ligas Camponesas; que se graduou em Sociologia e Política e também em Administração Pública na UFMG; que foi convidada por Darcy Ribeiro a compor os quadros de uma universidade necessária (a então UnB); que foi perseguida pela ditadura empresarial-militar e viveu clandestinamente por dois anos, até conseguir escapar para seu primeiro exílio, no Chile, em 1966, onde trabalhou Centro de Estudos Socioeconômicos (Ceso) da Universidade do Chile; que seguiu militando e buscando conhecer as determinações particulares do capitalismo em Nuestra América com o objetivo de formar e informar a prática revolucionária socialista; que pensou e debateu a economia política da libertação da mulher e a transição ao socialismo; que precisou rumar para o segundo exílio com o golpe contra a Unidade Popular em 1973 no Chile, partindo para o México, onde se inseriu concursada na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), mantendo e aprofundando seu olhar crítico sobre a realidade; que buscou estudar na teoria e na prática a questão candente de nossa era: a transição ao socialismo, com revisão profunda de Marx, Engels e Lenin e também dando sequência a seus conhecimentos sobre Cuba revolucionária; que não arrefeceu sua atuação política e sua posição de defesa do socialismo, tendo participado, junto com outros exiliados, da articulação e construção de uma nova organização política, com vistas na possibilidade de regresso ao Brasil, até que, em 1979, com a anistia política, finalmente retornou a seu país e seguiu sua atividade política, vinculando-se então ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), até romper com este partido no ano 2000; que nunca se furtou à política, ao bom debate, à crítica e à autocrítica; e que deixou uma obra expressiva, profunda e imprescindível para nossa tradição marxista3.

Outro trabalho fundamental para adentrar na vida e obra de Vânia Bambirra é o belo documentário titulado Vânia: a história de uma revolucionária, produzido por Carla Ferreira e Mathias Seibel. Trata-se de um trabalho muito cuidadoso e preciso (em ambos os sentidos da palavra), também disponível na página de seu Memorial-Arquivo4. Em texto e em vídeo, esses documentos formam a melhor porta de entrada para a trajetória de Vânia Bambirra.

Nesta trajetória, há ao menos cinco características que gostaria de registrar e que constam na apresentação que escrevi para a edição brasileira de seu livro O capitalismo dependente latino-americano ([1972] 2012) – quarenta anos depois de sua publicação original. Ali mencionei: i) sua agudeza na leitura do próprio período histórico, ii) sua ambição intelectual, iii) sua convicção socialista, iv) sua postura crítica e v) sua capacidade de superar certas estruturas sociais estabelecidas. Vânia Bambirra foi capaz de estar sempre atinada para as grandes questões de seu tempo, de analizá-las com profundidade, de se pautar pela construção do socialismo em nossa realidade concreta, de estar aberta ao debate e à crítica e de se manter firme diante da opressão de gênero que perpassava (e ainda perpassa) a vida de uma mulher no processo de socialização capitalista. Sua obra, que pode ser consultada na quase totalidade no referido Memorial-Arquivo e que vem ganhando novas edições e homenagens5, revela bem essas características.

E revela também que, apesar dessa trajetória, ou mesmo devido a ela, trata-se de uma obra ainda não devidamente conhecida ou aprofundada em todo seu potencial pela tradição marxista no Brasil. Inclusive a recente publicação a que fizemos referência no início é sintomática neste sentido. Escrita entre o final de 1972 e o início de 1973, durante o primeiro exílio de Vânia Bambirra, no Chile, somente em 2024 ganhou uma edição em seu país natal. História semelhante por aqui teve outra de suas importantes obras – O capitalismo dependente latino-americano –, que também foi escrita no Chile entre 1970 e 1972, mas que só seria traduzida e publicada no Brasil em 2014, pela editoria Insular. Faltam ainda serem traduzidos e publicados, por exemplo, Diez años de insurrección en América Latina (1971), compilação feita por Bambirra de diversas análises da conjuntura de países latino-americanos, com uma análise introdutória dela titulada “Ascenso y descenso del movimento popular e insurreccional em Latinoamérica”, ou então de seu livro Teoría de la dependencia: uma anticrítica, de 1978, ou mesmo o livro La estrategia y la táctica socialistas de Marx y Engels a Lenin, escrito em conjunto com Theotônio dos Santos e publicado em 1981.

Esses percursos editoriais sinalizam precisamente aquele aspecto a que fizemos menção: uma obra riquíssima, que se insere na tradição marxista produzida no calor da luta de classes na América Latina e no Caribe, mas que ainda precisa ser mais plenamente incorporada na tradição marxista brasileira, com tudo que isso implica em termos de aprofundamento do conhecimento crítico de sua obra. Neste sentido, se confunde em boa medida com a trajetória da teoria marxista da dependência: embora reconhecida, reeditada, estudada e divulgada em diversos países de Nuestra América, no Brasil esse legado teve um caminho particular, ao ser combatido pela ditadura empresarial-militar, mas também pela crescente hegemonia liberal, anti-trabalhista e anticomunista que perpassou a reorganização da classe trabalhadora nas décadas de 1980 e 19906.

Pois bem, nos últimos quinze anos aproximadamente tem havido uma recuperação da teoria marxista da dependência no país e, com ela, um paulatino reconhecimento do lugar da obra de Vânia Bambirra na tradição marxista em geral, e na teoria marxista da dependência em particular. Aprofundar esse conhecimento é essencial para fortalecer ainda mais a tradição marxista no país.

Referências

BAMBIRRA, Vânia. Diez años de insurrección en América Latina. Santiago de Chile: Prensa Latinoamericana, 1971.

______. La revolución cubana: una reintepretación. Santiago de Chile: Prensa Latinoamericana, 1973.

______. Teoría de la dependencia: una anticrítica. México DF: ERA, 1978.

______. A teoria marxista da transição e a prática socialista. Brasília: Ed. da UnB, 1993.

______. O capitalismo dependente latino-americano. Trad. de Fernando Correa Prado e Marina Machado Gouvea. Florianópolis, 2012.

BAMBIRRA, Vânia e Dos SANTOS. Thetônio. La estrategia y la táctica socialista de Marx y Engels a Lenin. Tomo 1. México DF: ERA, 1980.

______. La estrategia y la táctica socialista de Marx y Engels a Lenin. Tomo 2. México DF: ERA, 1981.

PRADO, Fernando Correa. “História de um não-debate: a trajetória da teoria marxista da dependência no Brasil”, Revista Comunicação & Política, vol. 29, no2, maio- agosto de 2011.

PRADO, Fernando Correa e CASTELO, Rodrigo. “O início do fim? Notas sobre a teoria marxista da dependência no Brasil contemporâneo”. In: Revista Pensata, vol. 3, n. 1, 2013.

 

1 Ver: www.ufrgs.br/vaniabambirra

2 Ver: https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/memorial-academico-e-indice-geral/memorial-academico-unb/

3 A concepção de “tradição” aqui usada pode ser sintetizada nas palavras de José Carlos Mariátegui em seu texto sobre “Heterodoxia de la tradición”, de 1927 (2010, p. 160): “Não se deve identificar a tradição com os tradicionalistas. O tradicionalismo – não me refiro à doutrina filosófica, mas a uma atitude política e sentimental que termina invariavelmente em conservadorismo – é, na verdade, o maior inimigo da tradição. Porque se obstina interessadamente em defini-la, com um conjunto de relíquias inertes e símbolos extintos. E em compendiá-la numa receita parca e única. A tradição, em contraste, se caracteriza precisamente por sua resistência a se deixar apreender numa fórmula hermética”.

4 Ver: https://www.ufrgs.br/vaniabambirra/documentario/

5 Importante lembrar aqui do II Seminário Nacional e I Seminário Internacional Economia, Política e Dependência, ligado ao Grupo de Pesquisa Estado, Direito e Capitalismo Dependente (UFAL), que ocorreu nos dias 20 e 31 de outubro de 2020, de forma virtual devido à pandemia, e cuja temática era em homenagem aos 80 anos que Vânia Bambirra completaria naquele ano. Os vídeos deste seminário estão disponíveis no seguinte enlace: <https://www.youtube.com/playlist?list=PL3I-m7kVxlXHl9XHoNs2GxxeRArTzsfOL>. Também em 2020 o portal Marxismo21 organizou um dossiê em sua homenagem: <https://marxismo21.org/vania-bambirra-80-anos-1940-2015/>.

6 Sobre essa trajetória da teoria marxista da dependência no Brasil, conferir, por exemplo: Prado (2011); Prado e Castelo (2013).