A falácia de que a redução da jornada de trabalho gera inflação
In: BENSAÏD, Daniel. Marx, manual de instruções, 2015.
Warlen Nunes dos Santos, membro do Comitê Central do PCB
O objetivo desta nota é refutar a teoria vulgar que afirma que o fenômeno econômico da inflação é causado pelo aumento dos salários. Essa ideia é muito comum entre economistas não-monetaristas (por exemplo, keynesianos) e foi resgatada no recente debate sobre a chamada “PEC do fim da escala 6×1”. Como pode ser observado na nota da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG) 1.
“A redução da carga de trabalho, conforme prevê a proposta em debate, também provocaria um aumento de custos para as empresas, uma vez que, para manter a mesma escala de produção e atender à demanda de serviços durante toda a semana, muitas empresas precisarão contratar novos empregados, aumentando os seus custos operacionais”, explica a Fiemg. A entidade também aponta possíveis impactos na inflação, “uma vez que o aumento dos custos das empresas será repassado aos consumidores por meio da elevação dos preços de produtos e serviços”.
Há pelo menos duas abordagens teóricas burguesas sobre a inflação. Uma delas é a teoria monetarista, a qual diz que os preços sobem em função do aumento da base monetária sobre a produção real. Para essa teoria, o dinheiro é neutro e é injetado de fora para dentro da economia real. Essa pode ser expressa pela seguinte equação: MV=PY, onde M é a moeda, V a velocidade de circulação, P o índice de preços, e Y produto real da economia (PIB). Ainda de acordo com essa teoria, V é estável e Y está dado. Sendo assim o aumento de M, causaria uma elevação dos preços, pois, P = (M.V)/Y.
Para Karl Marx, que foi ferrenho opositor dessa teoria, a abordagem monetária quantitativista comete o erro de não compreender que dado o nível da atividade econômica em relação à capacidade instalada, Y, assim como considerando constante o valor do dinheiro e sua velocidade de circulação, só circula a quantidade de dinheiro necessária, pois, o restante é entesourado. Além do mais, o dinheiro não é neutro, isto é, se o ouro circula porque tem valor, o papel-moeda tem valor porque circula, portanto, seu valor é determinado pelo seu montante (quantidade) que, em última instância, deve ser respaldado pelas reservas do Banco Central (em dinheiro mundial ou conversível). Os erros do monetarismo são considerar o dinheiro neutro em relação às variáveis reais de uma determinada economia, além de entenderem que o dinheiro é injetado desde fora da economia, e claro, ignorar o papel do entesouramento.
Outra teoria burguesa da inflação nos diz que esta é causada pela elevação dos salários, — como podemos ver na nota da FIEMG — “uma vez que o aumento dos custos das empresas será repassado aos consumidores por meio da elevação dos preços de produtos e serviços”. O que está subjacente à nota da FIEMG é um velho dogma com o qual Marx se deparou em sua época, a noção vulgar dos custos de produção. Por meio dela, os preços são explicados como a soma das partes. Uma vez que o salário é igual ao valor ou preço do trabalho — ou, como vai dizer Marx, o capitalista não nos paga pelo nosso trabalho, e sim, pela nossa força de trabalho, logo o trabalho que é a força de trabalho em ato é apropriado gratuitamente pelo direito de propriedade —, o salário é entendido como um custo, sobre o qual surge um valor a mais ou mark-up (lucro e a renda da terra). Em Salário, Preço e Lucro, Marx comenta sobre essa teoria,
“[…] não é o empregador capitalista que acrescenta ao valor da mercadoria um valor arbitrário para seu lucro, acrescentando em seguida outro valor para o proprietário da terra e assim por diante, de tal maneira que a soma destes valores arbitrariamente fixados constituísse o valor total. Vides, portanto, o erro da ideia correntemente exposta, que confunde a divisão de um dado valor em três partes, com a formação desse valor, mediante a soma de três valores independentes, convertendo desta maneira numa grandeza arbitrária o valor total, de onde saem a renda territorial, o lucro e o juro“ 2.
Assim, para o nosso burguês ilustrado da FIEMG, por causa da redução da jornada de trabalho haveria a necessidade de contratar mais trabalhadores, o que aumentaria os custos de produção. Consequentemente, o aumento de salário teria que ser repassado aos preços, levando à inflação. Aqui não existe lei econômica, apenas o arbítrio do burguês! Nesse sentido, além da vontade do capitalista, a outra variável chave é o salário, ou o preço do trabalho (força de trabalho). Então, devemos perguntar: o que determina o preço do trabalho (salário)?
Como sabemos, o preço do trabalho (salário) é determinado pelo preço do conjunto das mercadorias necessárias (cesta de subsistência) para a reprodução da força de trabalho. É por meio dessa noção que se estabelece, por exemplo, o cálculo oficial do salário-mínimo. Dessa forma, somos obrigados, pela teoria apresentada pela FIEMG, a concluir que os preços das mercadorias são determinados pelo preço do trabalho e o preço do trabalho é determinado pelo preço das mercadorias. Esse pensamento é o mais puro raciocínio tautológico e circular 3.
Outro argumento subjacente à nota da FIEMG pode ser expresso nos seguintes termos: como haveria uma maior demanda por trabalho fruto da redução da jornada, os salários aumentariam e isso geraria um maior poder de compra dos trabalhadores o que faria com que houvesse um aumento geral de preços. Vamos nos deter nesse argumento descrito aí.
Ao que tudo indica, nosso sábio burguês não está pressupondo inexistir o aumento da produtividade, o que por si só derrubaria a tese dele. Ainda assim, supondo que haja um aumento dos salários e a produtividade siga constante de modo a diminuir os lucros — vale notar que isso nem sempre ocorre: por exemplo, é possível (e até muito comum) que os salários aumentem devido à elevação da produtividade, o que, em termos marxistas, expressa-se pelo incremento via mais-valia relativa —, porém, seguindo o caso em que ocorra queda na massa dos lucros, a taxa de lucro no departamento II não é necessariamente afetada se a demanda por meios de consumo de subsistência aumentar e a por meios de consumo de luxo cair.
Assim, teríamos uma alteração da taxa de lucro no departamento que produz meios de consumo (departamento II da economia). Em livre concorrência, quando um setor da economia registra maior lucratividade, os capitais tendem a migrar para ele, o que gera um aumento da oferta desses produtos — no caso, meios de consumo de subsistência. Com o aumento da oferta, os preços dessas mercadorias caem, ou seja, a Lei do Valor se impõe novamente como a força de uma lei natural. Marx chamou esse mecanismo de equalização das taxas de lucro. O que se altera nesse processo dada uma produtividade constante, portanto, é a taxa geral de lucro, e não o nível geral de preços.
Para finalizar este texto e não perder mais tempo com as falácias dos burgueses e seus aparelhos privados de hegemonia, é importante dizer que o valor novo produzido na economia que aparece nas rubricas contábeis como lucro, juros, renda da terra, aluguel, impostos, tem apenas uma fonte: o trabalho não pago que o capitalista se apropria. Afinal, o capitalista nos paga pela nossa força de trabalho que é uma mercadoria especial, capaz de gerar valor além do que ela própria vale.
Gostaria de encerrar com as palavras de Marx, em O Capital, Livro I, capítulo 8 (A jornada de trabalho), ressaltando a importância da luta pela redução da jornada.
“Para ‘se proteger’ contra a serpente de suas aflições, os trabalhadores têm de se unir e, como classe, forçar a aprovação de uma lei, uma barreira social intransponível que os impeça a si mesmos de, por meio de um contrato voluntário com o capital, vender a si e a suas famílias à morte e à escravidão. No lugar do pomposo catálogo dos “direitos humanos inalienáveis”, tem-se a modesta Magna Carta de uma jornada de trabalho legalmente limitada, que “afinal deixa claro quando acaba o tempo que o trabalhador vende e quando começa o tempo que lhe pertence”4.
Pelo fim da jornada de trabalho 6×1, pela redução para 30 horas sem redução de salários!!!
Warlen Nunes é doutorando em Filosofia PPG-FIL/UFMG e educador popular ↩︎
1. Disponível em: https://www.em.com.br/politica/2024/11/6987129-fiemg-e-fecomercio-afirmam-que-fim-da-escala-6×1-pode-causar-demissoes.html. Consultado em 14/11/2024. ↩︎
2. In: Salário, Preço e Lucro, “Os Economistas”, p. 170 ↩︎
3. Para quem quiser uma discussão mais elaborada sobre os salários, remetemos os leitores para o texto de nossa autoria, Marx e o problema dos salários, disponível em: https://pcb.org.br/portal2/30358. ↩︎
4. In: O Capital, Livro I, cap. 8, Boitempo, p. 373-374 ↩︎