Um pacote perverso contra os trabalhadores e o povo pobre
Charge: Mauro Iasi
Edmilson Costa* – doutor em economia e secretário-geral do PCB
O governo anunciou recentemente um pacote econômico com o objetivo de ajustar as contas públicas ao arcabouço fiscal aprovado anteriormente, dentro do figurino do tripé macroeconômico neoliberal – austeridade fiscal, metas de inflação e câmbio flutuante. Trata-se de um conjunto de propostas de enorme perversidade contra os trabalhadores e a povo pobre, que resultará mais uma vez numa enorme transferência de renda para a oligarquia financeira.
Os cortes orçamentários terão impactos expressivos no consumo das famílias, uma vez que retira dinheiro dos mais pobres, aqueles que consomem tudo que ganham, tudo isso para pagar os juros da dívida interna. Ou seja, todos os trabalhadores e as trabalhadoras que ganham salário mínimo, aposentados e aposentadas, pensionistas ou beneficiados/as pelos programas sociais do governo serão os setores que vão arcar com a maior parte das medidas anunciadas pelo governo.
Dessa forma, o governo cedeu às pressões dos rentistas que vinham reivindicando faz algum tempo um ajuste nas contas públicas para evitar a chamada crise fiscal. Vale ressaltar que foi o próprio governo quem se autoimolou no altar do neoliberalismo ao aprovar um arcabouço fiscal que lhe deixa de mãos atadas para realizar uma política de industrialização e crescimento econômico.
A subserviência governamental em relação às classes dominantes e, especialmente, aos especuladores e rentistas, é tão grande que, após o governo anunciar o pacote, o ministro Fernando Hadadd foi imediatamente prestar contas aos banqueiros, num animado convescote na Federação Brasileira dos Bancos. Demonstrando ainda mais sua subserviência ao rentismo, o ministro teve a coragem de anunciar que o pacote não era uma bala de prata e que daqui a três meses, por exemplo, pode rever as contas e incluir mais setores no ajuste, como o da previdência e outros.
Essas medidas foram enviadas para o Congresso que, com certeza, vai reformá-las para tornar as normas mais duras, afinal, de um congresso conservador como este, não se pode esperar nada melhor. Alguns deputados, inclusive, já estão colhendo assinaturas para um ajuste ainda mais prejudicial à classe trabalhadora e tem deputado querendo até acabar com os feriados nacionais. Esse é o nível do congresso que temos hoje.
Enquanto isso, os banqueiros e especuladores incrementam a chantagem contra o governo com o aumento do dólar, queda nas bolsas, com o objetivo de abrir espaço para novos aumentos na taxa de juros, sob o pretexto de que o ajuste do governo não será suficiente para ajustar as contas públicas. Repete-se assim um roteiro já conhecido: quanto mais o governo cede, mais a oligarquia financeira ousa nas suas maquinações e mais a extrema-direita tende a se fortalecer com as frustrações da população.
Vejamos as principais medidas anunciadas pelo governo e suas maiores implicações para trabalhadores e trabalhadoras, pensionistas e a população em geral. Antes de elencarmos as principais variantes do pacote fiscal, é importante atentarmos para o próprio comunicado do Ministério da Fazenda, no qual especifica seus objetivos. De acordo com a nota à imprensa, o governo pretende economizar, entre 2025 e 2026, R$ 71,9 bilhões e, entre 2025 e 2030, R$ 327 bilhões, o que significa um ajuste fiscal rigoroso que visa economizar recursos para pagar o serviço da dívida interna e alimentar os rentistas às custas dos/as trabalhadores/as, pensionistas e da população pobre.
O conjunto das medidas enviadas ao Congresso tem o objetivo estratégico de alinhar o crescimento das despesas governamentais ao arcabouço fiscal. A própria tabela divulgada pelo Ministério da Fazenda fixa as diretrizes e a economia que o governo terá com o pacote:
A tesoura da área econômica
Uma das principais medidas se refere à mudança no formato da correção do salário mínimo, que era reajustado pelo aumento da inflação do ano anterior mais um crescimento real do salário igual ao aumento do PIB de dois anos anteriores. Com as novas regras, o salário mínimo será reajustado pela inflação passada, mas seu crescimento não poderá ultrapassar as bandas do ajuste fiscal, ou seja, entre 0,6% e 2,5%, independentemente se o percentual de aumento do produto for superior a esse patamar.
Conforme se pode observar na tabela, o governo economizará em 2025 R$ 2,5 bilhões; em 2026, R$ 9,7 bilhões; em 2027, R$ 14,5 bilhões; em 2028, R$ 20,6 bilhões; em 2029, R$ 27,8 bilhões; e em 2020, R$ 35 bilhões. Levando em conta que o salário mínimo é referência para reajuste de aposentados e beneficiados pelos programas sociais, o pacote significa um corte cavalar nos ganhos de todos aqueles e aquelas que sofrerão os efeitos desse austerícídio fiscal. De acordo com o Dieese, o salário mínimo serve de referência para 59,3 milhões de pessoas no Brasil.
Outra das medidas do pacote tem o objetivo de reduzir o número de trabalhadores e trabalhadoras que têm direito a receber o abono salarial. Atualmente todos e todas que recebem até R$ 2.824,00 têm direito a esse abono. Pelas novas regras, o governo vai fixar o valor para acessar o abono em R$ 2.640,00, montante que será corrigido apenas pela inflação até decrescer para 1,5 salários mínimos. Dessa forma, o governo espera uma economia de cerca R$ 18 bilhões até 2030.
As medidas também vão atingir o Bolsa Família, particularmente em relação às regras para cadastramento das chamadas famílias unipessoais (que têm apenas uma pessoa). A partir de agora haverá restrição para municípios com mais de 16% de inscritos, além do fato de que essas inscrições serão feitas obrigatoriamente nos domicílios. A partir de agora todos aqueles e aquelas que são beneficiários/as do Bolsa Família terão que se registrar mediante biometria obrigatória, tanto na inscrição quanto na atualização cadastral. Além disso, as concessionárias de serviços públicos ficarão obrigadas a disponibilizar informações para viabilizar o cruzamento de informações sobre os beneficiários. Com isso, o governo espera economizar em 2025, R$ 2 bilhões, em 2026, R$ 3 bilhões, montante que se estenderá nesse mesmo patamar até 2030.
O BPC (Benefício da Prestação Continuada), um programa que beneficia as pessoas idosas que não têm direito à Previdência, além das pessoas com deficiência que não estão trabalhando e não possuem renda fixa ou que tenham renda inferior a um quarto de salário mínimo têm direito a receber um salário mínimo mensal. Com as novas regras, o governo veda a dedução de renda para enquadramento e agora a renda do cônjuge e companheiro/a não coabitante, irmãos/ãs, filhos/as e enteados/as será contabilizada conjuntamente, o que afastará milhares dos critérios do BPC. As pessoas terão que fazer ainda prova de vida anual e biometria obrigatória.
O objetivo é cortar um terço dos/as beneficiados/as, como diz o próprio ministro: “Não se sabe o que essas pessoas têm para ter acesso ao BPC”. Com essas medidas o governo espera economizar R$ 12 bilhões. Vale ressaltar que essa regra vale para os setores mais vulneráveis da população, mas não vale para setores privilegiados. Por exemplo, um casal de juízes ganha dois polpudos salários, enquanto um casal de miseráveis não vai poder mais receber o BPC.
Outras medidas impactam no Ministério da Educação, uma vez que os recursos que estariam reservados para o ensino integral agora serão remanejados para outras áreas da educação, e Estados e Municípios passarão a se responsabilizar por esse gasto. Ou seja, o ensino integral será inteiramente custeado com as verbas do Fundeb. Como se sabe, muitos municípios com menos capacidade de arrecadação têm dificuldades até para pagar o piso salarial da educação básica e agora, com a responsabilidade pelo ensino integral, deverão enfrentar muitas dificuldades e até mesmo não proporcionar aos/às estudantes o ensino integral.
As medidas também atingem a previdência dos militares e os altos salários. Extinguem a transferência da cota de pensão e o fim da chamada morte ficta, que é quando a família continua recebendo o benefício mesmo quanto um militar é expulso das Forças Armadas. Estabelece ainda uma progressividade de idade mínima para aposentadoria em 55 anos. Também o governo definiu um teto para todos os salários da administração nas esferas federal, estadual e municipal, cujo valor não deve ultrapassar R$ 44 mil mensais. Os militares estão protestando, mas de barriga cheia, pois fazem parte de uma das categorias que não foram atingidas pela reforma da previdência e podem se aposentar com um pouco mais de 50 anos.
Para dourar a pílula amarga do ajuste fiscal, o governo anunciou a isenção do imposto de renda para as pessoas que ganham até R$ 5 mil, o que deveria beneficiar cerca de 30 milhões de trabalhadores e trabalhadoras, mas que só valerá a partir de 2026. Para o governo, trata-se de uma medida neutra, uma vez que os recursos que deixarão de ser arrecadados serão compensados pela taxação daqueles que ganham acima de R$ 50 mil. Mas o mercado financeiro e seus agentes na mídia imediatamente iniciaram um terrorismo midiático como se o mundo fosse acabar caso a medida seja adotada. Logo depois, o presidente da Câmara veio também a público dizer que a isenção para quem ganha até R$ 5 mil será um assunto a ser debatido somente em 2025, o que significa dizer que o pacote de corte de gastos será aprovado, mas a isenção para trabalhadores e trabalhadoras ficará para as calendas.
Transferência de renda para o rentismo
Essa conversa mole de que este é um governo que tem responsabilidade fiscal é apenas um pretexto para dar continuidade à política neoliberal sob a ótica do arcabouço fiscal, uma vez que todos sabem que o principal problema fiscal do país é a sangria de recursos do fundo público para o pagamento do serviço da dívida interna e que, portanto, o ajuste fiscal deveria ser feito contra os banqueiros e especuladores. Para se ter uma ideia da absurda transferência de renda para o rentismo institucionalizado, basta dizer que a cada ponto percentual que o Banco Central aumenta na Selic o país é obrigado a pagar mais R$ 70 bilhões, praticamente o mesmo montante que o governo diz que vai economizar com o pacote nos próximos dois anos. Este é o verdadeiro problema da economia brasileira e, mesmo assim, os abutres financeiros continuam fazendo terrorismo diariamente com aumento do dólar, queda nas bolsas, prognóstico de escalada inflacionária, tudo isso como pretexto para que o Banco Central aumente as taxas de juros.
Comprovando a monstruosidade do pagamento de juros no Brasil, segundo o próprio Banco Central em nota à imprensa, os juros em outubro de 2024 somaram 116,6 bilhões, quase duas vezes mais que no mesmo mês de 2023, quando a soma de pagamento de juros foi de 61,9 bilhões. Mais escandaloso ainda foi o pagamento acumulado de juros nos últimos 12 meses até outubro deste ano, que somou 869,3 bilhões, correspondendo a 7,57% do PIB, montante bem maior que o verificado nos 12 meses até outubro de 2023 (6,71% do PIB), conforme a tabela. Ou seja, enquanto o governo retira recursos de trabalhadores e trabalhadoras, pensionistas e miseráveis, transfere essa soma astronômica para os banqueiros e especuladores em geral. Esse é o sentido do governo cujo partido se diz dos trabalhadores.
Juros nominais – Setor público consolidado
out/23 61,9 bilhões
out/24 111,6 bilhões
Acumulado nos últimos 12 meses
out. 2023 720,1 bilhões
out/24 869,3 bilhões
Fonte: Banco Central – Estatísticas Fiscais. Nov/2024.
O mais impressionante desse processo é o fato de que a taxa de juros é um instrumento rudimentar e inadequado para combater a inflação e serve apenas para favorecer a oligarquia financeira, que no Brasil capturou o Banco Central e o transformou num instrumento de transferência de renda cavalar do setor público para as classes dominantes, especialmente os rentistas. Ao contrário do mantra neoliberal de que o aumento da inflação é resultado de uma demanda maior que a oferta e que, ao se contrair os gastos das famílias e do governo, mediante o aumento de juros, restabelece-se o equilíbrio entre oferta e demanda e a inflação cai, a vida real é mais complexa que essa teoria primitiva.
O que se pode observar é que um aumento das taxas de juros, em vez de combater a inflação, pode acontecer exatamente o contrário, conforme se o pode observar pelos seguintes argumentos:
a) O processo inflacionário é mais complexo do que simplesmente restringi-lo às leis da oferta e da demanda. Numa economia mundialmente globalizada, o aumento dos preços pode ser decorrente tanto de fatores internos quanto externos.
b) Do ponto de vista interno, o aumento dos preços dos insumos, por exemplo, como energia, em função de chuvas insuficientes, ou dos alimentos, em decorrência de problemas climáticos, como secas ou enchentes, podem aumentar os preços em função de fatores que não estão ligados à demanda.
c) Além disso, a desvalorização cambial, numa economia que importa grande parte dos insumos, também gera aumento dos preços, tendo em vista que os empresários dos setores que importam repassarão os custos para os consumidores.
d) Outra variável importante são os preços oligopolistas, pois os capitalistas, na busca pela maximização da taxa de lucro, elevam os preços de acordo com os seus interesses estratégicos.
Ao elevar a taxa de juros, as autoridades monetárias encarecem o crédito, tanto para as empresas quanto para os/as consumidores/as, o que vai levar os empresários a repassar os custos adicionais para os preços, intensificando a inflação, ao invés de reduzi-la. Nessa conjuntura, consumidores e consumidoras também reduzirão suas compras devido ao aumento dos preços. Portanto, o que se pode aferir desse processo é um desestímulo ao investimento e ao consumo e uma redução da demanda agregada que, consequentemente, resultará em uma desaceleração econômica, aumento do desemprego, redução da capacidade produtiva, gerando evidentemente um ciclo de baixo crescimento e instabilidade e agravando ainda mais os problemas estruturais da economia.
Em outras palavras, o aumento das taxas de juros não só não resolve os problemas estruturais da inflação, como se transforma numa ferramenta especial para favorecer os interesses da oligarquia, pois eleva os retornos sobre os ativos financeiros da dívida interna, incentiva a especulação financeira e torna os ricos cada vez mais ricos. Além disso, essa política serve ainda para aprofundar as desigualdades e concentrar a riqueza e disciplinar os trabalhadores, pois uma conjuntura de desemprego enfraquece o movimento sindical e reduz o poder de barganha do proletariado.
Sem ilusões com o governo Lula
Quem ainda tinha ilusões em relação ao governo Lula recebeu um banho de água fria com esse pacote econômico. Deve-se levar em conta que as propostas de desvincular os pisos constitucionais da saúde e da educação não emplacaram desta vez, mas o objetivo da área econômica é colocar também esses setores na lógica do arcabouço fiscal. O ministro da Fazenda já admitiu ser necessário debater essa questão, pois ele defende que, no ritmo atual, o espaço para as despesas livres dos ministérios poderá terminar nos próximos anos, significando, na prática, que o governo vai fazer tudo para mexer nos gastos obrigatórios. Ou seja, isso significa desvincular o salário mínimo das aposentadorias, programas sociais, além dos pisos constitucionais a saúde e da educação. “Vamos ter que fazer um debate sobre isso”, diz Hadadd.
Muitos alegam que o governo não tem cumprido ainda as promessas de campanha, como colocar os ricos no imposto de renda e os pobres no orçamento porque que a correlação de forças não permite. Isso é uma desculpa esfarrapada porque a correlação de forças é uma disputa política e o elemento central para mudar essa conjuntura é colocar as massas em movimento, mas esse governo parece que tem mais medo do povo nas ruas que o diabo da cruz. Prefere as negociações rebaixadas, os acordos com o Centrão, as dádivas para a burguesia e migalhas para os trabalhadores e as trabalhadoras.
Na verdade, esse governo abriu mão da politização da sociedade e da disputa ideológica com as forças reacionárias e preferiu estimular o apassivamento social, o bom mocismo e a política de paz e amor. Da mesma forma, abandonou qualquer ideia de mobilização da população, preferindo os acordos de cúpula, a substituição das lutas nas ruas e nos locais de trabalho pela institucionalidade. Mesmo depois das denúncias sobre a tentativa de golpe, nada se fez no sentido de mobilizar a população contra os golpistas.
Ao não cumprir as promessas de campanha e dar continuidade ao social liberalismo, com sucessivos pacotes antipopulares, o governo está seguindo a mesma trajetória da presidente Dilma. Deve-se lembrar que antes do levante popular de 2013 a economia ia aparentemente bem, o emprego e o salário aumentavam, mas isso era insuficiente para aqueles milhões que saíram às ruas pedindo educação e saúde de qualidade. Até hoje nenhum dos problemas que gerou aquela revolta foi resolvido. Não se pode esquecer ainda que Dilma também imaginou equivocadamente que se cedesse à direita poderia acalmá-la e terminou sendo destituída, levando a um período dramático na conjuntura brasileira, com os governos de Temer e, posteriormente, Bolsonaro.
Portanto, mesmo levando em conta as dificuldades e diante dessa conjuntura complexa, as forças revolucionárias não devem ter nenhuma ilusão em relação ao governo Lula. Esse governo não deverá realizar nenhuma reforma estrutural na economia nem estimulará a participação das massas para mudar a correlação de forças porque amarrou o seu destino à conciliação de classe e está adotando políticas ainda mais rebaixadas que no período anterior, restando à população apenas as migalhas do banquete das classes dominantes.
Nessa conjuntura, devemos caminhar com as próprias pernas, procurando agregar todos aqueles que lutam por mudanças de verdade, na certeza de que deverá ocorrer um acirramento da luta de classes e não pode ser descartado nenhum cenário em nosso país. Em termos práticos, a esquerda revolucionária deve atuar em duas frentes: de um lado combater firmemente o neofascismo, exigir a prisão de Bolsonaro e seus cúmplices e, ao mesmo tempo, denunciar as políticas antipopulares do governo Lula, ampliar o trabalho de base, continuar defendendo a necessidade de colocar as massas na rua para mudar a correlação de forças e preparar a contraofensiva da classe trabalhadora, com vistas à construção da Frente Anticapitalista e Anti-imperialista, na perspectiva do poder popular e do socialismo.