Beirute, capital da resistência
Bruno Amaral de Carvalho [*]
Uma cidade é feita de muitas contradições, das suas luzes e sombras, dos seus cheiros e sons e, sobretudo, das histórias de quem nela vive. Das costureiras aos artesãos, dos taxistas às cozinheiras. O Líbano é, hoje como no passado, um lugar assediado pelas bombas israelenses, onde mulheres e homens enfrentam a invasão com a dignidade de quem entende estar do lado certo da história. Beirute, uma vez mais, é a capital da resistência.
Esta mulher que está sentada no chão, de negro da cabeça aos pés, na marginal de Beirute, não tem praticamente nada. Não tem nome porque não se quer identificar nem que se lhe mostre o rosto. Um chapéu de sol, um colchão individual de espuma e a roupa que tem no corpo foi tudo o que conseguiu trazer na noite em que Israel começou a bombardear o seu bairro, nos subúrbios a sul de Beirute. Já passou uma semana desde que fugiu de casa com a família. A princípio, lavavam-se num dos muitos hotéis e condomínios de luxo com vista para o Mediterrâneo. Agora, nem isso podem fazer, diz, porque os proprietários se fartaram. Como esta família, há milhares de famílias por todas as partes. No areal da praia, no passeio marítimo, nos separadores e rotundas, em jardins, escolas, em varandas de casas sobrelotadas.
O governo libanês afirma que há, neste momento, um milhão de refugiados, números nunca vistos num país que já foi invadido por Israel quatro vezes, que viveu uma guerra civil e que tinha, até há bem pouco tempo, no seu território, cerca de dois milhões de refugiados palestinos e sírios. Milhares de libaneses fogem agora para a Síria e para o Iraque. Os ricos fogem de iate para Chipre, numa prova irrefutável de que, como sempre, as tragédias são vividas de forma diferente consoante a classe social a que se pertence. Contudo, Beirute não esquece os seus e, por todo o lado, em cada esquina, é possível ver quem descarregue colchões, garrafões de água e outro tipo de víveres essenciais. E em vários pontos da cidade, organizações políticas recorrem à força para arrebentar as portas fechadas de hotéis e edifícios desabitados para abrigar os refugiados, como aconteceu no bairro de Hamra, numa das primeiras madrugadas a seguir aos primeiros bombardeios. Num ato de revolta, gritando contra Israel, cerca de meia centena de jovens arrancaram o portão de um prédio vazio e a seguir conduziram várias famílias para o seu interior.
Dahieh, o coração da resistência
Esta mulher que está sentada no chão sem praticamente nada não é de um bairro qualquer. É de Dahieh, e Dahieh é uma espécie de nome maldito para Israel. Todas as noites, sem exceção, a população que vive no bastião do Hezbollah é castigada por apoiar a resistência. Foi aqui que no dia 27 de setembro a aviação israelense lançou 80 bombas com quase uma tonelada de explosivos sobre o quartel-general da organização xiita para matar Hassan Nasrallah e outras figuras importantes. De lágrimas nos olhos, diz ainda não acreditar que morreu. “Precisamos do Hezbollah para nos defender”. Durante quase um dia, o país parou em suspenso. Apoiantes e inimigos, todos esperavam saber da sorte de Nasrallah. Por volta das 14 horas do dia seguinte, gritos e lágrimas tomaram conta das ruas. E mulheres vestidas de negro choraram a morte do seu herói.
O histórico secretário-geral do Hezbollah negociava uma trégua quando foi assassinado por Israel, o mesmo que acontecera ao líder do Hamas, Ismail Haniyeh, no Irã. Os Estados Unidos haviam prometido a Teerã que Telavive aceitaria o cessar-fogo se não respondesse ao atentado. Com a cumplicidade dos Estados Unidos, não só isso não aconteceu, como Israel estendeu a sua guerra ao Líbano e intensificou os ataques na Síria e no Iêmen.
Caminhar pelo bairro de Dahieh é percorrer ruas completamente destruídas, ver automóveis esmagados e crateras onde antes havia prédios. É um cenário desolador. Sobre uma montanha de destroços, alguém pôs o retrato de Hassan Nasrallah. “Fuck Israel, we will win!”, gritam vários jovens quando percebem que há jornalistas na zona. À Voz do Operário, um militante do Hezbollah que aceita falar sob anonimato recorda o papel do até agora líder da organização. “Era enorme. Tiveram de usar uma tonelada de explosivos para o matar. Prevaleceremos e venceremos”, afirma.
Há, neste momento, por parte de Israel, uma campanha de assassinatos de dirigentes das principais organizações da resistência libanesa e palestina. No bairro de Kola, em Beirute, a aviação israelense destruiu três andares de um prédio para matar três destacados militantes da Frente Popular para a Libertação da Palestina, a histórica organização comunista que combate ao lado do Hamas e outras forças da resistência contra as forças de Israel em Gaza e na Cisjordânia.
A violência do ataque atirou varandas de ferro para o outro lado da rua. Ali, num descampado debaixo de um viaduto, centenas de documentos, livros e cartazes jaziam inertes como prova de fogo. Um documento de saudação à libertação de Lula da Silva da prisão, um cartaz com Fidel Castro a discursar em Havana e o retrato de Lênin eram alguns dos objetos que se podiam encontrar no local. No dia seguinte ao ataque, milhares de palestinos e libaneses acompanharam o funeral que percorreu os vários campos de refugiados.
Israel ataca hospitais e centros de saúde
O Hospital Rafik Hariri fica ao lado do campo de refugiados palestinos Mar Elias e demasiado perto de Dahieh. É o maior centro hospitalar de Beirute, com espaço para 550 pacientes. Todos os dias chegam aqui mulheres e homens vítimas das bombas de Israel. Neste momento, 80% da capacidade ocupada corresponde a feridos de guerra. “Até o momento, temos reduzido ao máximo casos que podem ser adiados. Queremos todas as camas para as vítimas da guerra”, explica Jihad Sade, o diretor hospitalar, no seu gabinete. Com a experiência de quem já viveu várias invasões israelenses, descreve os trabalhadores que dirige como muito preparados para tratar o tipo de feridas mais comuns neste cenário de conflito.
Com o número de mortes provocadas por Israel desde 8 de outubro de 2023 chegando aos 2 mil, incluindo 127 crianças, Jihad Sade diz que é imprevisível o comportamento de Telavive em relação aos equipamentos de saúde. Em Bachoura, um bairro central de Beirute, Israel atacou um centro de saúde durante a noite e matou nove profissionais de saúde. Como em Gaza, as forças israelenses não têm linhas vermelhas e ao fecho desta edição tinham assassinado já 73 destes trabalhadores em diferentes partes do país.
De acordo com este médico, a guerra vai acabar quando houver respeito entre todos. “Dêem direitos [aos palestinos]. A força é temporária e o conflito não vai acabar se não respeitarem os direitos [dos palestinos].
[*] Jornalista.
O original encontra-se em vozoperario.pt/jornal/2024/10/07/beirute-capital-da-resistencia/
Este artigo encontra-se em resistir.info