Sobre o assassinato de Hassan Nasrallah

Entrevista com Leila Ghanem

Robin Delobel – odiario.info

Leila Ghanem é uma prestigiada revolucionária libanesa. Ninguém melhor para informar sobre a situação em seu país após o início da agressão sionista direta. Ela nos diz: «A questão que se coloca hoje é a seguinte: seremos capazes de nos mantermos firmes e de nos levantarmos de novo? A resposta para nós e para o povo de Gaza é que temos de o fazer, porque esta é uma batalha de vida ou de morte.»

Três perguntas a Leila Ghanem sobre o assassinato de Hassan Nasrallah

Israel bombardeia o Líbano há mais de uma semana e na sexta-feira (27/09) à noite matou Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah. Como a população está reagindo? Unida ou dividida face aos bombardeios de Israel? Quais são as consequências possíveis? Entrevistamos Leila Ghanem, antropóloga que vive em Beirute. É chefe de redação da revista Bada’el, fundadora do Tribunal de Consciência para julgar os crimes de guerra israelenses em 2008 e coordenadora do Fórum Social para as Alternativas no Oriente Médio.

Qual é o sentimento no interior da população libanesa após o assassinato de Hassan Nasrallah?

O assassinato do líder histórico Hassan Nasrallah “Al-Sayed” ocorreu em meio a um incrível tumulto de acontecimentos catastróficos que se abateram sobre a população libanesa, com os ataques aéreos intensos e simultâneos no sul do Líbano, no Bekaa e nos subúrbios do sul. Centenas de milhares de refugiados afluíram à capital num ambiente apocalíptico, 250.000 nos primeiros quatro dias. Este número triplicou no momento em que vos respondo, e é difícil manter o controle da razão sob as bombas que agora mesmo atingem poucos quilômetros da minha casa, nos subúrbios do Sul, com os sons ensurdecedores dos drones que sobrevoam a capital libanesa dia e noite. Ouço também os ecos das orações e dos recitais corânicos que se realizam por toda a Beirute Ocidental pelo repouso da alma de Sayed.

A população ainda não reagiu, ainda está se recuperando do choque terrível causado pela série de atentados que se desenrolaram consecutivamente: a operação pager que feriu 4000 pessoas, os walkie-talkies, o assassinato do chefe do comando de Aradwan e o fatídico dia 23 de setembro, que fez 600 mortos num só dia. Enquanto o assombro e a estupefação estão na ordem do dia, há fissuras entre os admiradores do líder, que apelam ao seu regresso, e alguns pedem que os leve consigo. Uma senhora idosa, que se queixava de dormir no passeio por falta de abrigo, disse-nos que Sayed “voltará certamente como o Mahdi (o profeta esperado pelos xiitas) para continuar a libertação da Palestina”. As suas palavras foram agora publicados nas redes sociais…

É um momento de tristeza e de recolhimento, mas a reação virá e, em todo o caso, nada apagará o líder carismático da mente de milhões de pessoas no Líbano e no mundo árabe-muçulmano, e mesmo no mundo inteiro.

Para a população xiita, Nasrallah é uma figura sagrada comparada a Hossein, filho do dignitário Ali Bin-Abi-Taleb, filósofo e quarto khalif, assassinado em Karbala como o seu pai Ali, morto porque se recusou a permitir que a classe ascendente de príncipes legislasse sobre a “propriedade privada” e o controle do dinheiro público. Oriundo de uma família pobre do Sul, Nasrallah cresceu num bairro operário de Beirute Oriental e era amigo dos mais desfavorecidos e das causas justas. Dedicou a sua vida à Palestina. Agora que foi martirizado, as suas palavras ressoam ainda com mais força. Ele será mais do que um ícone, será uma identidade ancorada na mente das pessoas.

Para a esquerda radical que se manteve nas posições bolcheviques expressas no Congresso de Baku para os Povos do Leste, Nasrallah, enquanto combatente anti-colonialista e anti-imperialista, é um Libertador, o equivalente a um Giap, um Che ou um Ho Chi Minh. Ele é uma das últimas armas levantadas contra o imperialismo. Espero que não seja a última.

A classe política libanesa está em vias de formar uma união contra Israel?

Não, a classe política não está unida contra Israel. A guerra civil que eclodiu no Líbano em 1975 e durou quase duas décadas tinha por objetivo desarmar os palestinos e expulsá-los do Líbano. Depois de uma intervenção israelo-estadunidense, em 1982, esta guerra conduziu à derrota das forças progressistas e à deportação dos combatentes palestinos e do seu líder Yasser Arafat para Tunes. Como em todas as derrotas, seguiu-se o massacre da população civil. Foi o célebre genocídio de Sabra e Shatila, cometido pelos falangistas libaneses sob a alta guarda de Israel. Recorde-se também que Béchir Gemayel, eleito presidente sob ocupação israelense, foi assassinado por ter assinado um tratado de paz com o inimigo sionista. O seu irmão Amine foi deposto pelas mesmas razões.

A fratura da classe política libanesa está profundamente enraizada na história, é sobretudo estrutural, deixada como herança pelos acordos de Sikes e Picot, que dividiram a região árabe entre a França e a Grã-Bretanha no final da Primeira Guerra Mundial. Depois pela Carta de 1947, redigida pela França como mandatária do Líbano após a Segunda Guerra Mundial, que lançou as bases de um sistema confessional baseado economicamente na renda.

A atual fratura no Líbano deve-se a uma pressão econômica e social sem precedentes exercida pelos países ocidentais através das instituições financeiras. É inegável que o Líbano está no centro da batalha estratégica travada entre os EUA e o Irã, que está incendiando vários países, incluindo a Síria, o Iêmen e o Líbano.

Os doadores internacionais fazem depender a sua ajuda ao Líbano ao desaparecimento ou enfraquecimento considerável do Hezbollah. O Líbano está abertamente confrontado com duas alternativas: ou desarma o Hezbollah ou mergulha nas trevas da falência econômica, acompanhada de uma guerra civil (as forças fascistas libanesas dispõem de uma milícia de 30.000 homens armados e financiados pela embaixada dos EUA). É um dilema para um país (pelo menos para uma boa maioria dos libaneses) que viveu seis guerras provocadas por Israel em vinte e cinco anos (1978, 1982, 1993, 1996, 2000, 2006). Estamos agora na sétima guerra e uma grande maioria dos libaneses vê o Hezbollah como uma resistência que libertou o país após vinte e dois anos de ocupação israelense. Uma grande parte da população (1) acredita que o armamento dissuasor do Hezbollah impediu as reincidências assassinas de Israel durante dezoito anos.

Estas diferenças não são confessionais, uma vez que o Hezbollah tem dois grandes aliados nos círculos cristãos: o partido do antigo Presidente Aoun e o campo Frangieh. Estes partidos políticos, para além do líder dos drusos do Monte Líbano, anunciaram o seu luto. É de salientar que toda a população libanesa acolheu de braços abertos os refugiados do Sul e que a solidariedade foi notória, tendo sido formados por todo o lado comitês de bairro para ajudar e alojar os deslocados. No entanto, é de salientar que, no Líbano, é proibido por lei fazer referência a Israel sem acrescentar “o inimigo israelense” e visitar Israel é considerado traição punível com pena de prisão.

Quais são as reações previstas para estes ataques?

No Líbano e na Palestina, estamos atravessando o período mais grave e decisivo da nossa história. Trata-se de uma guerra de sobrevivência que opõe a nossa resistência e os nossos povos ao inimigo mais bárbaro da história, apoiado, dirigido, armado, financiado, midiatizado e protegido (jurídica e diplomaticamente) pelo Ocidente imperial, nomeadamente os EUA.

Desde 8 de Outubro, Washington estabeleceu uma ponte aérea com Telavive e fornece as armas mais sofisticadas, incluindo os F35 e as bombas de duas toneladas utilizadas para assassinar membros e o líder do Hezbollah. Os EUA acabam de anunciar esta semana que concederam 9 bilhões de dólares a Israel para a sua guerra contra a resistência libanesa. Os libaneses e os palestinos estão sendo mortos por armas e munições estadunidenses e europeias. 45 bilhões de dólares é o montante da ajuda dos EUA enviada a Israel desde 8 de Outubro para massacrar os habitantes de Gaza, o que significa um milhão de dólares pagos pelos contribuintes estadunidenses por cada cidadão de Gaza morto.

O que está em jogo neste momento no Oriente Médio é o futuro da humanidade. Será que a ordem internacional do século XXI se baseará no genocídio e na limpeza étnica dos palestinos? Ou na sua proteção? Em suma, na barbárie ou na civilização?

Por um lado, a lógica dos Acordos de Abraão, por outro, a do Eixo da Resistência. Netanyahu e os seus aliados nos EUA acreditam que a eliminação da resistência na região abre caminho à submissão dos povos da região à supremacia estadunidense.

Era evidente que o objetivo dos EUA, disfarçado pela retórica da via diplomática ou da “solução de dois Estados”, não passava de um engodo para estender a guerra de Gaza à Cisjordânia e para lançar uma guerra contra a resistência libanesa quando as condições no terreno fossem favoráveis.

Em seis meses, o equivalente a cinco bombas atômicas de Hiroshima e 85 bombas dos EUA (MARK 84, bombas anti defesas reforçadas pesando 1 tonelada cada) e bombas BLU-109 pesando 2 toneladas cada, foram lançadas sobre Gaza para matar o líder da resistência Hassan Nasrallah. Antes dele o major Ibrahim Akil, por quem Netanyahu dedicou o seu assassinato aos seus amos estadunidenses que o procuram desde 1983 por dois atos militares: a explosão da embaixada americana em Beirute durante uma reunião de espiões estadunidenses no Oriente Médio e o ataque à base dos fuzileiros navais que matou 246 soldados.

Esta guerra declarada contra a resistência libanesa, para além dos objetivos anunciados por Israel e pelos seus aliados ocidentais, não tem como único objetivo fazer regressar os 300.000 colonos do norte de Israel às suas colônias na fronteira libanesa, nem parar as operações de apoio em Gaza, o seu objetivo é liquidar o Hezbollah, que é atualmente o maior movimento de libertação nacional em escala internacional. Um movimento que provou o seu valor em 2000, quando expulsou o exército israelense após 22 anos de ocupação do Sul do Líbano e, em 2006, quando infligiu uma derrota esmagadora ao Estado sionista. Foi a primeira vez, depois do Vietnã, que os simples comandos de um exército de libertação nacional ganharam uma guerra contra um exército regular armado até aos dentes e assistido pelos Estados Unidos.

A batalha que está agora sendo travada em Beirute e Gaza é uma batalha que diz respeito a toda a humanidade. O que está em jogo é semelhante ao da guerra civil espanhola. Netanyahu anunciou nas Nações Unidas que está liderando a luta em nome do Ocidente civilizado contra a barbárie e o terrorismo.

A questão que se coloca hoje é a seguinte: seremos capazes de nos mantermos firmes e de nos levantarmos de novo? A resposta para nós e para o povo de Gaza é que temos de o fazer, porque esta é uma batalha de vida ou de morte. No meio do tumulto da morte do seu líder, o Hezbollah reiterou a sua intenção de continuar a guerra contra Israel em apoio a Gaza. Desde ontem, foram transmitidos trechos de vários discursos de Nasrallah, nos quais ele insiste no significado de morrer como mártir. Explica que “morrer pela pátria, ou pela causa, pela justiça, pela liberdade, pela Palestina, é um caminho voluntário para os militantes do Hezbollah”.

A resistência tem objetivos que continua a seguir. O exército de 100.000 comandos não foi abalado. Os comandos do Hezbollah são homens de campo experientes e virulentos, treinados há trinta anos e que já lutaram contra o exército colonial israelense e os mercenários do Daesh na Síria e no Iraque. Segundo analistas militares como Dwayri, o Hezbollah até agora só utilizou 10% das suas armas.

O mesmo se pode dizer do novo líder Hisham Saffieddine, um colaborador próximo de Nasrallah, que tem estado ativo nos domínios militar, organizacional e político. De momento, o partido está se reorganizando, enfrenta problemas de segurança, decidiu passar à clandestinidade e acaba de publicar um texto sobre a adoção da linha de uma guerra popular de libertação de longo prazo.

Há um provérbio árabe que diz que golpe que não te mata torna-te mais forte. Estamos determinados a lutar, conscientes de que a batalha que estamos a travar aqui no Líbano é a batalha de toda a humanidade, porque é aqui que se concentram os predadores capitalistas, com a sua ciência e as suas armas mais sofisticadas e mortíferas.

(1) As últimas eleições legislativas no Líbano foram disputadas em torno de duas questões: 1) apoiar ou opor-se ao armamento do Hezbollah e 2) a questão social. Tendo em conta os resultados, podemos considerar que a população está dividida.

Fonte: https://investigaction.net/leila-ghanem-anthropologue-le-combat-qui-se-joue-a-beyrouth-et-a-gaza-concerne-lhumanite-entiere/